Em tempos de vozes rasas e verdades descartáveis, são os passos desses legatários que ainda ecoam – firmes, lentos, insubstituíveis
Por Clarita Costa Maia
Em 1964, dois jovens judeus ativistas pelos direitos da população afro-americana foram mortos pela Ku Klux Klan enquanto tentavam investigar o incêndio criminoso de uma Igreja Batista. O caso ganhou repercussão internacional e fez aumentar a pressão pelo combate efetivo à violência racial nos Estados Unidos.
Em fevereiro de 1965, o jovem ativista afro-americano Jimmie Lee Jackson foi morto enquanto protegia sua mãe durante um protesto numa cidade vizinha a Selma, no Alabama. Sua morte foi o combustível emocional para a marcha de Selma a Montgomery, que teve dois capítulos inesperados: em 7 de março e em 21 a 25 de março daquele ano.
Naquele ano, a população judaica na cidade de Selma resumia-se a entre 30 e 40 famílias, o que, num contingente de 29 mil habitantes, girava em torno de 1% da população local. Afro-americanos, todavia, representavam 50% dos moradores. Nada obstante, ambas as comunidades eram minorizada.
A população negra, apesar de sua expressividade populacional, tinha menos de 2% de seus membros registrados com o direito a voto, em razão das brutais táticas de intimidação contra eles realizadas e das restrições burocráticas a que estavam sujeitos. Apesar deles, Selma se consolidou como centro de mobilização negra nos Estados Unidos.
A marcha de 7 de março foi organizada às pressas e muitas lideranças não conseguiram mobilizar-se em tempo. Coordenada por John Lewis e Hosea Williams, ambos membros proeminentes de coletivos negros, contou com 600 participantes e gerou uma reação brutal. As imagens televisionadas da repressão policial galvanizaram o apoio ao Movimento dos Direitos Civis.
Em resposta, Martin Luther King Jr. decidiu convocar uma nova marcha, que reuniu 2.500 pessoas, com o protagonismo de importantes lideranças religiosas. Os proeminentes rabinos Abraham Joshua Heschel, Israel Dresner, Maurice Davis, Joachim Prinz e Levi Olan, à frente da massa de manifestantes, seguiram ao lado de Dr. King. Além deles, estiveram presentes líderes protestantes e católicos de destaque, como o pastor batista Ralph Abernathy, o pastor unitarista James Reeb, o seminarista episcopal Jonathan Daniels, o bispo católico Dom Daniel Gercke, o frei Clement Kern, além de freiras de diversas ordens.
A presença desses líderes fortaleceu a legitimidade moral do Movimento dos Direitos Civis sob a ideia de justiça universal e de irmandade e fraternidade entre os seres humanos.
O engajamento da comunidade judaica nos Estados Unidos com o Movimento dos Direitos Civis continuou crescendo. Durante a década de 1960, aproximadamente metade dos advogados que defendiam ativistas negros eram judeus, o que é ainda mais surpreendente à luz do fato de que os judeus, hoje, representam não mais de 2,4% da população americana, sendo ainda menos numerosos à época.
Três anos após as Marchas de Selma, um segregacionista branco assassinou Dr. King enquanto ele se dirigia a um jantar de Pessach oferecido na casa do rabino Heschel, que se tornara seu amigo fraterno. Essa perda lhe foi devastadora. Era o sintoma de uma sociedade adoecida pelo divisionismo social. Uma frase que teria escrito em cartas pessoais, depois tornada pública, “eu rezo com os meus pés”, foi a sua fórmula de reação. Aquela que usou em Selma. Aquela que continuou usando para manter viva a memória de Dr. King.
Esse exemplo luminoso de compromisso ético e engajamento inter-religioso contrasta duramente com o esforço deliberado de certos grupos e influenciadores antissemitas em semear discórdia entre judeus, evangélicos e a comunidade negra. Trata-se de um artifício vil que corrói os pilares da convivência democrática, do pluralismo político e evidencia uma ignorância histórica e doutrinária tão profunda quanto estridente – ou, pior ainda, deliberada. O artifício revela não apenas a precariedade da estatura moral e intelectual daqueles que o utilizam, mas também os interesses ocultos que movem sua atuação política. Nenhum progressismo verdadeiro – seja ético, ideológico ou espiritual – pode se prestar ao papel de fabricar rivalidades ou fomentar conflitos teológicos já dissolvidos pela razão, especialmente quando o objetivo maior, ou alegado, é a elevação dos padrões morais na política, no Direito e na sociedade.
A marcha que uniu negros, judeus e cristãos em nome da justiça racial não foi apenas um ato político – foi um gesto espiritual, uma declaração pública de que a dignidade humana transcende cor, credo e tempo. King, Heschel e tantos outros souberam transformar fé em ação, dor em solidariedade e história em legado. Em tempos de vozes rasas e verdades descartáveis, são os passos desses legatários que ainda ecoam – firmes, lentos, insubstituíveis. Eles nos convocam a continuar rezando. Com os nossos pés. Sobretudo, unidos. Fonte: https://www.estadao.com.br