Em 11 de junho de 1977, a Congregação da Causa dos Santos dava permissão para a publicação do decreto de abertura do processo canônico sobre o martírio de Isidoro Bakanja, na diocese de Mbandaka-Bikoro, no Zaire.

A história da paixão deste jovem leigo, das mais emocionantes pelo candor e firmeza de fé, é quase desconhecida fora da África, mas tem características tais que a tornam incrivelmente atual. A vítima, primeiramente, é um leigo de condição humilde, que recebeu o batismo há pouco: é um neófito. É um operário que emigrou à procura de uma ocupação que lhe consentisse melhorar a situação econômica e ajudar os familiares. O perseguidor não é um pagão, mas um cristão europeu que rejeitou o batismo e é animado por fobia anticlerical: a África aproxima-se do evangelho, a Europa distancia-se. Enfim, a espiritualidade deste jovem negro está impregnada de devoção mariana: a recitação do terço constitui para ele a fonte cotidiana de elevação a Deus e de fortalecimento espiritual.

As acusações, em virtude das quais é sacrificado, são substancialmente duas: 1ª - Ele usa o Escapulário de Nossa Senhora do Carmo e não pretende separar-se dele nem por um instante; 2ª - Vai rezar no bosque, porque isto lhe está proibido em casa. O Bankoto Malia, isto é, o Bentinho, lhe será arrancado no momento do suplício, mas espiritualmente permanecerá eternamente com ele, será sua veste nupcial que o introduzirá no banquete sem fim.

O AMBIENTE EM QUE VIVEU

A paixão de Bekanja nasce e cresce enquanto o cristianismo dá os primeiros passos lentos na África negra, particularmente na região que tem por capital Mbandaka, a cidade a que os colonizadores deram o nome de Coquilhatville. A região se estende na área centro-setentrional do Zaire, em pleno ambiente equatorial. Mesmo agora, esta extensa planície de leves ondulações do solo não é muito hospitaleira e difícil de ser atravessada em razão da falta de estradas, dos pântanos, das insídias da floresta e das doenças. Condições muitas vezes proibitivas, tornam difícil o trabalho, a evangelização e o desenvolvimento das capacidades humanas. Na época do Bekanja, não se havia desencadeado o processo da modernização. Mesmo o da missão estava apenas nos projetos das autoridades civis e eclesiásticas belgas. Os padres trapistas de Westmalle só em 1895 assinaram a convenção pela força da qual a região lhes era confiada).

Não conhecemos as circunstâncias, através das quais Bekanja bateu à porta da fé. É certo, porém, que ele foi um dos primeiros habitantes da sua região a pedir o batismo.

Nasceu em Bokandela, nas proximidades de Mbilankamba, entre 1880 e 1890. Seus pais se chamavam Iyonzwa e I nyuka e o irmão mais velho Bokungu. Da sua infância, nada se sabe: o primeiro documento referente a ele é o do seu batismo, ocorrido na paróquia de Santo Eugênio, em Bolokwa Nsimba, isto é, em Mbandaka, a 6 de maio de 1906. Deste registro, apreendemos também, com certeza, a data da sua Crisma (25de novembro de 1906) e o da sua Primeira Comunhão ( 8 de agosto de 1907 ). A data da sua morte geralmente vem indicada na Festa da Assunção de 1909. Outros testemunhos mostram hesitação ao indicar tal morte, mas, se existe diferença, é de dias ou até mesmo de horas.

O encontro de Bekanja com a fé cristã teve como moldura o ambiente de trabalho. Nos idos de 1904-1905, ele abandonou o torrão natal, á procura de trabalho melhor remunerado. No cento da região havia construção de casas destinadas aos técnicos que a sociedade Anônima Belga (SAB),que tinha assegurada a exclusiva exploração dos recursos agrícolas e minerais, enviara para aquela zona. Bekanja foi empregado como servente de pedreiro e parece que, com o tempo, fez notáveis progressos nesta arte. Em Mbandaka, por razões óbvias, se dera início também à atividade missionárias dos trapistas . Um catecumenato havia sido aberto pelo padre Gregório VanDun e pelo padre Robert Brepoels. O padre Gregorio Debrulle, que dará assistência a Bekanja no leito de morte, desenvolvia, juntamente com outro padre, a atividade de missionário itinerante. O jovem operário, ao ter notícia, mediante um catequista, da obra dos missionários, pediu para inscrever-se no catecumenato e deu início à caminhada da sua iniciação cristã.

UM ANTICLERICAL BELGA TRANSPLANTADO PARA A ÁFRICA

Por razões que ignoramos, após um breve período de permanência em Mbandaka, Bekanja decidiu mudar de ares. Não sabemos se antes se dirigiu ao seu povoado natal. Sabemos só que pela primeira de 1909 ele se acha ao serviço de André Van Cauteren (Longange), um funcionário nascido em Bruxelas, administrador da empresa SAB de Ikili, como empregado doméstico. As casas dos brancos, naquele tempo como agora, regurgitam de empregados negros para a cozinha, jardinagem, manutenção da casa.  Ao serviço ao mesmo Van Cauteren-Longange, estão também diversos servos e guardiães, além das concubinas.

A diligência e o zelo de Bekanja são atestado unanimemente por todos os seus companheiros de trabalho. O seu colega Mputu Mboyo, na pesquisa efetuada por P. De Witte em 1913, quando alguém surgiu a hipótese de que ele tivesse sido torturado porque havia cometido roubo, reagiu assim:

Não é verdadeiro! Isidoro não havia furtado. Longange não o puniu por um latrocínio. Se tivesse roubado, certamente eu estaria a par: morávamos na mesma casa. Isidoro nunca tirou nada de alguém, como também jamais teve relações com alguma das concubinas de Longange. Alem disso, Isidoro não ficou muito tempo em Ikili: a sua flagelação aconteceu quando ali se achava há dois meses.

 Uma outra hipótese foi aventada, com a intenção de inocentar Van Vauteren: Bekanja teria mexido com alguma de suas concubinas. A mesma testemunha, que partilhava trabalho e teto com ele, desmentiu de maneira incisiva esta suposição também:

 - Não vejo nada de mal em Isidoro, acrescentou ele. - Eu residia com minha esposa e ele ocupava o outro lado da casa. Era solteiro, mas nunca ouvi dizer que ele havia tocado uma mulher. Era muito afável com todos, tanto negros como brancos. Nunca teve atritos. Rezava muito.

A este propósito, cumpre notar que aos africanos não foge absolutamente nada da vida, da atividade e até dos projetos e dos pensamentos dos seus colegas de trabalho: se algum aspecto da existência da ocasião a críticas, pode-se estar certo que isso é perfeitamente conhecido por toda a comunidade que o rodeia.

Um outro colega de trabalho em casa de Van Cauteren, Joseph Iyongo, falando com P. de Witte, foi de uma precisão acima de qualquer crítica:

- P. Luís, não creia naqueles que vêm dizer-lhe que Isidoro foi chicoteado por causa disso ou daquilo. Foi chicoteado unicamente porque era cristão e porque usava o Escapulário, a veste de Nossa Senhora.

O mesmo Iyongo, na sua linguagem ingênua, mas de olhos abertos para os fatos que se dão ao seu redor, nos dá a chave para iluminar o ódio anti-cristão que dominava Van Cauteren-Longange. Este transferia para o coração da África as diatribes que, em Bruxelas, punham laicistas e anticlericais em luta sem interrupção contra a Igreja.

Diz o Criado Iyongo: - Mais de uma vez, ouvi Longange repetir: “Não quero nenhum sacerdote aqui! Se encontro um deles, o mato!” Disse a mim: “Se um dia você for ter com o missionário, acabo com sua vida, corto-lhe a cabeça! Naquela época, eu não tinha idéia da religião (cristã), desconhecia completamente a oração, não tinha idéia dos missionários. Perguntei a Longange, que coisa era sacerdote: “Na Europa não existem padres?” Ele me respondeu: “Não, entre nós não existem... É coisa do passado... Na Europa conseguimos fazê-los desaparecer”.

- Eu dizia para mim mesmo: “Se padre é alguma coisa do passado, algo de mau, então por que Bulamatari (Rompe-rochas, o apelido de Stanley, aplicado depois do colonialismo) não o extermina? Por que lhe permite que venha ter conosco?... Eu não acreditava naquilo que Longange falava. Não creio que padre seja um nada, um zero, como ele afirma.

Van Cauteren não podia suportar que Bekanja rezasse em sua casa. Proibiu-lhe severamente. Não podia engolir que um criado seu mostrasse capacidade de pensar com a própria cabeça. E sabia que no catecumenato os africanos aprendiam noções que desenvolviam sua personalidade. Ele queria servidores camareiros, guardiães e concubinas, o mais possível privados de riqueza mental e espiritual: animais de carga incapazes de pensar e de alimentar idéias pessoais. Visto que Isidoro era dedicado ao trabalho, preciso e honesto, o patrão tomava consciência que ele exercia um silencioso, mas importante influxo sobre os companheiros de trabalho. Se todos aprenderem a rezar, pensava ele – aprenderão também a pensar com a própria cabeça e isto não deve acontecer.

FLAGELADO POR AMOR A NOSSA SENHORA

Isidoro, nos momentos de saída livre de casa, ia para além do pomar, na vereda ladeada de bambus e de grandes árvores. Ali desfiava o terço. Desta oração tirava força e alegria. Na volta, as reprimendas caíam sobre ele. Mas como antes os apóstolos foram julgados diante do Sinédrio, assim também o jovem trabalhador analfabeto do Zaire se dirigia segundo a inspiração do Espírito: “Cumpre obedecer antes a Deus que aos homens”. E desobedecia ao tirano.

A primeira flagelação teve lugar uma manhã. Van Cauteren, ao ver o Escapulário o pescoço de Isidoro, foi tomado de fúria: Tire esse negócio! gritou. Isidoro respondeu: “Não o tirarei nunca. Arranque-me se quiser!” O patrão chamou o seu guarda-costas, Iseboya, e lhe deu ordem de chicotear Isidoro. Foram-lhe aplicados 25 golpes de chibata.

Bekanja não abandonou suas práticas religiosas. Van Cauteren estava decidido a dobrar a resistência deste cristão de 24 quilates. Um dia, em pleno meio-dia, Isidoro dirigiu-se ao seu refúgio habitual: a espessa vegetação ao lado da terra batida se transformara em uma catedral edificada pela natureza equatorial. O patrão, não o vendo em casa, mandou Iseboya procurá-lo. “Por que você vai lá?”, perguntou-lhe. “Vou em razão das minhas necessidades naturais!”, respondeu Bekanja. “Não é verdade, você vai para pôr em prática os truques de padre!”

A ira do patrão chegou ao paroxismo. Lançou-se contra o jovem, encheu-o de socos e pontapés, arrancou-lhe o Escapulário e o atirou ao cão, que, meneando a causa, se pôs a brincar. Ordenou a Beongele, um tiranozinho da região que partilhava o seu ódio anti-cristão, que o flagelasse não com a chibatada comum, mas com um chicote de pele de elefante que tinha preparado prendendo-lhe dois pregos. Passemos a palavra ao próprio executor material do assassínio:

Comecei então a chicoteá-lo, mas com outro objetivo; ocultei os pregos na mão. Longange percebeu e gritou: “Não é assim! Bata com os pregos!” Segui as duas ordens, a princípio levemente, mas Longange gritou: “Assim não! Mais forte!” Então me enchi de medo, porque Longange é um branco perverso, e o golpeei mais forte. Quando Isidoro se contorcia pela dor, Longange pressionava o pé sobre seu dorso a fim de impedi-lo de mover-se e, assim, também o golpeou com seus pés. Tive de chicoteá-lo por muito tempo: contei entre 200 a 250 golpes. Bekanja foi chicoteado tanto que no fim me doía o braço. Enquanto o golpeava, duas sentinelas o seguravam: Iseboya segurava-lhe os braços, Bolonge imobilizava-lhe as pernas. Depois da flagelação, Isidoro foi levado à prisão.

COMO OS PRIMEIROS MÁRTIRES

Quando se escreve a história das cristandades no Terceiro Mundo, sobretudo das mais pobres, é espontâneo ressaltar os pontos que ela tem em comum com a história das velhas cristandades, aquelas do mundo clássico e, mais ainda, com a história da paixão do Mestre e dos seus primeiros seguidores. Durante a Paixão, Jesus teve de aparecer diante do pretório de Pilatos, mas também perante a corte de Herodes, rodeado de cortesãos, mulheres de má vida, expoentes debochados de uma direção corrupta e corruptora. Também o martírio de Bekanja se deu frente a um grupo de pessoas, que efetuavam a exploração de uma terra conquistada a golpes de tratados de chacelerias, sem consultar de nenhum modo os interessados, considerados objetos e não pessoas. A testemunha Mputu nos dá a lista das pessoas, que depois de uma refeição, assistiram sem emoção à tortura de um jovem operário, culpado somente de seguir a sua consciência, afirmando no coração da África negra o direito à liberdade e à dignidade do serviço de Deus e dos irmãos.

Eles eram, além de Longange e de Lomane, um outro branco, cujo nome se omitiu, e as respectivas concubinas. Registramos os seus nomes porque, no fundo, eram vítimas inconscientes, não por razão de infâmia mas por fidelidade histórica: Maria Mputu, Ekila, ambas trazidas de longe, e duas mulheres daquele lugar, Margarida Isako e Teresa Mdombe. Como é fácil deduzir dos seus nomes, elas eram cristãs.

Parece-nos muito oportuno escutar a narração do martírio também por uma outra testemunha, Mputu Mboyo, companheiro de trabalho de Bekanja e seu auxílio em diversas ocasiões, mesmo no final, quando o mártir foi encaminhado para Yele, mas caiu aniquilado ao longo do caminho.

-Eles haviam chicoteado Isidoro. A parte inferior das costas se tornara uma grande ferida. Longange havia fixado dois pregos no chicote feito de pele de elefante. Isidoro perdia muito sangue. Mais tarde, lavei suas calças ensangüentadas, tirei de seu bolso o terço e o dei a um parente ou amigo seu, Ifaso. Os dois são da mesma aldeia. Penso que foi Ifaso quem denunciou ao tribunal os maus tratos infligidos a Isidoro. Atualmente, está em Léopoldville ou nas vizinhanças. Quando Isidoro foi torturado, Ifaso trabalhava em uma das embarcações da SAB. Durante a flagelação, Longange arrancou o Escapulário do pescoço de Isidoro e atirou-o ao chão. O cão, então, o pegou.

-Depois da tempestade de golpes, Isidoro não estava mais em condições de andar. Longange mandou que fosse levado à prisão, onde diversos negros estavam presos em cadeias. Longange fechou as axilas de Isidoro com anéis de ferro, que ele mesmo forjara, ligados a um peso e fechados com um cadeado. Isidoro ficou na cadeia uns dois ou quatro dias. Quando precisava satisfazer sua necessidades pessoais, nós tínhamos de segurá-lo, porque não conseguia mais mover-se. Durante todo o tempo em que ficou preso, eu e Lyongo, o criado de Longange , lhe levamos ocultamente alimento. Tínhamos medo que Longange nos visse e nos chicoteasse, porque ele é um branco mau”.

Com a intenção de acabar tudo, Van Cauteren ordenou a Bekanja de ir com Reybders a Isoko, um povoado perdido na floresta. Pretendia tirá-lo do meio: uma viagem tão desastrosa, entre pântanos e ataques das feras, teria acabado com ele certamente. Além disso, estava prevista a vinda de W. Dorpinghaus-Potatama para uma inspeção geral na fazenda e ele queria eliminar qualquer pretexto de discussão.

- Bekanja deu alguns passos na estrada em direção a Yele, mas acabou por cair por terra, atrás de uma moita, privado de forças, tomado de fome e frio. Potatama, deixado o vapor, para ir à fazenda de Langange, passou ao lado da moita e ouviu os gemidos do coitado, que se dirigiu a ele dizendo: “Branco, olhe como Longange me reduziu!” Levantou a camisa e mostrou sua horríveis chagas.

- Dorpinghaus-Potatama debruçou-se sobre ele e socorreu, mas Longange, sabendo que Bekanja esta ali perto, mandou o fiel Iseboya com o fuzil para exterminá-lo definitivamente. Potatama o deteve. Chegou também Longange, que desejava surrar o coitado. Potatama segurou-lhe o braço”. A testemunha neste ponto notou: “Os dois falaram muito animadamente em francês, eu não entedia, mas se soube depois que Potatama havia dito que Longange sofreria um processo, como de fato aconteceu, e com uma condenação exemplar: foi transferido para outra fazenda da SAB.

“SE MORRER, REZAREI POR ELE NO CÉU”

Bekanja foi abrigado em uma cabana na aldeia de Busira. Os vizinhos cuidam dele com carinho, o padre George Dubrulle, que se acha nas cercanjas, vem à sua cabeceira e o assiste até a morte. O mártir lhe diz: “Não tenho nada contra o branco. Ele me bateu, mas é problema dele e não meu. Se morrer, rogarei no céu por ele”.

O padre George lhe pergunta: “Isidoro, por que o branco o surrou?” Ele responde: “O branco não ama os cristãos. Não queria que eu usasse o Escapulário de Nossa Senhora. Quando eu rezava, me repreendia sempre... Não faz mal. Se Deus quiser que viva, viverei; se quiser que eu morra, morrerei, É a mesma coisa”. Morreu repetindo ainda uma vez as palavras do perdão: “Se morrer, rogarei por ele no céu”.

A história de Bekanja se encerra em plena pobreza, assim como transcorreu toda sua vida. Pobreza de documentação, de narração. O essencial, porém, está salvo: é a doação total da vida, na fidelidade irremovível às promessas batismais, mesmo quando tudo parecia capaz de não mover este pobre de Javé na generosa doação do perdão, nos passos do ensinamento do Crucificado. Mounier advertia justamente o mundo: “O que o africano tem para dizer, ainda não o disse. Mas o branco desconfie quando pensa que o negro não tem nada dizer”. Certamente, Bekanja disse tudo, em uma palavra só: Fiat! Ele grita em nome do seu continente: Presente! Estamos no seguimento da cruz. Somos talvez os últimos a chegar, mas somos os mais jovens. Agora, toda a humanidade pode caminhar. Não falta mais ninguém!