Do dia 6 de maio tintilou o telefone no Convento do Carmo de Nimegue. Foram atender: Era a voz de Frei Tito! Por uma deferência extraordinária permitiram-lhe comunicar pessoalmente aos confrades a sua próxima partida para o campo de concentração de Dachau. Uma carta com a mesma data dá mais pormenores. Desde 28 de abril Tito encontra-se outra vez em Scheveningen, esperando a sua deportação. Aos 16 de maio segue para a prisão de Kleef, na Alemanha, onde permanece até 13 de junho, provavelmente. Parece que o Bom Deus deseja confortar Seu servo fiel por mais um período de sossego contemplativo antes de uni-lo a Si definitivamente pela segunda provação horrorosa que vai ser para ele o campo de Dachau. De Scheveningen nada sabemos, a não ser que foi instaurado um novo processo. De Kleef sabemos pouco. O Diretor não é mau e o Capelão tem alguma influência sobre ele. Frei Tito pode guardar o Breviário, o terço, a caneta e algumas outras coisas. Viram-no, às vezes, rezando o Breviário ou escrevendo tranqüilamente. Aqui recebe ainda uma grande consolação. Há uma capela e nos domingos e nos deis dias de Pentecostes pode assistir à Missa e comungar. Depois de quatro meses de abstinência!

A alimentação é ainda mais deficiente do que no campo de Amersfoort: sopa de batata ou de couve para o almoço e algumas fatias de pão duro para o jantar. Duas vezes por semana um pouco de manteiga e aos domingos um pedaço de lingüiça. Camuflando a realidade, Frei Tito escreve: “Nunca estive com tanto apetite como atualmente”.

O abandono de tudo às mãos paternais de Deus não é um fatalismo inerte. Tito luta pela vida. Em Kleef dirige um requerimento às autoridades, expondo a nu a sua situação e pedindo o internamente num dos conventos da Ordem na Alemanha. Refere-se às suas cólicas estomacais, às insônias que ainda mais o enfraquecem. A memória começa à falhar assustadoramente. Durante dias esforçou-se para recordar o nome do filosofo francês Bérgson. Sintomas de alucinação se apresentam: freqüentemente parece ouvir o repicar de sinos. Jogando dama, o tabuleiro continua a atrapalhar-lhe a vista durante vários dias, dividindo tudo em quadrados. O menor esforço causa um cansaço mortal. O organismo intestinal está numa debilidade extrema, com todas as conseqüências humilhantes. O requerimento traz a data de 12 de junho de 1942.

O cálice porém, não passa. Frei Tito é deportado para o campo de Dachau logo no dia seguinte, ao que parece. Dachau... o inferno nazista, onde campeiam a mais crua bestialidade pagã e a espiritualidade da civilização cristã. Dachau... um produto da civilização nazista e comunista, onde os chefes nazistas e os algozes comunistas rivalizam no combate à cultura representada pelos sacerdotes. A apostasia da Europa atinge aqui o grau mais negro e mais baixo. Com as humilhações mais desumanas e vergonhosas, de requintes satânicos, os algozes atacam os sacerdotes e os pastores, querendo tirar-lhes as últimas reservas espirituais. Apenas conseguem torturar e arruinar os corpos, o espírito continua firme e inabalável em Deus.

Frei Tito chegou a Dachau no período mais brutal, que durou de abril até dezembro de 1942. Reinava uma disciplina de ferro, a arma dos impotentes. O dia começava às quatro horas. Até o apelo geral às 4,45 tinham tempo para arrumar a cama, etc., tomar café com um pedacinho de pão, se havia, e conversar um pouco. Tito entretinha-se então com o Irmão leigo Frei Rafael, Carmelita, preso desde o início da guerra e que depois da sua libertação descreveu a vida de Frei Tito em Dachau. Juntos iam diariamente a um barracão vizinho, onde estavam mais seis Carmelitas, estes da Polônia. Dois deles trabalhavam com Tito no mesmo comando de trabalho.

Logo depois do apito todo se dirigiam aos seus respectivos lugares de trabalho. Deviam marchar impecavelmente, cantando umas canções nazistas. Essa marcha de 20 minutos era um verdadeiro martírio para Tito, cujos pés apresentavam feridas de quatro a seis centímetros sempre abertas. Nos últimos dias os dois Carmelitas poloneses deviam arrastar a pobre vítima, que já não agüentava mais a marcha. Urna vez fora da vista dos guardas, deitavam-no no chão afim de que descansasse um pouco. E assim repetisse a marcha quatro vezes por dia. Voltavam do trabalho às onze horas, para o “almoço”: sopa de batata, de nabo ou de couve. Muitas vezes Tito tomava só a água e dava o resto a algum companheiro, dizendo: “Tome, Você está precisando mais do que eu!” Ao meio dia e quinze iniciava-se outra vez a via sacra para o trabalho. As sete horas estavam de volta no campo onde deviam reunir-se para o grande apelo. Alguns milhares de presos enfileiravam-se para essa cerimônia que por vezes era bastante demorada. Vários não resistiam e desmaiavam. Quando alguns impacientemente perguntavam: “afinal por que é que estamos esperando aqui?”, Tito respondia fleumaticamente: “bem, esperemos mais um pouco, temos tempo para isso”.

Freqüentemente havia depois desse apelo ainda um exercício especial para os sacerdotes que, por castigo, deviam marchar mais um pouco, cantando os hinos nazistas. Em seguida podiam tomar o jantar: -um pouco de pão molhado. Esse pão era uma questão de vida e de morte para os presos sempre famintos e exaustos em conseqüência dos pesados trabalhos de quase doze horas, além das marchas. Conscienciosamente o pão era dividido em quatro partes, que em seguida ainda eram rigorosamente conferidas. Qualquer falha era escrupulosamente corrigida. Às oito e meia o silêncio da noite descia sobre o campo e o asno fazia esquecer por algumas horas a miséria e a fome.

Algumas semanas deste regime bastaram para aniquilar a resistência de Frei Tito. Todos tinham compaixão dele menos os algozes, que de preferência o escolhiam para objeto das suas demonstrações de zelo e de força. Frei Tito foi muito maltratado, mais do que os outros.

Certa manhã foi dado o sinal para abandonar o barracão. Já fora, Frei Tito percebeu que se tinha esquecido dos óculos. Queria voltar, mas os companheiros o impediram. O guarda comunista, armado dum pau, postara-se à entrada, para apressar um pouco os atrasados ou acolher carinhosamente aqueles que tentassem retornar ao barracão. Depois de alguns minutos ele se retira para o seu quartinho ao lado da entrada. Tito aproveita o ensejo e já se encontra na sala antes que os outros o possam impedir. Rapidamente apanha os óculos e já se prepara para sair. Mas o guarda, percebendo alguma coisa, talvez algum ruído, vira-se e vê Tito. “O que há, Brandsma?”, pergunta ele, levantando-se e empunhando o pau. “Tinha-me esquecido dos óculos”, responde Tito, e ao mesmo tempo tenta passar, ligeiramente pela entrada. Um soco brutal na cabeça prostra-o por terra e pauladas impiedosas chovem sobre a pobre vítima. Saciado o seu sadismo o comunista volta para seu quartinho. Tito levanta-se, o sangue escorrendo do nariz e dos lábios e... sem os óculos, que haviam sido despedaçados logo com o primeiro soco. Calmo, sem perturbar-se por tão pouco, ele junta-se aos outros e passa a dar o ponto diário da meditação.

Depois do almoço os presos deviam limpar a sua panelinha e caneca de alumínio, que não podiam apresentar a mínima mancha. No entanto havia só cinco torneiras para uns quinhentos presos. Numa ocasião um dos brutos acha que a panelinha de Tito não está limpa. Num acesso de fúria arranca-lhe e com ela bate-lhe na cabeça e no rosto, correndo o sangue aos borbotões.

Repetidas vezes é prostrado no chão com socos e pauladas, ou jogado escadaria abaixo. Um dia a raiva de um dos guardas explode contra um grupo de presos, Tito torna-se a vítima; um soco o derruba, sendo em seguida maltratado de uma maneira horrorosa. Acontece então o incrível: a calma e a paciência do sofredor desarmam o algoz que, na presença de todos, balbucia uma desculpa.

Não obstante todos esses ataques contra a matéria mantinha-se firme o seu espírito. “Devemos dar graças a Deus”, costumava dizer “porque nos achou dignos de sofrer tudo isso; Ele há de sustentar-nos com o Seu auxílio”. Diariamente comunicava aos outros da plenitude de sua alma contemplativa, escolhendo um ponto de meditação da doutrina de Santa Teresa. Faziam essa meditação andando, pois os guardas não o podiam perceber. No seu zelo estendia o apostolado até ao chefe comunista do barracão, que era um católico renegado, mas não obteve resultado, pois quase sempre devia fugir apressadamente para não receber umas pauladas. Estava entre presos um sacerdote polonês, grande devoto de Nossa Senhora do Carmo e muito desejoso de ser recebido na Ordem Terceira. Já tinha começado o Noviciado quando fora transportado para Dachau. Receando não voltar vivo para a Polônia, a sua grande aspiração era fazer a Profissão nas mãos de Frei Tito. Depois de umas “conferências” e uma novena a Nossa Senhora do Carmo, o sacerdote fez a sua profissão, recebendo o nome de João da Cruz. Frei Tito impôs-lhe as mãos, enquanto o neo-professo prometia completar mais tarde as cerimônias e fazer confirmar oficialmente a Profissão. Tudo isso foi feito em plena rua, no meio dos transeuntes, pois qualquer manifestação religiosa era rigorosamente punida.

Havia uma capela no campo de Dachau para os sacerdotes alemães. Aos outros presos, porém, era severamente proibido sequer estacionar na sua proximidade. Quantas vezes, na escuridão de manhã cedo, visitando os confrades poloneses no outro barracão, Frei Tito e Frei Rafael contemplavam com profunda saudade o bruxulear das velas do altar. Sentiam sede e fome de Deus, daquele que é a vida das almas. Fizeram então uma combinação: Se “Irmão”, disse Tito, “apesar de Você não ser sacerdote” podendo, traga-nos Nosso Senhor. Ninguém vai suspeitar de Você”. Frei Rafael foi falar com um dos sacerdotes alemães e os dois combinaram encontrar-se na escuridão logo depois do apelo, num determinado lugar, onde o sacerdote lhe entregaria de vez em quando uma Hóstia consagrada. Assim Rafael recebia freqüentemente o Santíssimo, guardado num pedacinho de papel ordinário. Entregava a hóstia a Frei Tito, que a dividia em duas partes. Uma parte era distribuída aos diversos sacerdotes e religiosos, a outra era conservada. Durante o dia Frei Rafael era o escolhido para guardar Nosso Senhor. Na hora de deitar este devolvia o precioso Tesouro a Frei Tito, que O escondia atrás do couro de um estojo de óculos. Desta maneira Nosso Senhor quis estar presente entre os Seus servos tão duramente provados, participando da sua miséria e confortando- os com o próprio Corpo e Sangue. Não, Nosso Senhor não abandona os Seus.

Certa vez, no controle dos pés ao deitar, os de Frei Tito foram taxados de não estarem bastante limpos. Vindo descalço do lavatório para o barracão um pouco de poeira ficara presa em baixo dos pés ainda umedecidos. Mas um nazista ou comunista não é capaz de compreender tal coisa. A situação era perigosa, pois contra o regulamento que proibia aos presos levar alguma coisa para o barracão, Frei Tito trazia de baixo do braço a caixinha de óculos com o Divino Prisioneiro. Com uma fúria selvagem o cabo comunista lança-se sobre o indefeso “criminoso”, derrubando-o com uma paulada violenta e descarregando uma saraivada de socos e ponta-pés pelo corpo já tantas vezes espancado. Rolando pelo chão, rastejando, a pobre vítima tenta alcançar o barracão, o que finalmente consegue. Frei Rafael Tijhuis o toma nos braços e o leva para a cama. Quer consolá-lo, mas Frei, Tito olhando-o com um sorriso nos lábios, diz: “Irmão não foi nada pois eu sabia quem estava comigo”, e aponta o estojo, firmemente guardado debaixo do braço. “Vamos rezar um Adoro Te”. Depois de alguns momentos de adoração, Frei Tito dá a bênção com o Santíssimo escondido num humilde estojo. No dia seguinte, a uma pergunta de Frei Rafael, responde que não dormiu mais desde as duas horas, mas se sente feliz por ter podido fazer uma vigilância com Nosso Senhor.

Os maus tratos e o trabalho pesado na fazenda “Liebhof” (jardim de amor!) liquidaram a última resistência do corpo de Frei Tito, que enfraquecia dia a dia, mal podendo conservar-se em pé. Não queria saber de recolher-se ao hospital, pois receava os terríveis transportes para as câmaras de gás. Mas no barracão é que não podia continuar. A sua fraqueza provocava constantemente conflitos com o cabo comunista, que sempre terminavam em pauladas. Um dia Frei Rafael dirigiu-se ao posto de saúde para o tratamento de algumas feridas infeccionadas. Lá conseguiu falar com o chefe que não era mau. Tudo ficou acertado, Frei Tito devia apresentar-se no dia seguinte. O chefe ai arranjar um lugar para ele. Assim conseguiu finalmente ser internado. Mas já era tarde demais. Durante os oito dias que passou no hospital ainda recebeu algumas vezes a Santa Comunhão, graças à dedicação de um enfermeiro, excelente católico e antigo secretário particular do chanceler Bruening que, com risco da própria vida distribuía a Comunhão aos doentes. Um sacerdote que por vezes conseguia entrar no hospital garantiu que Frei T'to ainda, recebeu a Ex-trema Unção. Nos últimos três dias esteve continuamente desacordado. Chegara o fim da sua paixão. No dia 26 de julho, festa de Sant'Ana. Protetora da Ordem Carmelitana, Frei Tito entregou sua bela e heróica alma nas mãos de Deus.

Os pagãos queimaram seu corpo, mas sua alma já atingira o Fim da via mística: Deus.