*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
Não é tão fácil rezar os salmos hoje. As dificuldades são muitas. Algumas vêm dos próprios salmos, da sua linguagem e do seu conteúdo. Outras vêm das pessoas que rezam, da comunidade. Outras ainda vêm da situação que vivemos, da nossa realidade. Algumas dificuldades têm respostas e se resolvem. Outras só se resolvem na medida em que forem assumidas como desafios da própria caminhada.
Dificuldades que vêm dos próprios salmos
- a) Violência, vingança, agressividade.
Há salmos extremamente violentos e agressivos. Alguns exemplos:
- “Feliz quem agarrar e esmagar teus nenês contra a rocha” (Sl 137,9). Uma coisa assim a gente não deseja nem para o pior inimigo. Como dirigir uma prece assim a Deus?
- “Ele feriu reis poderosos, porque eterno é seu amor! Matou reis famosos, porque eterno é seu amor!” (Sl 136,17.18). Não estamos acostumados a celebrar a morte dos inimigos como expressão do amor de Deus por nós!
- Salmo 109 pede vingança contra o inimigo. Entre outras coisas (Sl 109,6-15), ele pede a Deus “que a mulher dele se torne viúva e os filhos órfãos” (Sl 109,9). E assim há vários outros salmos.
- b) A ira violenta de Deus que provoca medo
2,5.12: A ira de Deus se inflama rápida
6,2: não me castigues com tua ira
7,7: levanta-te com tua ira contra os abusos dos meus opressores
21,10: Deus os engolirá com a sua ira
27,9: não afastes teu servo com ira, pois tu és o meu socorro
30,6: sua ira dura um momento, mas seu favor dura pela vida inteira
38,4: por causa da tua ira nada em meu corpo está intacto
56,8: Ó Deus, derruba com tua ira os povos
59,14: que tua cólera os destrua, os destrua e não existam mais
69,25: Derrama sobre ele o teu furor e o ardor da tua ira os atinja
74,1: por que arder em ira contra as ovelhas do teu rebanho
76,8: Tu és terrível. Quem pode resistir à tua frente quando ficas irado?
78,21: Deus se enfureceu .. a sua ira se ergueu contra Israel.
38: ele é compassivo e reprimia sua ira muitas vezes
79,5-6: Derrama o teu furor sobros que não te conhecem
85,6: Ficará irado conosco para sempre
86,15: Tu és piedade e compaixão: lenta para a cólera e cheio de amor
88,17: tua cólera pesa sobre mim: teus furores passaram sobre mim
90,7: tua ira nos consumiu, teu furor nos transtornou
95,11: jurei na minha ira: jamais entrarão no meu repouso
102,11: por causa da tua ira me elevaste e me jogaste no chão
103,8: Javé é compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor.
O problema é triplo: 1) O contraste com o ensinamento de Jesus que manda amar os inimigos (Mt 5,44) e perdoar 70 vezes sete (Mt 18,22). 2) O contraste com o sentimento humano nosso de hoje que não consegue ser tão agressivo a ponto de pedir que alguém esmague as crianças do inimigo contra a rocha. 3) Até hoje, estas frases estão na Bíblia. Não foram censuradas. São Palavras de Deus para nós. Como entendê-las? Como rezá-las?
Qual a sua mensagem?
- c) Imagens estranhas, linguagem difícil, fatos desconhecidos.
Os salmos usam comparações estranhas. Por exemplo, comparam a fraternidade com óleo derramado sobre a cabeça de Aarão, que desce pela barba até nas roupas (Sl 133,2). Alguns salmos estão cheios de nomes difíceis que se referem a pessoas e lugares desconhecidos para nós (Sl 60,8-11; 83,7-12). Outros salmos celebram fatos que não conhecemos e de que não participamos. Por exemplo, Meriba e Massa (Sl 95,8). É difícil celebrar algo que a gente não viveu nem conheceu.
d) Tradução que não traduz
Nem sempre é possível traduzir de tal modo que as palavras brasileiras evoquem em nós o mesmo que as palavras hebraicas evocavam no povo daquele tempo. Uma Bíblia traduz: “Minha vida está ligada a ti, e tua direita me sustenta” (Sl 63,9). Naquele tempo, esta frase evocava a imagem tão familiar da criança agarrada nas costas do pai que a segura e a sustenta com os braços. Uma tradução mais fiel poderia ser: “Eu me agarro a ti, e tu me seguras com tuas mãos”. Traduzir não é fácil.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.