(Leituras do dia: 1Rs 18,42-45; Jo 19,25-30).

Frei Martinho Cortez, O. Carm. In Memoriam (*20 /02 1938 + 04/08 2020)

 

1 — Nas origens: capela de Santa Maria.

             É uma presença constante, “que tem exercido um vital e profundo influxo” no Carmelo. No monte havia uma capela dedicada a Maria. O carmelita, falando do “seguimento de Jesus” (Regra), cultivou naturalmente aquela que disse “sim” ao plano de Deus. Ele é sua padroeira original, que em seguida é venerada com outras formas de devoção e títulos. A veneração de Maria se prende ao fato de ela ser Mãe do Verbo de Deus, na pessoa de Jesus. Para isto ela tinha de ser imaculada (Imaculada Conceição) e, no fim, da vida, recebeu a graça de voltar para Deus de corpo e alma (Assunção). Maria, Mãe de Deus, é a Nova Eva (salvação) e a Mulher Coroada de Estrelas (Apocalipse). Tudo em sua vida, sobre a qual pouca coisa temos nos Evangelhos, é motivo de alegria, de esperança, de adoração ao Senhor. O Carmelo habituou-se a relacionar-se com ela como mediadora, protetora, santíssima, intercessora, e a lhe prestar honras, endereçar-lhe orações e imitar suas virtudes. Tornou-se um modelo de espiritualidade por sua pureza virginal, humildade consciente, sentido da presença de Deus e de serviço generoso ao próximo. Por Cristo primeiro, os carmelitas chegaram a Maria; depois, por Maria chegaram cada vez mais a Jesus! Chamavam-na de “Mãe de Deus” e “Toda Santa”, e a Ordem do Carmo passou a ser eminentemente mariana, porque, além de terem surgido na terra de Maria – a Terra Santa – foram para lá na qualidade de “peregrinos” e por causa de Jesus. Por isso ela, como verdadeira Rainha, é chamada de “a Senhora do Lugar”: sua beleza é como a beleza do monte Carmelo em tempo de floração; o tema da “nuvenzinha” de Elias é visto em Maria como seu poder de intercessão, que faz cair sobre da parte de Deus uma chuva de graças (“medianeira” – 1Rs 18, 42-45). — Ou seja: nas origens da Ordem do Carmo, Maria aparece nas citações bíblicas, nas tradições da região do monte Carmelo e na consciência que possuíam os carmelitas do papel dela na história da Salvação. Daí a história da espiritualidade carmelita revelar que a Ordem do Carmo sempre se relacionou com Maria em acentuações de afeto, ternura, cordialidade e familiaridade íntima.

 

2 — Na Idade Média: a Senhora do Lugar.

             Desde o início Maria foi para os carmelitas protetora e sua padroeira. Aprofundamentos são feitos, desenvolve-se o modo de exprimir a devoção, fica mais rico o conteúdo da fé. Chega-se a um ponto em que, entre os carmelitas, Maria é claramente venerada como a “Mãe do Senhor”, a “Senhora do Lugar” (patrona), a “Virgem”, a “Imaculada”, a “Toda Bela”, a “Mulher Coroada de Estrelas”, a “Mãe do Redentor” (Virgem puríssima), a “Libertadora” (livra das penas do purgatório) e a “Preservadora” (força para evitar no fim da vida a pena capital do inferno). — O significado de “patrona” faz pensar em dedicação, proteção, senhorio. Disso foi que nasceu a consciência de a Ordem do Carmo ter sido fundada para a hora e o serviço de Maria. Por conseqüência, tudo na Ordem era feito através de Maria: a espiritualidade, a profissão de vida consagrada, o uso do hábito e a dedicação das igrejas. Daí, também, o alcance do nome oficial da Ordem: Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. Em geral, as igrejas carmelitas recebem o nome de Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Igreja do Carmo. A profissão de consagração à vida carmelita é feita também em nome da Virgem do Carmo. O hábito oficial da Ordem, que inclui a capa branca, sinal da pureza virginal de Maria, incorporou o Escapulário, inicialmente um avental de serviço dentro de casa, nas horas ou nos jardins. O Escapulário ficou sendo um sinal de serviço a Deus pelo serviço a Maria. No conjunto de hinos e celebrações do Carmelo, mesmo as celebrações eucarísticas, incluiu-se o nome de Maria, a própria ave-maria e a salve-rainha. As orações e antífonas proclamavam as virtudes e excelências da Mãe de Deus e sua mediação. Os escritores, pregadores e teólogos carmelitas se referiam cada vez mais freqüente e profundamente das glórias da Mãe e Esplendor do Carmelo. — Do meio para o fim da Idade Média, a Ordem do Carmo dedicava a Maria grandes temas de sua espiritualidade: a “conformidade de vida” (“Tudo em Maria”, “O Carmelo é todo de Maria”); a “maternidade de Maria em relação à Ordem” (“Mãe e Esplendor do Carmelo”; tudo, até a origem da Ordem, é mariano!). O objetivo de vida segue sendo a intimidade com Deus pelo seguimento de Jesus, mas, por isso mesmo, é que o Carmelo funciona com base no ser/agir da Mãe de Deus (cf. também presença de Maria junto à Cruz: Jo 19, 25-30)

 

3 — Na passagem para os tempos modernos: a intimidade com Maria vira fraternidade.

             Ao final da Idade Média emergiu no Carmelo uma reflexão profunda sobre a “virgindade” de Nossa Senhora em sua condição de Mãe do Puro Amor (Deus). Era uma exigência decorrente da espiritualidade carmelita: para estar sempre na presença do Senhor, fundamentar-se numa vida de “coração puro e reta consciência”. Maria Puríssima e Santíssima tinha de ser modelo de inspiração e imitação. Maria então passou a ser sentida ainda mais como “companheira de caminhada e consagração”. Sua pureza e santidade deviam ser como “atitudes vitais de entrega e abandono a Deus, e de conformidade à sua vontade”. Traduziu-se tudo isso na palavra “Irmã”, com o sentido de “fraternidade na virgindade” (santidade de vida), “fraternidade na vida em comum” (comunidade de vida) e “fraternidade na pertença por consagração” (membro da Ordem). A pureza de Maria na vida dos carmelitas passou a ser vivida como “beleza”, como “ausência de mancha”, como sinônimo de “vida totalmente disponível à união com Deus”. Esta “união com Deus” se faria como de fato se deve fazer: pela aceitação plena da vontade do Senhor, pela criatividade a partir dela, pelo testemunho diante do mundo e pela profecia em favor da justiça e da paz. Santa Maria Madalena de Pazzi escreveu: “a leveza no corpo, a alegria no coração, a liberdade na vontade, a transparência na inteligência, a lembrança dos benefícios na memória, a verdade nas intenções, a simplicidade nas ações, a veracidade nas palavras, a  mortificação nos sentimentos: assim (alguém) poderá elevar-se com Maria”. Elisabete da Trindade, por sua vez, chamado-a de “Porta do céu” ensinava: “Existe uma criatura que conheceu este dom de Deus, uma criatura que não perdeu nenhuma parcela deste dom, uma criatura que foi pura, tão luminosa que parece ser a própria Luz: “Speculum justitiae” (espelho de justiça); uma criatura cuja vida foi tão simples. Tão perdida em Deus, que quase nada se pode dizer a respeito: “Virgo fidelis” — é a virgem fiel, aquela “que guardava todas as coisas em seu coração” (Lc 2,51).

 

Conclusão

             Os carmelitas, em sua espiritualidade, sempre se relacionaram intimamente com Maria Santíssima, de tal modo que ela se tornou entre eles uma presença mística (na qual se pode fazer a experiência de Deus); uma companheira de caminho à luz do Evangelho (experiência da vida cristiforme), uma mulher digna de imitação (união mística com Maria, vida marieforme) e uma possibilidade de reproduzir o amor de Jesus pela Mãe (atualização e volta a Cristo). Por meio da devoção ao Escapulário do Carmo, os carmelitas pretendem não somente vender o produto de uma espiritualidade sempre atual (“O cristão do século 21 ou será um santo ou nada será” – Karl Rahner), como também continuar afirmando, apesar os pesares (relaxamento, decadência, defasagem espiritual) o que afirmamos a oito séculos: que Maria é a grande protetora humana dos irmãos de Cristo; que ela nos ajuda a alimentar a fidelidade a Deus, a viver uma vida de serviço ao Reino de Deus e a confiar plenamente em que, por sua intercessão, não fica difícil obtermos a salvação!

Fonte bibliográfica única: Boaga, E. – “A Senhora do Lugar”, Edição Carmelita, 1994, Paranavaí – PR.