"As declarações do papa podem gerar uma imagem de homofobia e intolerância. Porém, é preciso entendê-las". O comentário é de Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.

Eis o artigo.

Há poucos meses, o Papa Francisco esteve reunido com os bispos da Itália, tratando da crise de vocações sacerdotais e religiosas, da transparência e sobriedade na gestão de bens, e da fusão de dioceses. Após uma alocução estimulante, câmeras foram tiradas do recinto, jornalistas saíram, portas se fecharam e teve início uma conversa franca entre o Papa e o episcopado italiano. Então, ele teria convidado os bispos a um atento discernimento sobre candidatos homossexuais ao sacerdócio, pois os que têm estas tendências "profundamente enraizadas" e a prática de "atos homossexuais" podem comprometer a vida do seminário, a do próprio jovem, seu futuro sacerdócio e gerar escândalos. E teria alertado: "Se vocês tiverem a menor dúvida, é melhor não os deixar entrar".

Estas prováveis declarações do papa podem gerar uma imagem de homofobia e intolerância. Porém, é preciso entendê-las à luz do ensinamento da Igreja a este respeito, que tem sutilezas importantes. Nesta questão, o pontificado de Francisco tem reiterado as posições de uma Instrução de seu antecessor Bento XVI, de 2005: a Igreja não deve admitir ao seminário e à ordenação aqueles que “praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay”. Estas pessoas encontram-se numa situação de grave obstáculo a um correto relacionamento com homens e mulheres.

Segundo a mesma Instrução, compete à Igreja definir os requisitos necessários para a ordenação e chamar os que ela julgar qualificados. No rito latino se supõe o compromisso do celibato; nos ritos orientais, ou o celibato ou um matrimônio (heterossexual) bem consolidado. O candidato ao sacerdócio deve atingir a maturidade afetiva que o torne capaz de estabelecer uma correta relação com homens e mulheres. E com esta maturidade, deve desenvolver uma paternidade espiritual em relação à comunidade que lhe será confiada. Cabe ao bispo ou ao superior religioso chamar à ordenação, depois de ouvir os encarregados da formação (1).

Como a questão remete aos bispos locais e aos superiores religiosos, alguns deles fizeram na época importantes pronunciamentos, permitindo compreensões mais matizadas e flexíveis da questão. O então presidente da Conferência Episcopal Alemã, cardeal Karl Lehmann, afirmou que se deve entender por tendências homossexuais profundamente radicadas não quaisquer tendências pelo mesmo sexo, mas aquelas que são um grave obstáculo a uma correta relação com homens e mulheres. Seguindo esta interpretação, também as tendências heterossexuais profundamente enraizadas são um grave obstáculo.

O ex-superior geral dos dominicanos, Timothy Radcliffe, trabalhou em todo o mundo com bispos e padres, diocesanos e religiosos. Ele afirmou não ter dúvidas de que Deus chama homossexuais ao sacerdócio. E afirma que eles estão entre os sacerdotes mais dedicados e impressionantes que encontrou. Por isso, nenhum sacerdote que esteja convencido de sua vocação deve se sentir classificado pelo documento como incapaz. E pode-se presumir que Deus continuará chamando ao sacerdócio tanto homossexuais como heterossexuais, porque necessita dos dons de ambos.

Quanto à “cultura gay”, Radcliffe diz que seminaristas e sacerdotes não devem frequentar bares gays e que seminaristas não devem desenvolver uma subcultura gay. Qualquer subcultura sexual, gay ou hétero, é incompatível com o celibato. Mas apoiar a cultura gay significa apenas isto? Interroga-se ele. A Instrução afirma que a Igreja deve se opor à discriminação injusta contra os homossexuais, assim como ela se opõe à discriminação racial. Isto significa, então, que todos os sacerdotes devem estar preparados para se colocarem ao lado dos gays caso eles sofram opressão. E serem vistos do lado deles. A sociedade, diz ele, tem obsessão por sexo, e a Igreja deveria oferecer um modelo de sã e não compulsiva aceitação da sexualidade. O Catecismo do Concilio de Trento ensina que o sacerdote deve tratar de sexo “de preferência com moderação do que com excesso”. Deveria haver mais atenção a quem os seminaristas podem odiar do que a quem eles amam. Racismo, misoginia e homofobia deveriam indicar que alguém pode não ser modelo de Cristo (2).

A Conferência dos Bispos Suíços também se pronunciou sobre a orientação sexual e a admissão ao sacerdócio:

“Nós somos profundamente gratos a todos os padres que vivem sua vocação com grande fidelidade. Nós temos consciência de que em nosso colégio presbiteral e nos nossos seminários vivem coirmãos com orientação heterossexual e outros com orientação homossexual. Nós respeitamos cada um como homem e coirmão. Nós decidimos viver a castidade independentemente de nossa orientação sexual. Por isso, no âmago de nossas reflexões sobre o acesso ao sacerdócio, não há questão de orientação sexual, mas a disponibilidade de seguir Cristo de maneira coerente” (3).

Portanto, a recepção da Instrução romana estimulou uma fidelidade criativa em alguns segmentos da Igreja. A reflexão se aprofundou, os conceitos foram matizados e se abriram caminhos, com um apreço maior pela pessoa homossexual.

Em 2007, a Cúria Romana publicou Orientações sobre o uso da psicologia na admissão e na formação de candidatos ao sacerdócio. A formação para o sacerdócio é compreendida como uma configuração a Cristo, o bom pastor. Nesta formação, deseja-se cultivar motivações espirituais e buscar um equilíbrio humano e afetivo, para que haja liberdade interior na relação com os fiéis. O uso da psicologia através de testes e de psicoterapia é recomendado em certas circunstancias, mas não é obrigatório. O caminho formativo deve ser interrompido no caso de o candidato, apesar do seu empenho e do apoio psicológico, ser incapaz de “enfrentar de modo realista” suas graves imaturidades. Entre estas, são mencionadas: forte dependência afetiva, notável falta de liberdade nas relações, excessiva rigidez de caráter, falta de lealdade, identidade sexual incerta e tendências homossexuais fortemente enraizadas. O mesmo vale no caso de excessiva dificuldade com o celibato, “vivido como uma obrigação tão penosa a ponto de comprometer o equilíbrio afetivo e relacional” (4).

Note-se que a tendência homossexual, ainda que classificada como grave imaturidade, não é causa de impedimento ao sacerdócio, mas a incapacidade de se lidar com isto de maneira adequada. A restrição da Instrução de 2005 foi amenizada. E, seja quem for o candidato, ele não deve viver a castidade no celibato a qualquer preço, sacrificando seu equilíbrio emocional. Esta norma é sabia e muito oportuna também para religiosos e fiéis leigos. Mas, em meio a tais notícias e controvérsias, a autoestima de candidatos, seminaristas, sacerdotes e religiosos com orientação homossexual pode ser bastante golpeada.

Na alocução aos bispos italianos, o Papa Francisco afirmou que a Igreja deve ser mãe e fez esta oração: “que Maria, nossa Mãe, nos ajude a fim de que a Igreja seja mãe” (5). É preciso ajudar a Igreja nesta missão tão nobre e amorosa. Seus filhos têm um inegável potencial a ser oferecido, que jamais deve ser desperdiçado. Mas também podem ter feridas e exigir cuidados que não devem ser negligenciados. Só assim a missão materna da Igreja pode ter êxito. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br