Frei Martinho Cortez, O. Carm.

Convento do Carmo de Santos, São Paulo.

              João da Cruz foi chamado e simplesmente mergulhou no Mistério! Com 49 anos era já um santo, alguém que optou por Deus e, dando o melhor de si para acolher e colaborar, foi transformado pelo Amor eterno. Quando iniciei a leitura página a página de suas obras completas, na primeira parada, com o fim de mastigar bem e assimilar mais proveitosamente seus conceitos, aprofundamentos e arroubos — me ficou a forte impressão de que aquele homem não havia titubeado: descobriu a Fonte e quis ver-lhe o fundo, “que bem sei eu a fonte que mana e corre, mesmo de noite” (Poesias, “Sei bem que a fonte”).

            João da Cruz foi cantado no disco “Solidão Sonora”, da Irmã Míria Kolling. Na noite sossegada, as criaturas todas se afinam de tal modo entre si, que a alma capta essa sintonia como música elevadíssima, música “calada”, em que se degusta a delícia da música e o divino sabor do silêncio: experiência de solidão sonora (Cântico XV, 25-27)... O disco foi rapidamente assimilado por frades jovens e seminaristas. Agradáveis melodias freqüentemente usadas em encontros. Quando alguém puxa “Caminho é noite escura, mas, ó feliz ventura, sair, indo à procura do Amor do meu Amado!” — é aquela onda maravilhosa de som e fé a ecoar pelos recantos de onde se celebra!

            Carmelita professo desde os 16 anos, eu mal havia lido, em português, a “História de uma vida”, de Teresa de Lisieux e “Fundações”, de Teresa de Ahumada, também em português. Daquele me ficou a impressão de que era como as “pílulas do Doutor Ross[1]: por fora, cor-de-rosa e doces; por dentro, amargas como fel. Da leitura de Teresa brotou em mim a admiração por uma contemplativa de incrível realismo e persistência. De João de Yepes, quase nada, somente algumas poesias que passaram por minhas defesas, dada a minha queda pelo exercício poético.

            Carmelita sempre, passei pelos vinte cinco anos de vida consagrada em quase nulo nível de conhecimento dos grandes representantes da santidade e da literatura do Carmelo, que, em termos, nem nossos são. Antes dos cinqüenta anos, porém, num dia desses, comuns por absoluta igualdade com os dias comuns, um dos nossos jovens estudantes, me sai com esta frase: “Na tarde de nossa vida, seremos examinados no amor”, dizendo que gostava imensamente dela. A partir de minha ignorância, observei-lhe que a frase entrou em mim como se fosse um raio de revelação e perguntei-lhe: de quem é? “De são João da Cruz”, respondeu-me, “Ditos de Luz e Amor”. Nem sabia que João da Cruz escrevera os tais ditos. A vergonha me levou imediatamente à biblioteca conventual em busca das obras completas do santo, e achei a frase: “Ditos”, nº 58, na edição consultada. Encantado, cresceu meu interesse por João da Cruz e resolvi ler seus escritos.  Tenho lido muitíssimo pouco, na verdade, mas até hoje agradeço àquele frei jovem. E bendigo todos os formadores que, em anos mais recentes, levaram seus pupilos a ler e conhecer melhor os nossos místicos: um deles me fez preferir o “antes tarde” ao “nunca”!

            Lembro-me do Frei Cláudio van Balen, em Belo Horizonte, com o grupo do CEPA[2], lendo, estudando e comentando a poesia “Noite Escura”, com uma profundidade que iam buscar à vida e à mente. Lembro-me do Frei Tinus van Balen, em Mogi das Cruzes, passando-me a riqueza do que João da Cruz ensina sobre o Silêncio que dá origem à Palavra. Lembro-me da carmelita Lacyr Schettino, que, em seus arroubos de poeta, produziu traduções competentes dos poemas joaninos. Lembro-me de uma tarde de teatro, em Diamantina, com que os terceiros carmelitas celebraram com arte o sofrimento causado a João pelas duas Ordens. A essa altura eu já havia lido um pouquinho mais das artes poéticas e doutrinárias do pequeno grande homem, gigante da vida espiritual, em quem de certa forma se apoiava Madre Teresa, mesmo que uma vez o tenha chamado jocosamente de meio frade.

            Lembro-me da Irmã Aurora, colega de Cetesp[3], por ocasião de uma visita sua a Itu, onde, após alguns anos, se recomeçava a caminhada seminarística da Província. Conversávamos sobre as peripécias da formação e eu reclamava de não sentir o afeto dos seminaristas. Com a franqueza que a caracteriza, mas com a delicadeza de amiga querida, deu-me esta sugestão: — “Martinho, se você acha que não é amado, faça-se amar”. Fiquei embatucado por algum tempo com a aparente rudeza da frase. Instruído, porém, por um frade jovem ainda na Filosofia, encontrei praticamente a mesma sugestão em João da Cruz (Carta a Madre Maria da Encarnação, Segóvia, 1591): “Onde não existe amor, coloque amor e encontrará amor”. Sem ser carmelita, a Irmã pareceu mais por dentro do Carmelo e de seus autores místicos do que o membro da família!

            Dali em diante, fui descobrindo a razão de João da Cruz ter escrito à Irmã Maria sobre a importância extrema de amar e de inventar cotidianamente o amor, se quisermos viver de amor. Quem espera por amor e nada faz para que exista, esqueceu-se de que Deus é pura iniciativa e fonte de amor. O imobilismo espiritual não é próprio de quem vive do Senhor!

            Sou entusiasta de Gustavo Gutierrez desde que me envolvi com sua linha de reflexão teológica, mesmo que não tenha me capacitado como praticante dela. Ao ler e meditar seu livro “Beber no Próprio Poço”, numa das primeiras edições em português, topei com algumas páginas que me encheram de orgulho. Estão no capítulo II, parte III, onde se fala do povo em busca de Deus, de sua espiritualidade e do modo de ser cristão na realidade latino-americana de então. Trata-se, à época, da “noite escura da injustiça” que recobria a América Latina, um autêntico caminho no deserto, cuja travessia se consuma na forma de uma progressão de três noites ou três partes da noite até à união com Deus. A bela interpretação de Gustavo, com base na prosa e nos versos do santo, descreve como o místico carmelita poderia ajudar a caminhada de libertação, até que se anunciasse a aurora de um novo dia, quando o caminhante repousaria com o rosto reclinado no peito do Amado.

            Continuo a dever em matéria de São João da Cruz. De vez em quando continuo a usufruir do dito de luz e amor sobre o julgamento com base no amor. Sinto-me suavemente impelido a meditar sobre a lei que alguém um dia disse que é a mais profunda da vida: a Lei do Amor. Amar o Eu como medida ou critério para um exercitar-se mais adequado no amor. Amar o Homem e a Mulher, irmãos e irmãs, como uma comprovação de que o Último amor, que é também o Primeiro, escolheu você para expandir a verdade vital dessa lei! Assim se preparam o homem e a mulher para enfrentar o julgamento do próprio Amor. Este não precisa de outras leis para instruir a sentença. Oferecidas à consciência, passaram as leis por diversos filtros de circunstâncias, e se mostram agora no teimoso pisca-pisca da própria conclusão final do indivíduo. Se o amor é a lei mais profunda da vida, então o coração sabe qual é a conclusão, pois “o coração tem razões, que a própria razão desconhece” (Pascal). A sentença a partir do amor, na boca do Amor eterno, deve possuir a delicadeza de uma brisa e a força avassaladora de uma tsunâmi — definitiva.

            Tudo por causa do meio frade que ajudou Madre Teresa de Ávila a realizar o que lhe ditava a consciência: a reforma de uma espiritualidade com admirável potencial de serviço à sociedade; uma espiritualidade antiga necessária aos tempos modernos de então e à modernidade de sempre. João da Cruz, o pequeno espanhol decidido, um dos maiores poetas da língua espanhola e da literatura mística, foi chamado e não titubeou: deixou que o Espírito o transformasse em nada a fim de que o Senhor criasse tudo que um santo é. Elevou-se assim ao cume do monte Carmelo. Atravessou assim a noite escura da aventura humana que ousou enfrentar o desafio de Deus. No fim de sua história pessoal, soltou aos quatro ventos da vida o cântico espiritual sobre a chama viva do Amor que o consumou sem consumir.

[1] Remédio antigo.

[2] Grupo de espiritualidade de índole carmelita (paróquia do Carmo – BH, MG)

[3] Curso de atualização para formadores, Rio de Janeiro.