Em 1557, faleceu o 15º rei de Portugal, Dom João III, sendo herdeiro do trono seu neto, Dom Sebastião, com apenas três anos de idade. Durante sua menoridade governaram, na qualidade de regente, a avó, Dona Catarina da Áustria, e o tio-avô, Cardeal Dom Henrique, até que atingisse os 14 anos. De fato, em 1517? Dom Sebastião assumiu pessoalmente o governo, mas desapareceu misteriosamente, em 1578, na Batalha de Alcácer-Quibir, na luta contra os Mouros, em Marrocos, Norte da África. Com 66 anos, o Cardeal Dom Henrique teve de assumir, de novo, o trono real. Logo se apresentou o problema da sucessão. Efetivamente, tendo falecido em 1580, sem deixar herdeiros, os direitos da monarquia portuguesa foram reclamados pelo rei da Espanha, Filipe II, que, facilmente, venceu pretendentes politicamente mais frágeis. Iniciou-se, então, a chamada ‘União Ibérica’. Embora, a rigor, não se trate de uma anexação, a união de coroas favoreceu muito a Espanha, em detrimento de Portugal. Sofreram sobretudo as relações exteriores de ordem comercial.

Foi durante o breve governo de Dom Henrique que os primeiros Carmelitas desembarcaram no Brasil. Recorremos a uma fonte obrigatória, na qual o fato é relatado com detalhes. Referimo-nos a Manuel de Sá (1694-1735), cronista da Província portuguesa, que deixou duas obras impressas de grande valor para o conhecimento do Carmo lusitano. Como observou o historiador frei Balbino Velasco Bayón, O.Carm., na sua obra História da Ordem do Carmo em Portugal (2001), Manuel de Sá utilizou documentos que, talvez, hoje tenhamos que dar por desaparecidos. Segundo sua Crônica, Dom Henrique “resolveu que se fundasse a Paraíba, para o que mandou preparar uma poderosa armada, nomeando por cabo dela a Frutuoso Barbosa, fidalgo da sua Casa”. E ainda — segundo a mesma fonte — teria sido o próprio monarca que ordenou ao comandante que lavasse consigo alguns religiosos carmelitas, para trabalhar na ‘conversão dos infiéis’. Por explícita solicitação do rei, Frutuoso teria se dirigido, então, aos superiores do Carmo em Lisboa. Era provincial recém-eleito, frei Damião da Costa, mas pelo fato de ainda não ter sido confirmado no cargo, a província estava, naquele momento, nas mãos do primeiro definidor (conselheiro), frei João Caiado, na qualidade de vigário provincial. Este deu pleno apoio ao pedido formulado. Na ‘carta obediencial’, expedida em 26 de janeiro de 1580, lemos:

“Mandamos aos religiosíssimos Padres Frei Domingos Freire, Frei Alberto de Santa Maria, Frei Bernardo Pimentel e Frei Antônio Pinheiro, todos varões de provada religião, sacerdotes professos da nossa Ordem, que acompanhem ao sobredito Capitão, na viagem que se há de fazer para edificar a cidade de Paraíba, onde poderão fundar mosteiro desta Ordem, a que intitularão Nossa Senhora da Vitória. E não só nesta terra, mas também em Pernambuco e em todos aqueles lugares que lhes oferecerem, sendo convenientes ao serviço de Deus e das almas dos próximos e bem da religião.

E nas tais regiões o Padre Domingos Freire pregará o Evangelho de Cristo e ouvirá de confissão, e os demais padres seus companheiros, se parecer assim ao Reverendíssimo Ordinário do lugar. E exercitarão os demais ofícios, assim de sacerdotes como de religiosos.

E constituímos para seu Vigário ao padre frei Domingos Freire, ao qual terão obediência e respeito como devem a seu prelado. E lhe cometemos as nossas vezes e poderes, e lhe damos o cuidado dos ditos religiosos, assim no temporal como no espiritual. E poderá, por comissão do nosso Reverendíssimo Padre Geral, Mestre Frei João Batista Rúbeo de Ravena, receber à nossa Irmandade todos aqueles que, com piedade e devoção, o pedirem. E dar aos Irmãos as letras concedidas pelo papa Clemente VII, e confirmadas pelo Papa Gregório XIII. E não só fará isto, mas tudo o mais que nós fizéramos se presentes estivéssemos, seguindo sempre as ordens do Reverendo Padre Prior do nosso convento de Lisboa, ao qual determinadamente obedecerão enquanto no Capítulo Provincial se não determinar o contrário.

E pedimos com toda aquela submissão e caridade ao Reverendíssimo Bispo do Brasil e a seus Curas e Vigários, que aos sobreditos Padres recebam com benignidade e caridade e usem de seu ministério e indústria para saúde das almas. Dada neste nosso Convento de Lisboa, sob nosso sinal e selo do nosso Ofício, em vinte e seis de Janeiro de 1580. — Frei João Caiado”. (30)

É bem possível que, por ocasião do envio ao Brasil dos primeiros missionários portugueses, a Província do Carmo em Portugal contava com aproximadamente 200 religiosos. Ainda de acordo com o relato de Manuel de Sá, os Carmelitas foram recebidos em Pernambuco — para onde se desviou a expedição por causa de forte temporal — “com sinais de grande afeto”, tanto do Bispo da Bahia, Dom Frei Antônio Barreiros (1576-1596), como do Clero local e da população em geral. Começaram imediatamente seu trabalho apostólico entre os gentios ’para sua conversão’, e entre os convertidos ‘para a reforma de seus costumes’. (31) Não demorou — conta frei Tarcísio Meinen (32) — “que os oficiais da Câmara de Olinda lhes oferecessem vasto terreno com uma capelinha de Santo Antônio, para que pudessem fundar aí o seu primeiro convento e igreja”.

O Capítulo Provincial de Beja, realizado em Portugal no ano de 1583, confirmou oficialmente a fundação. Com a licença do Capitão de Pernambuco, Jerônimo de Albuquerque Coelho, os Carmelitas começaram imediatamente a construção do primitivo convento onde entraram em 1584.

Com a chegada de novos frades de Portugal, quatro religiosos partiram para Salvador (1585-1586). Receberam em doação de Antônio Dias Calafate e sua mulher um terreno nos arrebaldes da cidade, conhecido por ‘Monte Calvário’, uma colina onde — segundo o historiador jesuíto Serafim Leite — havia, no tempo de Tomé de Sousa, uma aldeia indígena. Nova doação, incluindo um terreno e uma capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, foi realizada, em 1592, por Cristóvão de Aguiar Daltro e sua esposa.

Chefiados por frei Pedro Viana — eleito Comissário dos Conventos no Brasil, durante o Capítulo Provincial de 1587, em Lisboa — outros Carmelitas seguiram para o sul, desembarcando na Vila de Santos, antiga Capitania de São Vicente. Em 24 de abril de 1589, José de Adorno e sua mulher, Catarina Monteiro, doaram a Ermida de Nossa Senhora da Graça, com seus ornamentos. Brás Cubas doou as terras vizinhas, em agosto daquele ano, com ato de posse registrado em 1o de setembro de 1589.

“No ano seguinte (1590), os Carmelitas chegaram ao Rio de Janeiro. Após alguma hesitação entre o Morro de Santo Antônio (já chamado Morro do Carmo, quando correram notícias sobre uma possível fundação) e outra oferta, Frei Pedro Viana resolveu aceitar esta, a Ermida de Nossa Senhora do Ó, juntamente com o terreno necessário para a construção do convento, oferecido pelos Oficiais da Câmara, por ser um sítio bem mais conveniente. Por escritura de 28 de abril de 1590, receberam os carmelitas mais uma légua de terras, de Jorge Ferreira, para ‘a casa de Nossa Senhora do Carmo que se há de fazer nesta cidade, para ajuda e sustentamento’.” (33)

Por fim, em 1594, os frades do Carmo subiram o Planalto de Piratininga, onde foi feita outra fundação, primeira presença da Ordem na futura cidade de São Paulo. Assim, em 1595, já eram cinco os conventos do Carmo no Brasil.

No dia 15 de janeiro de 1595, no Capítulo Provincial presidido por Frei João Estevão Chizzolla, Prior-geral da Ordem, em Lisboa, foram confirmados os priores dos conventos brasileiros e estabelecidas as seguintes medidas: Os conventos da Ordem no Brasil formam uma vigararia (vice-província), governada por um Vigário Provincial, eleito nos Capítulos pelo Definitório (Conselho) da Província de Portugal. O Vigário Provincial do Brasil tem voto e lugar nos Capítulos Provinciais. Caso venha a falecer, será imediatamente substituído pelo prior do convento de Olinda, até que o Definitório preencha a vaga. No mesmo Capítulo elegeu-se Frei João Seixas como primeiro Vigário Provincial do Brasil.

A direção da recém-erguida Vigararia logo deu continuidade às fundações. Foi confirmada a de São Paulo (1595). Seguiram: São Cristóvão de Sergipe (1600), Angra dos Reis (1608), Paraíba (1608), São Luiz do Maranhão (1616), Belém do Pará (1624), Mogi das Cruzes (1629), Recife (1631), Goiana, em Pernambuco (1636).

Pelo relatório do prior-geral, Frei Henrique Silvio (1598-1612), ficamos sabendo que, em 1606, havia no Brasil 99 Carmelitas: 30 em Olinda, 30 na Bahia, 14 no Rio de Janeiro, 10 em Santos, 8 em São Paulo, 7 no Paraíba. Em correspondência de 1635 este número dobrou: fala-se de 200 frades, espalhados pelos diversos conventos carmelitanos na Terra da Santa Cruz.

O término da União Ibérica (1640) fez acender o sentimento nativista na Colônia portuguesa das Américas. Também na Ordem do Carmo houve tentativas de maior independência de Portugal. Já em 1635, o procurador do Carmo brasileiro na Metrópole, Frei Sebastião dos Anjos, sugerira a constituição de uma província autônoma. Seu pedido encontrou acolhida favorável junto à Cúria geral da Ordem, em Roma. De fato, o Prior-geral, Frei Teodoro Straccio chegou a instituir, em 1640, uma nova província com o título de Nossa Senhora do Rosário, inclusive com a nomeação de seu titular. A reação da Província-mãe de Portugal foi radicalmente contrária, o que fez que o projeto não saísse do papel. O que se conseguiu, no entanto, foi a ereção de dois vicariatos (vice-províncias): o da Bahia, com nove conventos, e o do Maranhão, com três casas.

Nova tentativa teve lugar em 1648, com o decreto que unia os vicariatos numa única província sob o patrocínio de Santo Elias. Também agora o projeto fracassou. “Talvez se deva procurar a razão na atitude da Coroa de Portugal, que manifestou grande repugnância que os Carmelitas brasileiros se separassem da obediência dos de Portugal. Assim o manifestou o Provincial português, João Coelho, que escreveu, em 29 de Outubro de 1648, ao Geral da Ordem, fazendo-lhe ver a necessidade de se dobrar à vontade do Rei e de que se suspendesse a decisão do capítulo geral. Voltou a escrever, em Janeiro de 1649, fazendo ver os graves inconvenientes de levar adiante a decisão: pobreza e escassez de conventos, falta de religiosos preparados, invasão das tropas holandesas, que tinham feito estragos em alguns conventos, como Pernambuco, Paraíba e Sergipe. A isto acrescentava-se que se tinha nomeado um prófugo para comissário. O Provincial português oculta que o rei se opunha abertamente a esta ereção.” (34)

Diante das crescentes desejos de autonomia, o Prior-geral Ângelo Monsignani (1682-1686) procurou e encontrou uma ‘solução salomônica’ que, na realidade, deu praticamente plena autonomia aos brasileiros dos dois Vicariatos, embora formalmente ainda unidos à Província portuguesa.

Finalmente, em 1685, o imenso território brasileiro, exceto o Maranhão, foi dividido em outras vice-províncias: a Província Fluminense, com seis conventos: Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Angra dos Reis, Mogi das Cruzes e Vitória do Espírito Santo; e a Província da Bahia-Pernambuco, com sete conventos: Olinda, São Cristóvão, Paraíba, Recife, Goiana, Salvador e Rio Real. A nova divisão veio ao encontro de reais aspirações, baseadas em diferenças regionais, além do fato da difícil comunicação entre as partes norte e sul da Colônia.

“Não se desistiu, porém, do desejo de uma vida completamente independente. Uma nova petição conjunta das duas vice-províncias foi entregue, já com a licença do próprio Rei, à Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares, de Roma. Nela lemos que, em 1715, a vice-província da Bahia contava 218 e a do Rio de janeiro 163 religiosos. E nestes números não estavam incluídos os Noviços, nem os 25 religiosos que, naquele tempo, estavam fora de seus conventos, nas fazendas ou em Portugal. Desta vez, Roma atendeu aos desejos dos Carmelitas e, em 1720, o Papa Clemente XII instituiu as duas Províncias do Rio de Janeiro e da Bahia, sancionando a separação completa de Portugal”. (35)

Por decreto do Prior-geral, Frei Carlos Cornaccioli, de 21-11-1720, foi nomeado Prior-provincial da recém-criada Província Fluminense, o Frei Francisco Paes da Purificação.

Na época da independência das províncias havia ainda o caso específico do Maranhão, em certo sentido independente do resto da Colônia. Ficou a parte tipicamente ‘portuguesa’ da Terra da Santa Cruz pelo fato de ter mais fácil comunicação com Lisboa do que com Bahia ou Rio de Janeiro. Também no interior da Ordem, o Maranhão, junto com as terras no extremo norte do Brasil, seguiu um caminho próprio. Até a criação dos dois Vicariatos, em 1639, tinha o status de Comissariado, diretamente subordinado à Província portuguesa. Em 1674, existiam no Maranhão quatro conventos: São Luís (1616), Belém do Pará (1624), Gurupá (1639-1674, quando foi abandonado), Alcântara (1647), com um total de 60 religiosos.

A vice-província do Maranhão seria o berço do grande movimento missionário dos Carmelitas na Amazônia. Até o Maranhão aderir à Independência do Brasil, em 1823, continuou pertencendo à Província carmelitana de Portugal.

Em páginas anteriores falamos da reforma na Ordem promovida pela Província de Touraine (França), em princípio do século XVIII. A ‘reforma turonense’, como ficou conhecida, entrou na Vice-Província de Bahia-Pernambuco. Em 1679, o Vigário provincial autorizou sua introdução no convento de Goiana. A reforma teve amplo apoio do Geral, Frei Monsignani que, em 1683, baixou várias medidas para favorecê-la no Brasil. Assim, decretou que os conventos de Recife e de Vila Real (depois substituído pelo da Paraíba) fossem entregues aos ‘reformados’. Teriam por superior um Comissário, diretamente nomeado, de três em três anos,  pelo Prior-geral e assistido por dois sócios. O titular da Vice-província apenas recebia autorização para fazer a visita canônica em cada triênio, acompanhado por um religioso pertencente aos ‘reformados’. Essa medida deu origem a muitas controvérsias, frequentes vezes relacionadas com a extensão da jurisdição e questões de propriedades.

 “Há quem duvide da sinceridade desta Reforma no Brasil. Seria antes um movimento separatista dos religiosos do Norte, que desejavam afastar-se do resto do Carmo brasileiro, formando uma província própria. Certo é, que a Reforma se confinou ao Norte do país, expandindo-se já por fundações próprias. Em 1714 foi dado o decreto de elevação a vice-província, logo a seguir anulado, para ser renovado só em 1724 e confirmado por Bento XIII no ano seguinte. Quando contava três conventos e seis hospícios, com mais de cem religiosos, a Reforma foi elevada a Província autônoma, em 1744”. (36)