A condenação do cristianismo

Há um tema central em sua vida e obra que não pode ser esquecido neste 120º aniversário de sua morte: o cristianismo. Nietzsche foi um dos filósofos modernos que mais refletiu sobre ele, e talvez de uma forma mais iconoclasta, como evidenciado em sua obra emblemática “O Anticristo. Maldição sobre o Cristianismo”, onde podemos ler o seguinte julgamento sumário: “Condeno o Cristianismo, levanto contra a Igreja Cristã a mais terrível de todas as acusações que qualquer acusador já teve na boca. Ela é para mim a maior de todas as corrupções imagináveis ... Eu chamo o Cristianismo de a única grande maldição, a única grande corrupção íntima, o único grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é tão venenoso, furtivo, subterrâneo, pequeno – eu o chamo de a única mancha imortal desonrosa da humanidade...”.

Esse julgamento foi registrado na imaginação coletiva de crentes e não crentes. Os primeiros a usaram para anatematizar o filósofo da morte de Deus; os segundos, para reafirmar suas atitudes críticas em relação à religião cristã. A ortodoxia cristã se encarregou de divulgá-lo – às vezes tirando-o do contexto – para ser acusado de razão ao apresentar Nietzsche como o símbolo de um mundo sem Deus e um dos mais ferrenhos inimigos do cristianismo de todos os tempos.

Sem negar a natureza radical de sua posição sobre o cristianismo, acredito que é mais matizado e complexo do que uma leitura rasa de Nietzsche pode nos levar a acreditar. Vou tentar contextualizar.

 

Desmascaramento da cultura ocidental

A crítica nietzschiana ao cristianismo se enquadra no desmascaramento que faz da tradição ocidental configurada por três fatores: a lógica socrática, o platonismo e o próprio cristianismo, que define como “platonismo para o povo”. Todos os três convergem, em sua opinião, na negação do instinto de vida. A esse respeito, concordo com Eugen Fink, um dos maiores especialistas de Nieztsche, que, para Nietzsche, o cristianismo é “apenas a manifestação mais poderosa na história universal de uma perda de instintos sofrida pelo homem europeu”. Perda que consiste em desvalorizar o mundo verdadeiro, a terra, e em inventar um transmundo ideal, o celestial.

 

Cristianismo alheio à realidade e inimigo da razão

cristianismo é alheio à realidade, afirma Nietzsche. Suas causas são puramente imaginárias: a alma, o espírito. Seus efeitos também: graça, pecado, punição, redenção, perdão dos pecados. Opera com uma psicologia imaginária: arrependimento, remorso de consciência. A teologia pela qual é governado mostra o mesmo defeito, pois fala do juízo final, da vida eterna, do reino dos céus. Os seres a que se refere também são imaginários: Deus, espíritos, almas. O cristianismo é, em suma, “uma forma de inimizade mortal, até então insuperável, com a realidade”, lemos no Anticristo.

O Cristianismo é contrário à razão e à dúvida. É mais uma de suas críticas, que deve ser inserida no quadro da crítica geral à moral da resignação. O cristão mergulha na fé e renuncia à razão. Nada na fé “como no elemento mais claro e inequívoco” e afoga a razão nas ondas da credulidade. A dúvida, o simples olhar para um terreno sólido, já é um pecado. Até mesmo o próprio fundamento da fé e a reflexão sobre sua origem são considerados pecaminosos. Dogmas são, portanto, imunizados de todas as críticas.

 

A religião do ressentimento

O cristianismo é, em resumo, a religião do ressentimento e da compaixão. Nietzsche considera a compaixão um afeto doentio, um instinto depressivo, fraco e contagioso, que gera melancolia, obstrui as leis naturais da evolução e espalha o sofrimento pelo mundo. Precisamente o excesso de compaixão constitui uma das causas da morte de Deus, como o mostra o diálogo de Zaratustra com o último papa, já aposentado. “Você sabe como (Deus) morreu?” “É verdade... que foi a compaixão que o estrangulou?”, pergunta Zaratustra. Ao que o papa aposentado, depois de narrar a evolução de Deus, responde: “Um dia se sufocou com sua excessiva compaixão”.

 

Jesus, o “bom mensageiro” e Paulo, o “desangelista”

A crítica mais severa recai sobre Paulo de Tarso, a quem ele chama de “desangelista” – em contraposição ao “bom mensageiro” que Jesus era. Nietzsche considera Paulo o verdadeiro fundador, o inventor do Cristianismo, acima do sacerdote, que ele diz ser “a espécie mais viscosa do homem”, cuja missão é ensinar a contra-natureza, e sobre a teologia, “o máximo de propagação da falsidade”.

Da crítica salva Jesus de Nazaré – embora apenas em parte, como veremos em breve –, a quem define como um “espírito livre”, que não obedece a leis ou dogmas; um rebelde que se levanta contra a Igreja Judaica, os padres, os teólogos e a hierarquia dessa sociedade; um “santo anarquista”, que incita os excluídos a se rebelarem contra a classe dominante; um “criminoso político”: por isso foi crucificado; um “grande simbolista”, que só toma as realidades interiores como verdades, concebe o natural e o histórico como ocasião de parábola e o reino de Deus como estado do coração; um “bom mensageiro”, que morreu como viveu e de acordo com o que ensinou. Mas, imediatamente depois, ele o chama de “idiota”, no sentido de uma pessoa iludida, ingênua, sem noção de realidade, que permaneceu na puberdade e não desenvolveu instintos masculinos.

 

Do choque “corpo a corpo” ao diálogo com Nietzsche

A atitude mais frequente de um setor da teologia contra Nietzsche foi o corpo a corpo, a condenação total de sua filosofia, a rejeição de suas críticas ao cristianismo, qualificando-as como panfletárias e inconsistentes e acusando o filósofo do mesmo ressentimento que ele atribui ao cristianismo. Segundo os teólogos empenhados em salvaguardar a ortodoxia, a morte de Deus anunciada por Nietzsche afunda a humanidade na barbárie e na escuridão, e leva diretamente à morte do ser humano.

Eu creio que é preciso renunciar ao corpo a corpo com Nietzsche e optar pelo diálogo sincero e exigente. Nesse diálogo deve se conceder uma parte não pequena de razão ao filósofo, sobretudo em sua crítica a alguns modelos do cristianismo ainda vigentes hoje: o cristianismo idealista, que estabelece a separação entre a transcendência inteligível e a imanência sensível e apela apressadamente aos valores; o cristianismo caracterizado pelo desprezo do corpo, a negação do eu, o fomento dos instintos de morte e a repressão do instinto de vida; o cristianismo fideísta sem fundamento na razão, o cristianismo estritamente racionalista, que renuncia à narração, à parábola e ao símbolo.

No entanto, tenho que discordar de Nietzsche em aspectos fundamentais da sua teoria do cristianismo. Não posso compartilhar de sua crítica à compaixão. Esta é, para mim, uma dimensão fundamental do ser humano e a opção ética do Deus do êxodo e dos profetas de Israel/Palestina e de Jesus de Nazaré. Em ambos os casos se trata de uma práxis tendente a aliviar o sofrimento humano e a se solidarizar com as pessoas que vivem em situações sub-humanas. E isso não tem nada de fraqueza ou ressentimento, de negação da vida ou de renúncia ao prazer, mas sim todo o contrário: é força da libertação dos oprimidos, caminhos de solidariedade com as vítimas e defesa da vida dos que sofrem e morrem antes do tempo.

No caso de Paulo, é verdade que ele não segue a radicalidade da mensagem e da vida de Jesus de Nazaré e inicia o processo de espiritualização do cristianismo. Mas ele não o inventa. O que ele faz é libertá-lo da estreita estrutura judaica, abri-lo para o contexto cultural helenístico, dando-lhe uma orientação universalista e enfatizando a liberdade e a libertação que Jesus carrega:

Para sermos livres, Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem sujeitar novamente ao jugo da escravidão... Já não há distinção entre judeu e gentio, entre escravo e livre, entre homem e mulher, porque todos vocês são um em Cristo” (Carta de Paulo de Tarso aos Gálatas 5, 1.3.28).

Por fim, tenho sérias dificuldades em aceitar o termo “idiota”, no sentido de ingênuo, aplicado a Jesus. O profeta galileu não é uma utopia ingênua. Ele tem uma consciência clara da realidade e um senso crítico da história. E isso o leva a entrar em conflito com os poderes religiosos, políticos e econômicos, com a sociedade patriarcal e com o próprio Deus, e a propor uma alternativa humanística de religião e sociedade.

Espero que esta breve abordagem dialética de Nietzsche contribua a escapar dos estereótipos, preconceitos e deformações com as quais, não poucos, pensadores cristãos abordaram o filósofo alemão para condená-lo de forma densa, reconhecer o sucesso de não poucas de suas críticas ao Cristianismo e distanciarem suas avaliações iconoclastas da ética libertadora de Jesus de Nazaré.

Para mergulhar na atitude de Nietzsche em relação ao cristianismo e à figura de Jesus de Nazaré, remeto ao meu livro Imagens de Jesus (Trotta, Madrid). Nele, analiso a imagem muito sugestiva e pouco conhecida de Jesus por Nietzsche. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br