Sônia Andrade, criadora do projeto A Casa é Nossa

Zô Guimarães/UOL

 

LOLA FERREIRACOLABORAÇÃO PARA O UOL, DO RIO

O novo coronavírus chegou ao Brasil e escancarou algumas questões já conhecidas. Com a necessidade de isolamento social e o fechamento da maioria do comércio, milhões de trabalhadores se viram com as geladeiras vazias.

A principal medida de apoio a esses cidadãos é o auxílio emergencial, aprovado pelo governo federal e disponibilizado por meio da Caixa Econômica. No valor de R$ 600 cada parcela, o acesso ao benefício depende de uma série de fatores, entre eles os documentos civis básicos regularizados. Segundo o governo, houve 19 milhões de pedidos de regularização de CPF desde 17 de março. Mas alguns brasileiros já tinham descoberto a necessidade de regularização bem antes: aqueles que foram atendidos há alguns anos pelo projeto A Casa é Nossa, de Sônia Andrade.

Criado há 14 anos, o projeto é um sonho realizado de Sônia, registradora pública do Cartório do 6º Ofício de Registro de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro. A ideia inicial era simples e fundamental: entregar aos moradores de favelas do Rio de Janeiro o título de posse de suas casas. Em áreas onde a regularização fundiária é uma exceção, e não regra, o projeto já auxiliou cerca de 10 mil famílias cariocas.

O impacto direto é o título de posse, o primeiro passo para que famílias consigam regularizar o imóvel em que residem. Com ele em mãos, o dono da casa já garante uma herança aos seus filhos e pode receber indenização caso haja desapropriação para obras públicas. O impacto indireto é a regularização dos documentos pessoais, como RG e CPF, necessários para a obtenção do documento emitido pelo projeto.

Ao longo de todo o mês de maio, Sônia recebeu alguns vídeos de agradecimento: "Conseguimos o auxílio emergencial sem maiores problemas", disse uma moradora da Vila Kennedy, zona oeste do Rio.

 

Pelos becos e vielas

A primeira vez que Sônia pisou em uma favela para levar o "A Casa é Nossa", encontrou resistência.

Na favela do Cantagalo, no Rio, que tem cerca de 20 mil moradores, somente cinco famílias foram à tenda que ela montou para apresentar o projeto. Sem entender a resistência em terem um documento que só poderia ser positivo, ela questionou um morador, que explicou: antes, grupos políticos estiveram na comunidade, levaram os documentos dos moradores e nunca mais voltaram.

"Somente quando eu entreguei o documento, em 24 horas, eles acreditaram no trabalho", relembra Sônia. De lá para cá, já foram 14 anos. E logo as cinco famílias tornaram-se 300, 900 e hoje, mais de 9 mil. Além do Cantagalo, foram também o Complexo do Alemão, de Manguinhos e a Ladeira dos Tabajaras, entre outras comunidades.

Mas Sônia não nasceu em uma favela, e talvez por isso a sua inserção não tenha sido automática. Só que o desejo antigo de um exercício responsável da profissão em que se formou, o Direito, a impulsionou a não desistir no primeiro dia.

A ideia do projeto surgiu logo quando assumiu o cartório do 6º ofício. Na época, pensou que era a hora de colocar em prática esse lado mais humano, em uma escala maior. Ela sabia que seria difícil, porque a instituição "cartório" não figura entre as preferidas da sociedade em geral. Há um estereótipo negativo, ela acredita.

O grande desejo de alcançar muitas pessoas não acompanhou as poucas limitações técnicas do início. Antes, cada morador fazia a medição de sua própria casa, o que gerava um trabalho duplo de Sônia. Com o passar do tempo, uma equipe técnica foi criada e a retificação das plantas das casas virou história para contar.

Eu tinha que fazer com que as pessoas olhassem o cartório como um grande instrumento de defesa da sociedade. Conversei com a defensora pública e apresentei essa vontade de fazer um projeto em que eu pudesse beneficiar muitas pessoas. E a minha ideia era esta: garantir a moradia das pessoas através da segurança jurídica

Para aperfeiçoar o projeto, foram e são necessárias muitas visitas às favelas e muito contato direto com as associações de moradores. Nos últimos 14 anos, teve de explicar inúmeras vezes a importância de um documento que comprove a posse do imóvel. E se a regularização dos documentos impactou a saúde em meio a uma pandemia, ela também já tinha feito algo similar já naquela época.

"Contei qual era a importância daquele documento para que eles pudessem ter uma regularização fundiária, com uma prova justa, inequívoca e com validade contra terceiros. Ao entregar o documento, eu pensava estar entregando um simples papel. Mas depois desse papel vieram os parcelamentos em lojas de móveis e material de construção, por exemplo. Antes, eles não tinham provas concretas de moradia."

Com a possibilidade de melhoria estrutural das casas, ela ouviu dezenas de histórias de imóveis que não tinham janelas, porque não tinham como arcar com a obra, e depois da organização dos documentos, a obra ficou mais fácil. "Isso também é melhorar a qualidade da moradia", diz. Casas com boa ventilação protegem mais os moradores de doenças respiratórias, como tuberculose. E, atualmente, a recomendação é a mesma para a covid-19.

 

Na pandemia, quem não via, teve de abrir os olhos

Essa proximidade com as comunidades têm sido ainda mais importante durante a pandemia. Além da ajuda para que as famílias tenham acesso ao auxílio, Sônia também arrecadou valores para distribuir alimentos para algumas das comunidades que atendeu. Agora, ela espera que essa mobilização em prol das favelas se mantenha ao fim da crise.

"Quem não enxergava essas pessoas, teve que enxergar. Eu espero que os governos comecem a ter mais ações de forma preventiva. Vamos fazer ações de forma que a gente possa resgatar a dignidade dessas pessoas", diz.

Nilton do Carmo Bernardino, de 62 anos, é um dos moradores da comunidade Mata Machado que conseguiu o título. Atualmente de licença médica, ele conta que o processo foi bem rápido e que o documento está bem guardado. Orgulhoso, exibe as chaves da casa que, agora sim, é efetivamente sua. Em posse do documento há pouco mais de seis meses, ele conta que tem planos futuros e que pretende usufruir da segurança que, agora, ele tem.

Para Sônia, histórias como a de Nilton justifica os anos dedicados ao projeto. "Vale a pena trabalhar se colocando no lugar do outro. Eu consigo visualizar a angústia das pessoas em não terem acesso a determinados documentos. Eu queria desmistificar a questão do cartório, e hoje as comunidades veem no cartório um grande aliado, mas vejo que o resultado foi bem maior", afirma.

Atualmente, A Casa é Nossa está em todas as regiões do Rio de Janeiro, com objetivo de expansão para outros estados. Quando recebeu a reportagem, em 12 de março, Sônia havia voltado de uma rápida viagem a São Paulo: era o início de uma parceria com a prefeitura da capital paulista. A construção do seu legado, ela analisa, passa pelo bem-estar de quem é atendido pelo projeto.

"Eu não quero ser política, ser artista, eu quero ser uma pessoa que trabalha pela questão humanitária do país. Só através da questão humanitária vamos mudar a realidade desse país. Se as pessoas não olharem para o lado humanitário, a realidade não muda. As pessoas têm que ter acesso a pequenas coisas que mudem de verdade a vida delas."

 

Importância da moradia

Quando decidiu criar o projeto e o Instituto Novo Brasil pelo Brasil Solidário, Sônia enfrentou algumas críticas duras de pessoas próximas. Formada pela Universidade Gama Filho e concursada, ouvia que não precisava "se embrenhar em favelas".

Nunca deu ouvidos. "Diziam que eu não precisava de mais nada, depois do concurso. Mas eu gosto da área humanitária. E quando o trabalho é entrar na casa da pessoa, quando alguém abre sua casa, vemos que há outras possibilidades", afirma.

E relembra que nesses anos todos, já ensinou moradores a denunciar violência sexual contra crianças e detectar abusos. O mesmo para mulheres vítimas de violência doméstica. Citando o economista peruano Hernando de Soto, ela diz: "a vida da pessoa começa a partir da moradia". Fonte: https://www.uol.com.br