*Frei Carlos Mesters, Carmelita.

Origem e formação do Livro dos Salmos: Espelho do que acontece hoje

Na superfície do Livro dos Salmos aparecem algumas coisas que chamam a atenção: repetições, interrupções, incertezas quanto ao autor, confusão quanto ao número dos salmos. São como janelas abertas que ajudam a entender como foi o processo de formação do Livro dos Salmos; revelam como se chegou dos salmos ao Livro dos Salmos. Como veremos, foi uma origem muito semelhante à de tantos livros de canto que hoje circulam nas nossas comunidades. Na origem de cada salmo está um salmista, um poeta, um indivíduo. Na origem do Livro dos Salmos está a comunidade, o povo. Se os 150 salmos foram transmitidos e chegaram até nós, isto não se deve à ação do salmista, mas, sim, ao povo. O povo se reconhecia neles. Os salmos eram a expressão da sua fé, esperança e amor, da sua caminhada e luta. Por isso os cantava, selecionava e conservava. Assim se chegou dos salmos ao Livro dos Salmos. Nesse capítulo, vamos ver de perto os pontos mais significativos deste processo de formação do Livro dos Salmos, e apontaremos, ao mesmo tempo, e semelhança com os livros de canto que hoje circulam nas nossas comunidades.

Um processo de formação que durou quase mil anos

Alguns salmos são bem antigos. Vêm desde o tempo de Davi que governou o povo de 1010 até 970 antes de Cristo. Outros já são mais recentes. Os últimos são, provavelmente, da época dos Macabeus, isto é, dos anos 170 a 160 a. C. Isto quer dizer que a formação do Livro dos Salmos durou quase mil anos! Por isso mesmo, é difícil saber em que época, exatamente, foi escrito este ou aquele salmo. Esta incerteza quanto à data exata da composição da maioria dos salmos, como ainda veremos, tem um significado muito importante para o seu uso pelo povo. Não sendo de nenhum tempo certo, dão certo para todo tempo!

Preces vindas de todo canto e lugar

Alguns salmos refletem o ambiente da cidade, por exemplo, o salmo que fala do vigia noturno (Sl 130, 6-7). Outros já são mais do interior, da roça: o salmo onde o sofri­mento e a exploração do povo são descritos com a imagem do arado que passa pelas costas do torturado (Sl 129,3). Alguns foram feitos na Palestina (Sl 122), outros na Babilônia durante o exílio (Sl 137). Tem salmos que vêm da região do Norte, outros vêm do Sul. Eles vêm de todo canto e lugar! É como hoje: pela letra e pela melodia, você consegue reconhecer  os cânticos que vêm do Nordeste ou do Sul. Na Bíblia, pela maneira de os salmos usarem o nome de Deus, os entendidos no assunto conseguem descobrir se são do Norte ou do Sul. Por exemplo, os Salmos 1 até 41 preferem chamar Deus de Javé ou Yhwh (traduzido em algumas Bíblias por Senhor), enquanto os Salmos 42 até 89 preferem usar o nome Elohim, traduzido por Deus. Mesmo assim, na maioria dos casos, é muito difícil saber em que lugar, exatamente, este ou aquele foi escrito. Aqui vale o mesmo que dissemos a respeito da época. Não sendo de nenhum lugar certo, dão certo para todo lugar!

Oração dos pobres

Antes da reforma de Josias em 620 a.C., havia muitos pequenos santuários espalhados pelo país. Cada um deles lembrava algum fato importante da história do povo de Deus. Nas festas, os romeiros iam lá para fazer as suas preces, oferecer os seus dons e cumprir suas promessas. Os sacerdotes e os levitas os recebiam e com eles rezavam. Nestes pequenos santuários, o povo do interior, os pobres, derramavam a sua alma diante do Senhor.

Numa destas romarias para o santuário de Silo, Ana, a mãe de Samuel, foi rezar no santuário. O sacerdote Eli pensou que ela estivesse embriagada e pediu para ela voltar mais tarde, depois que o efeito do vinho tivesse passado. Ela respondeu: “Não, Senhor! Eu sou uma mulher atribulada. Não bebi vinho nem bebida forte. Mas derramo minha alma na presença do Senhor. Não julgues a tua serva como uma vadia! É que estou muito triste e aflita. Por isso estou rezando até agora!” (1Sm 1,15-16). Este fato nos dá uma idéia de como era o ambiente de oração naqueles santuários. Ora, foi neste ambiente dos santuários, centros de romaria, que surgiram muitos salmos, sobretudo os salmos de lamento, os salmos dos pobres, salmos anônimos.

Cânticos populares

Os salmos foram surgindo, e o povo os cantava. Cantando, foi selecionando e conservando, modificando uns e esquecendo outros. Hoje, por exemplo, certos cânticos das Campanhas da Fraternidade já foram esquecidos. Ninguém mais lembra deles. Mas se perguntar: “Vocês conhecem Prova de Amor?”, todo mundo conhece. Pouca gente, porém, lembra o autor e a data deste canto. Se perguntar: “Quem fez Jesus Cristo, eu estou aqui?”, muita gente vai saber que foi Roberto Carlos. O mesmo acontecia com os salmos. O povo lembrava o autor de alguns; de outros, já não lembrava, ou estava em dúvida.

Na Bíblia Hebraica, dos 150 salmos, uma terça parte, isto é, 49 salmos, é anônima. Não tem autor. No título do Salmo 72, se diz: “De Salomão” (Sl 72,1). No fim do mesmo salmo, se diz: “Fim das orações de Davi” (Sl 72,20). Ficou a dúvida: é de Davi ou de Salomão? Hoje em dia, às vezes, a gente não sabe se a música é do padre Zezinho ou da Irmã Miriam.

Coleções de salmos

O Livro dos Salmos parece uma colcha de retalhos. Os retalhos vêm das coleções de salmos que já deviam existir antes do livro. Um simples levantamento dos títulos dos salmos oferece o seguinte quadro geral:

  1. Os salmos 3 até 41 são de Davi (menos o salmo 33);
  2. Os salmos 42 até 49 são dos filhos de Coré;
  3. Os salmos 51 até 65 são de Davi;
  4. Os salmos 68 até 70 são igualmente de Davi;
  5. Os salmos 72 até 83 são de Asaf;
  6. Os salmos 84 até 88 são dos filhos de Coré (salmo 86 é de Davi);
  7. Os salmos 105 até 107 começam com Aleluia;
  8. Os salmos 111 até 118 começam com Aleluia (menos o salmo 115);
  9. Os salmos 120 até 134 são indicados como Cânticos das Subidas;
  10. Os salmos 135 e 136 começam novamente com Aleluia
  11. Os salmos 146 até 150 também começam com Aleluia.

Este quadro mostra que, antes da existência do Livro dos Salmos, havia dois tipos de coleções: 1. Salmos para determinadas ocasiões e solenidades: por exemplo Subidas, isto é, para as romarias; 2. Salmos-Aleluia, isto é, para festas de louvor. Até hoje, é em torno deste mesmo duplo critério que se fazem as coleções de canto.

Canto repetido, canto modificado

Às vezes, um canto do Sul do Brasil reaparece no Nordeste com outra letra e outra melodia. Parece até um canto diferente. Quando o povo gosta de um canto e com ele se identifica, ele o vai adaptando, modificando letra e melodia. O mesmo canto, modificado ou não, aparece em várias coleções. O mesmo acontecia com os salmos. Foram surgindo aquelas coleções, por exemplo, para as romarias ou para as várias festas. Para as romarias surgiu a coleção dos Cânticos das Subidas (salmos 120 a 134). Para a festa de Javé Rei e Juiz surgiram os Salmos 93 até 100. Os mesmos salmos apareciam em várias coleções. Na edição final do Livro dos Salmos, estas coleções foram remanejadas entre si e reunidas numa unidade maior.

Isto explica as repetições que existem dentro do Livro dos Salmos: Por exemplo, o Salmo 14 é igual ao salmo 53. O Salmo 70 é quase igual aos versículos 14 a 18 do Salmo 40. A primeira metade do Salmo 108 está repetida no Salmo 57: Sl 108,2-6 é igual ao Sl 57,8-12; a segunda metade do mesmo salmo está repetida no Salmo 60: Sl 108,7-14 é igual ao Sl 60,7-14. O salmo repetido é, cada vez, de outra coleção. Se o Livro dos Salmos fosse uma única coleção de um único autor, não haveria tais repetições.

Davi, o autor dos salmos

A Bíblia Hebraica atribui 73 salmos a Davi, 12 a Asaf, 11 aos filhos de Coré, 2 a Salomão, 1 a Moisés, a Ernã e a Etã. Os outros salmos são anônimos. Na tradução grega, chamada a Setenta, do século III antes de Cristo, há 82 salmos de Davi, isto é, 9 a mais do que no original hebraico. E no tempo de Jesus, era comum atribuir todos os salmos a Davi (cf. Lc 20,42). Como se explica esta vontade de querer atribuir um número cada vez maior de salmos a Davi? Qual o sentido de dizer que os salmos são de Davi?

Depois do exílio, Davi tornou-se a expressão maior da esperança e do ideal de vida do povo. Eles esperavam um novo rei Davi para restabelecer o direito pisado dos pobres (cf. Sl 72,1-3; 78,70; 89,4.21; 132,1.10.17; 14,10). Para o povo daquele tempo, Davi era o que os Santos são para muitos de nós hoje: um ideal a ser imitado. O Livro das Crônicas, por exemplo, que é daquela época do pós-exílio, omite todos os pecados de Davi e o apresenta como um homem santo e perfeito. Davi era herói que encarnava o ideal do povo. É daí que nascia uma vontade muito grande de identificação com Davi. Eles queriam ter em si os mesmos sentimentos que animaram a Davi na sua luta. Queriam “rezar como Davi rezou, cantar como Davi cantou”. Por isso, para eles era muito importante poder dizer que um salmo era de Davi. Quanto mais salmos de Davi, tanto melhor! Isto ajudava o povo a viver melhor o ideal e a realizar a sua missão. É por isso que a tradução grega tirou vários salmos do anonimato e começou a atribuí-los a Davi. No tempo de Jesus, já era opinião comum do povo: todos os salmos são de Davi. Nisso tudo se reflete a vontade do povo de ser fiel.

Os cinco livros dos salmos: o lado orante da Lei de Deus

Cada livro de canto tem uma certa divisão e subdivisão interna. A maneira de dividir o assunto depende do critério que o editor adota: cantos para a missa, cantos para as grandes festas do ano litúrgico, cantos para reuniões e assembléias, etc. O editor final do Livro dos Salmos também teve o seu critério para dividir em cinco partes os 150 salmos que ele conseguiu reunir. Dentro do Livro dos Salmos, ocorrem quatro interrupções mais ou menos semelhantes. As quatro ocorrem no fim dos Salmos 41, 72, 89 e 106, e tem a forma de um refrão de louvor: “Bendito seja o Senhor, o Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém! Amém!” (Sl 41,14; 72,18-19; 89,53; 106,48). Estas quatro interrupções dividem o Livro dos Salmos em cinco unidades menores: a primeira de 1 até 41; a segunda de 42 até 72; a terceira de 73 até 89; a quarta de 90 até 106; e a quinta de 107 até 150. No fim do Salmo 72, ele até deixou a marca dizendo: “Fim das orações de Davi” (Sl 72,20); fim de uma unidade, começo de uma outra. Dividindo o Livro dos Salmos em cinco partes, o editor imitou o Pentateuco, o Livro da Lei de Deus, que também tem cinco partes. Deste modo, ele nos apresentou o Livro dos Salmos como o lado orante da Lei de Deus.

Enumeração confusa

Quando, nas reuniões, se pede: “Vamos rezar o Salmo 50!”, tem gente que abre a Bíblia no Salmo 49, outros no Salmo 50, outros ainda no Salmo 51. Esta confusão não é de hoje. Ela começou, muito provavelmente, quando, em torno do ano 250 antes de Cristo, foi feita a tradução grega da Bíblia, chamada a Setenta. Ela foi feita quando o Livro dos Salmos ainda estava em fase de formação. Quando o tradutor chegou no Salmo 10, ele pensou que fosse a continuação do Salmo 9, e traduziu os dois como se fossem duas partes do mesmo salmo. Por isso, ele deu o número 10 para o salmo que, na Bíblia Hebraica, tinha o número 11. Outros acham que algum copista, ao transcrever o texto hebraico, chegou na metade do Salmo 9 e pensou que fosse o começo de um novo salmo. Qualquer que tenha sido a causa, o fato é que existe a diferença dos números entre a Bíblia Hebraica e a tradução grega. A Igreja Católica sempre seguiu a enumeração da tradução grega, que foi mantida na Vulgata (tradução latina), no breviário do clero e nas traduções em outras línguas. Os Protestantes seguem a enumeração original da Bíblia Hebraica, que está sendo retomada hoje pela “Bíblia de Jerusalém” e por várias outras traduções católicas. Muitas Bíbia colocam o número da Bíblia hebraica entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 50(51). Outros fazem o contrário e colocam o grego entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 51(50). Eis o esquema das diferenças na enumeração dos salmos:

Bíblia Hebraica         Tradução Grega

1-8       1-8

9-10     9

11-113            10-112

114-115          113

116      114-115

117-146          116-145

147      146-147

148-150          148-150

O conteúdo final do Livro dos Salmos

O título hebraico do Livro dos Salmos é Sefer Tehilim, isto é, Livro dos Hinos. Mas dentro do Livro dos Hinos só tem um único salmo que é apresentado explicitamente como Hino ou Tehilah, também traduzido por Louvor (Sl 145,1). Na tradução grega, o título é Biblos Psalmon, isto é, Livro dos Salmos. A palavra psalmos ou salmo, originalmente, indicava um tipo de canto que devia ser acompanhado com um instrumento de cordas chamado psaltérion. Mas dentro do Livro dos Salmos só tem 57 dos 150 que são apresentados explicitamente como psalmos. Os outros são apresentados como oração (Sl 86,1), como poema (Sl 89,1), como súplica (Sl 90,1), como aleluia (Sl 107,1), como salmo-cântico (Sl 83,1), etc. Esta diversidade mostra como foi difícil para eles identificar o conteúdo do Livro dos Salmos: hino, salmo, cântico, oração, poema, lamento, súplica! Tem de tudo! É difícil classificar a vida debaixo de um denominador comum.

Uma vez pronto, o Livro dos Salmos começou a exercer uma função muito importante na vida do povo de Deus:

* conservava a memória, pois lembrava os fatos mais importantes da história;

* educava o povo, pois trazia os grandes apelos dos profetas e dos sábios;

* ajudava a manter a fé, a esperança e o amor;

* cobrava o compromisso de fidelidade;

* animava a caminhada; possibilitava  ao povo o contato direto com Deus.

Numa palavra, o Livro dos Salmos era amostra, modelo e muleta de arrimo. Era o manual de reza, o livro de canto. O Livro dos Salmos era e é a lei orante do povo de Deus!

* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.