É preciso desligar a violência

Quero reparar no passo da moça na calçada, na graça do menino que descobre um ninho, no entregador que assovia no seu triciclo desconjuntado

 

LEO AVERSA

A notícia já era repugnante por escrito: um procurador espancou a colega de trabalho. Não vieram, porém, só palavras, tinha mais: o vídeo registrando de forma explícita a covardia.

Me desculpem, mas, para mim, foi demais.

As notícias abomináveis têm aparecido em sequência: a câmara de gás portátil em Sergipe, o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, o estupro da menor em Santa Catarina. A gente sabe que não vai parar por aí. Como reagir? O quanto podemos tolerar? Quando o vídeo covarde e violento começou, parei no primeiro soco.

Já não consigo.

Sim, sei que a indignação pública é fundamental e que sem ela a Justiça não vai para a frente. Deixar quieto é garantia de impunidade. Também sei que sou um privilegiado, dos que têm contato com a violência muito mais pelas telas do que ao vivo.

Sim, tenho consciência.

Porém, de tão informado, de tantas notícias trágicas nas palmas das mãos e imagens violentas ao alcance dos olhos, de tanto ver o que não gostaria de ter visto, ando querendo desligar a realidade. Ao menos essa da desgraça e dor em 4k e 120Hz. Às vezes me sinto como aquele personagem de “Laranja mecânica”, obrigado a ver cenas violentas até não aguentar mais.

O quanto a gente consegue aguentar? Vale a pena?

Talvez esteja me juntando aos que evitam notícias ruins. São cada vez mais, diz uma pesquisa do Instituto Reuters feita em vários países. Sim, o Brasil está na frente. Talvez não se trate de alienação, muito menos desinteresse, mas de sobrevivência. Buscar abrigo para o excesso de maldade e estupidez. O leitor deve estar se perguntando se funciona, se não é tapar o sol com a peneira ou enterrar a cabeça na areia. É sensato ignorar o horror?

Quando era adolescente e ouvia minha avó reclamar das notícias ruins nas páginas, na TV, achava que isso era uma atitude sem sentido, coisa de velho. Hoje percebo a antiga sabedoria. Não dá para viver cercado de crueldade e selvageria. Mais cedo ou mais tarde você acaba se tornando indiferente à barbárie. Quando se dá conta, virou um daqueles haters que apareceram na coluna da semana passada. Melhor não.

Quero andar tranquilo.

Em vez de passar os dias angustiado com as imagens das atrocidades que se repetem, de ver o que já não consigo desver, melhor desligar a tomada, esquecer o que nunca vai dar certo e sair na rua off-line, despreocupado.

Quero reparar no passo da moça na calçada, na graça do menino que descobre um ninho de bem-te-vi, no entregador que assovia a melodia das ruas no seu triciclo desconjuntado. Rir de uma bobagem inocente e passageira, me comover com um sentimento eterno esquecido em alguma esquina. Quero redescobrir o encanto do cotidiano, do afeto do dia a dia, para escrever sobre o que não aparece nas primeiras páginas.

Acho que não precisa de muito.

É só desligar na hora certa, esquecer o horror das imagens que vão pelas telas e cuidar do que vai pelos cantos da alma, do que me restou dela. Para notar que o inverno está aí, que há dias de frio e outros não, que logo vão começar a florescer os ipês.

É o que anuncia a primavera que vai chegar. Fonte: https://oglobo.globo.com