Convivendo com os ídolos

 

Um segundo tema constante na espiritualidade do Carmelo é a necessidade de decidir a que Deus seguir.   Nossa tradição  nasce no Monte Carmelo, o lugar da luta entre os seguidores Yahvé e os seguidores de Baal.  Elias exortou o povo a fazer com segurança sua escolha do verdadeiro Deus.  Os carmelitas, tanto em comunidade como individualmente, têm que lutar  sempre contra as forças da desintegração e da fragmentação que trazem os interesses pelos ídolos.

Nicolas Gálico em sua  obra  intitulada Ignea Saggita, acusou os membros da Ordem de perder o caminho enquanto iam migrando do deserto à cidade e iam se acostumando a seus atrativos.  Acusou-os de seguir seus próprios desejos desordenados, com a desculpa  de um ministério necessário.  As reformas de Albi, Mantua , Juan Soret, Teresa de Ávila e Tureme continuamente recordavam aos carmelitas que deviam ter um só Deus, e  servir a esse Deus com todo o coração .

Os santos de nossa tradição sabiam o quanto é difícil encontrar e seguir a esse Deus verdadeiro e distingui-lo entre os falsos deuses que nos são oferecidos. Esta presença no profundo de nossas vidas, nós a encontramos no mundo ao nosso redor. No Cântico Espiritual  João da Cruz diz : “E todos quantos vagam, de ti me vão mil graças relatando...” Teresa de Ávila aconselhou: Deixem que as criaturas lhes  falem de seu criador” 

Em nossa exuberância pedimos à criação de Deus que seja mais do que é. Com regularidade colocamos os desejos de nossos corações em alguma parte da criação de Deus e pedimos que seja a realização daquilo que procuramos. Pedimos a alguma parte da criação que não seja criada . Tomamos um bem e pedimos que se converta em um deus.

O coração, cansado de sua contínua peregrinação, procura assentar-se e construir para si uma casa, negando-se a seguir adiante. Convive com os deuses menores,  encontrando gozo, paz, identidade, segurança e outros alívios para seus desejos. Este consolo temporal mascara um problema espiritual e também um problema de desenvolvimento humano. João da Cruz estava convencido que quando a pessoa se centraliza  em algo ou alguém que não é Deus, a personalidade se desequilibra.

Estas “prisões” criam uma situação de morte. Nenhuma coisa ou pessoa a quem eu peça que seja meu deus, e que realize meus desejos mais profundos, pode corresponder a esta expectativa. O ídolo ao qual eu peço que seja meu “tudo”, começará a derrubar-se sob essa pressão. E porque não podemos crescer mais do que nossos deuses, um deus menor significa um ser humano menor. Em conseqüência, aquilo a que estou “atado”  morre  ante  minha necessidade, e eu morro junto com ele, porque meus desejos mais profundos não podem encontrar nada nem ninguém que possa estar no seu grau de elevação e intensidade.

O dinamismo auto-transcendente de nossa humanidade nos impede concluir que já chegamos ao final da viagem. Afirmar prematuramente a vitória, enquanto estamos apegados aos ídolos, nos levaria a deixar de exercitar-nos numa autêntica auto-transcendência.  Em outra palavras, o coração já não é livre para escutar e seguir o convite do amado.  Esta escravidão do coração é o resultado do desejo desordenado.  A solução está na libertação do coração que não consegue aniquilar o desejo senão reorientando-o.

 

Relação desordenada     

Quando nossa tradição fala sobre “prisões”, ou apegos desordenados,  isto não significa que a relação com o mundo  seja um problema.  Certamente, algumas vezes o mundo é um problema.  Mas temos que nos relacionar com o único mundo que temos.  A relação com o mundo não é o problema fundamental desses  apegos, mas sim o modo como nós nos relacionamos  com ele é  que se converte em problema. Nossos santos falam a pessoas adultas cujos corações foram escravizados por alguém ou por alguma coisa que ocupou o lugar de Deus.  Não é necessariamente a pessoa ou a coisa o problema, mas sim a maneira como nos relacionamos com elas, o modo desordenado com que expressamos nossos desejos.

É irrelevante se o ídolo é valioso ou não.  A relação é o fator crítico. Um incidente na vida de João da Cruz pode ser ilustrativo. Um dos frades de João tinha uma simples cruz feita de palma.  João a tomou. O frei tinha pouco mais, e a cruz certamente não era valiosa , mas João percebeu que ele estava apegado a ela de forma desordenada. Aquela cruz tinha-se convertido em algo não-negociável,  indicando que a relação do frade com ela era desviada.

João observou que a um  pássaro preso não importa se está atado por uma corda ou por uma linha fina, de qualquer forma está preso. O coração que está escravizado pelos seus ídolos  já não é livre para ouvir o convite do amado.  João identifica uma pessoa enfeitiçada com os ídolos com uma pessoa pobremente sintonizada com Deus.  Ele estava convencido de que uma pessoa se converte naquilo que ama.  Este falso deus fomentará um falso ser.

É importante enfatizar que a tradição carmelitana não é partidária do abandono do mundo. Mas insiste numa correta relação com o mundo criado por Deus.  Sem uma boa interpretação,  pode-se entender que o Carmelo está dizendo que envolver-se com o mundo é um obstáculo para a relação com Deus.  Pelo contrário, é no mundo criado por Deus onde nos encontramos com Ele.

A tradição carmelitana se dirige à aqueles cujos corações vão ao mundo procurando sua realização e se dispersam e se dividem nessa procura. Isto ocorre quando o cristão coloca os desejos do coração nas posses e nas relações que não podem preencher a intensidade desses desejos e então começa a experimentar uma paralisia na sua vida. Esta é uma situação destruidora. Este mundo ao qual o cristão é tentado a agarrar-se freneticamente está reduzindo sua a vida através das expectativas.  E o cristão se ajusta aos ídolos, e não se transforma em Deus.

Um tema de nossos dias que se relaciona com o tema tradicional do apego é a afeição. Percebemos que todos, de uma forma  ou de outra, somos presos afetivamente, e que só a graça de Deus pode nos liberar de nossas afeições. Podemos ser ligados a coisas obviamente destrutivas, mas podemos ser também afeiçoados à Igreja, ao Papa,  às práticas religiosas, e ainda afeiçoados ao Carmelo e a Deus mas a um deus criado por nós.    

Em outras palavras, podemos pedir a alguma criatura para que se transforme em alimento para nossa fome profunda como indivíduos e como povo.  Estamos pedindo à criação aquilo que só Deus pode nos dar. Nossa tradição insiste em que nada, nenhuma parte da criação pode substituir a Deus. Só aquele que é nada (nenhuma coisa e ao mesmo tempo tudo) pode ser suficientemente alimento para nossa fome.

Quando  João da Cruz desenhou a montanha estilizada para projetar a viagem da transformação, desenhou três caminhos que levam até seu cume.  Os dois caminhos de fora, um dos bens do mundo, o outro dos bens espirituais, nenhum chega lá em cima. Só o caminho do meio, o dos nadas, alcança o cume do Carmelo. Ele explica em texto o ensinamento do desenho. As linhas do texto foram variações do mesmo tema, “Para possuir tudo, não  possuir nada” .

O texto explicativo na parte baixa do desenho nos ajuda a entender a compreensão básica que tem João do itinerário espiritual. Ele está de acordo em que fomos feitos para possuir tudo, saber tudo, ser tudo, etc.  Mas também entende que nunca  teremos o tudo se pedirmos a uma parte da criação que sacie nossa fome. Seu conselho de possuir o nada para possuir tudo é um estímulo para que nunca peçamos que alguma coisa, (parte da criação) seja tudo. Só aquele que é nenhuma coisa pode ser nosso Tudo.

Este ascetismo pode soar difícil a menos que entendamos que João está se dirigindo aos homens e mulheres que tentaram outros caminhos na vida para encontrar sua realização. Seus corações saíram à procura daquele que os ama e se viram  aprisionados, e com os corações partidos e divididos. Os conselhos de João são palavras de vida para as pessoas  que estão morrendo por falta de alimento. Ele está mostrando o caminho  da vida àqueles peregrinos  que  o perderam.

 

Um caráter  profético  

Um escritor sugeriu que a vocação carmelita é estar suspenso entre o céu e a terra, sem encontrar apoio em nenhum dos lugares.  Esta é uma forma dramática de dizer que no fundo  nossa fé, nossa esperança e nossa confiança em Deus tem que ser seu próprio apoio e Deus nos conduz mais além de nossos feitos mundanos e espirituais.   No final de sua vida Teresa de Lisieux achou  que a esperança pelo céu sustentada em toda sua vida se esvaía.  João da Cruz nos lembrou as observações de São Paulo: se já temos aquilo que esperamos, já não é esperança; a esperança está naquilo que não possuímos. A espiritualidade de João da Cruz tem sido descrita como uma contínua interpretação da natureza de Deus .

Será que esta suspeita que temos quanto às intenções e as construções humanas nos converte, a nós carmelitas, em uns eternos estressados?  Ou, ao contrário, nos permite fazer uma avaliação inteligente do coração humano e de sua tendência a criar ídolos? Não será isto realmente um exercício de libertação que vai nos libertando de todas as formas em que nos escravizamos e nos entregamos aos ídolos?  Não é a crítica carmelita um desafio para não nos apegarmos a nada, para que nada seja o centro de nossa vida, além do mistério que a envolve.  E nessa pureza de coração, somente conseguida pela ação do Espírito de Deus, somos capazes de amar aos outros e viver neste mundo sabiamente.  O desafio carmelita é cooperar com o amor de Deus, algumas vezes obscuro, que nos  vivifica e nos cura .

Esta contínua escuta para aproximar-nos de Deus, por meio de todas as palavras e estruturas que conseguimos, é a tarefa profética do Carmelo.  Que Deus seguimos? O deus de nossas afeições? O deus das ideologias ou das teologias ilimitadas? Os deuses opressores dos sistemas econômicos e políticos? Os deuses de todos os “ismos” de nosso tempo? Ou é nosso Deus o Deus que transforma , cura , liberta  e vivifica?

O arcebispo Oscar Romero foi um clérigo tradicional , cuidadoso e estudioso.  Era um bom homem , reservado, piedoso, orante.   Mas sua conversão chegou quando viu no outro o rosto de Cristo, um rosto diferente  do Cristo  de sua piedade e de sua oração, um rosto  diferente de sua teologia, um rosto diferente do Cristo familiar  à hierarquia de El Salvador. Era o rosto de Cristo no rosto do povo de El Salvador; era o rosto de Cristo verdadeiramente encarnado  na história e nas lutas do povo.  Romero disse:

Aprendemos a ver o rosto de Cristo – o rosto de Cristo que é também  o rosto do ser humano que sofre, o rosto do crucificado, o rosto do pobre, o rosto do santo e o rosto de cada pessoa – e amamos a cada um com o critério pelo qual seremos julgados: “tive fome e me deste de comer”.

Os ídolos de nosso tempo não são somente os amores pessoais e as possessões, mas especialmente  os ídolos do poder, do prestígio, do controle  e o domínio que deixam a maior parte da humanidade fora do banquete da vida.   Romero comentou:

A pessoa pobre é aquela que se converteu a Deus e põe toda a sua fé NELE, e a pessoa rica é aquela que não se converteu a Deus  e põe sua confiança nos ídolos: dinheiro, poder, bens materiais... Nosso trabalho deve procurar converter-nos a nós mesmos e a todo povo para este autêntico significado da pobreza.       

Muitas de nossas províncias tem participado na confrontação com os ídolos de nosso tempo através dos movimentos de libertação em muitas  regiões do mundo, que incluem Filipinas, América Latina, América do Norte, África, Indonésia e o Leste da Europa. Hoje em dia as diferenças entre o norte e  o sul apontam para os ídolos dos “ismos” que mantém a maioria do mundo em uma condição de marginalização.

 

Resumo

A fome do nosso coração nos lança ao mundo em busca de alimento. De muitas formas perguntamos ao mundo. Viste aquele que fez isto em meu coração e o deixou chorando? Nosso coração vai se dispersando sobre a terra enquanto vamos perguntando a cada pessoa, a cada objeto de posse  e a cada atividade que nos diga mais a respeito do Mistério que está no centro de nossas vidas.

A alma apaixonada pelos mensageiros de Deus, confunde-os com Deus mesmo. Tomamos as coisas boas de Deus e lhes pedimos que sejam deuses. O coração, cansado de sua peregrinação, tenta assentar-se  e construir um lar para si. Coloca seus desejos mais profundos nas relações, posses, planos, atividades, metas e pede a tudo isto que sacie sua fome profunda.  Pedimos muito e como nada pode corresponder às nossas expectativas, começam a desmoronar-se.  Mais e mais os santos carmelitas nos lembram que só Deus é o alimento que pode saciar a fome do nosso coração.

 

Perguntas para refletir:

1-Quais são os ídolos, os não-negociáveis, que se transformam em parte da minha vida? Quais são essas coisas  sem as quais não posso passar?  Eu as estou prejudicando com meu apego?

2-Onde e como tenho me tornado uma pessoa sem liberdade na vida?  Sinto-me livre para seguir meus desejos mais profundos? Sou livre para escutar as necessidades da minha comunidade?

3-Tenho estado inconscientemente construindo meu próprio reino no lugar de estar preocupado pelo reino de Deus? Sem perceber, tenho tirado Deus do centro da minha vida e tenho colocado nesse centro meus objetivos, meu trabalho profético, minha compreensão das exigências do reino? Ao longo dos anos tenho me esquecido de perguntar: o que é que Deus quer?

4-As paixões que me trouxeram ao Carmelo têm sido domesticadas ou vão se desvanecendo? Tenho me transformado  numa pessoa compulsivamente ativa, talvez sentindo-me mais como um funcionário de uma instituição do que como um discípulo do Senhor?