Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 21º Domingo do Tempo Comum, 26 de agosto (Jo 6, 60-69). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Chegamos ao final do sexto capítulo do Evangelho segundo João, e, nestes últimos versículos, é posto diante de nós todo o choque, o escândalo que as palavras de Jesus causaram não só nas multidões dos judeus, mas também entre os seus discípulos.

Essa crise nas relações entre Jesus e a sua comunidade é testemunhada por todos os quatro Evangelhos no momento de uma palavra decisiva de Pedro que confessava a identidade de Jesus como Messias (cf. Mc 8, 29 e par.) e como enviado do Pai como Filho.

Por que essa crise? Porque as palavras de Jesus, às vezes, eram duras e chocavam também os ouvidos de discípulos que o seguiam com afeto e atenção, mas não conseguiam aceitar, considerando-a como uma pretensão, que Jesus tinha “descido do céu” e que na carne (basar/sárx) de um corpo humano frágil e mortal ele narrava o Deus vivo e verdadeiro.

No seu discurso, Jesus tinha dito muitas vezes: “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6, 51; cf. 6, 33.38.41-42.58), mas justamente aqueles que o tinham aclamado como “o grande profeta que devia vir ao mundo” (Jo 6, 14) e que até tinham querido proclamá-lo rei (cf. Jo 6, 15), diante dessas palavras, sentem-se escandalizados na sua fé.

Profeta, sim; Messias, sim; Enviado de Deus sim, mas descido do céu e feito carne, corpo entregado (verbo paradídomi) e doado até a morte violenta, carne para comer e sangue para beber (cf. Jo 6, 51-56), isso realmente não: são palavras que soam como uma pretensão insuportável, impossível de escutar!

Jesus, que conhece essas murmurações dos discípulos, neste ponto, não tem medo de dizer toda a verdade, às custos de causar uma divisão entre os seus e um abandono do seu discipulado. Poderíamos dizer que ele “ataca” os murmuradores: “Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?”. Isto é, “quando vocês estiverem diante da realidade do Filho do homem que, através da elevação na cruz, da morte ignominiosa, subirá a Deus, de quem veio (cf. Jo 3, 14; 8, 28; 12, 32)? Quando se manifestar a plena identidade daquele que desceu de Deus e que a Deus subiu novamente na sua humanidade assumida como condição carnal, mortal, ‘semelhante à carne do pecado’ (Rm 8, 3), então o escândalo será maior”!

Jesus faz esse ataque sofrendo todo o peso da incredulidade, da incompreensão por parte daqueles que, durante anos, estavam envolvidos com ele e eram assíduos à sua palavra. Como esse comportamento deles é possível?

É por isso que ele não pode deixar de constatar que, na realidade, ninguém pode vir até ele se o Pai não o atrair, se não o conceder. É preciso esse dom que não é dado arbitrariamente por Deus, mas deve ser buscado, deve ser acolhido como dom que não requer nenhum mérito por parte de quem o recebe. Mas isso também escandaliza as pessoas religiosas, que sempre pretendem que Deus dê dons não só de acordo com os seus desejos, mas também de acordo com aquilo que mereceram e alcançaram.

O que é escandaloso em relação a Jesus é a sua condição humaníssima, o fato de se entregar em uma carne frágil e em um corpo mortal a carnes frágeis e corpos mortais, isto é, as pessoas. Como é possível que Deus se entregue em um homem, “o filho de José” (Jo 6, 42), uma criatura humana que pode ser entregue, traída, dada nas mãos dos pecadores, como acontecerá justamente por causa de um dos Doze, Judas, um servo do diabo (cf. Jo 6, 70)?

Aqui, a fé tropeça no fato de ter que acolher a imagem de um “Deus ao contrário”, de um “enviado divino, um Messias ao contrário”, que é frágil, pobre, fraco e do qual os homens podem fazer o que quiserem... É o escândalo da encarnação de Deus, sofrido ao longo dos séculos por muitos cristãos, por muitas Igrejas, pelo próprio Islã e ainda hoje pelos homens religiosos que acusam de não crerem em Deus aqueles que acolhem do Evangelho a mensagem escandalosa de um Deus que realmente, verdadeiramente se fez homem, carne mortal, em Jesus de Nazaré.

A fé cristã torna-se facilmente docetismo, porque prefere, como todas as religiões, um Deus sempre e somente onipotente, um Deus que não pode se tornar humano, como nós, em tudo, exceto no pecado.

Por isso, Jesus insiste: “Vós também vos quereis ir embora?”, dirigindo-se àqueles que permaneceram, na realidade, poucos. Jesus não teme, embora sofra, permanecer sozinho, porque tem fé na palavra que o Pai lhe dirigiu, na promessa de Deus que não falhará. Os outros podem ir embora, mas Deus permanece fiel! E, assim, o evangelho registra que alguns discípulos, escandalizados pelas palavras e pelos gestos de Jesus, vão embora: por medo? Por convicções religiosas? Em todo o caso, por falta de fé. Eles havia acolhido a vocação, haviam seguido Jesus talvez com entusiasmo, mas depois, não crescendo na sua adesão a ele, tropeçaram na incompreensão das suas palavras.

Consequentemente, tomaram um caminho de de-vocação, desmentindo a estrada feita, até darem meia-volta e irem embora. Entre eles, está também Judas, um dos Doze, escolhido pessoalmente como discípulo por Jesus. Como isso é possível? Sim, é possível que, na comunidade de Jesus e assim na comunidade cristã, haja aqueles que se tornem um ministro do diabo, um discípulo do diabo, que, portanto, não pode deixar de trair. E, quando a relação de amor conhece a traição, para aqueles que traem, torna-se imperativo apagar o amado, até entregá-lo para que seja tirado do meio do caminho. Aquilo que os outros evangelhos colocam na última ceia, João significativamente põe aqui, no anúncio da eucaristia, dom da vida de Jesus para todos.

Às vezes, eu me pergunto por que, na Igreja, não se tem a coragem de fazer ressoar ainda hoje essa pergunta de Jesus: “Vocês também querem ir embora?”; por que sempre se ensina o sucesso, sempre se olha para o número dos fiéis, sempre se fazem esforços visando à grandeza da comunidade cristã e não à qualidade da fé. Somos verdadeiramente gente de pouca fé!

A crise, por sua vez, que sempre é fracasso, nós a afastamos o máximo possível, dissimulamo-la, calamo-la, para que não pareça que às vezes perdemos, caímos, fracassamos até mesmo nas nossas obras eclesiais e comunitárias, embora em conformidade com a vontade do Senhor.

Por outro lado, Jesus usará a imagem da poda da vinha para dizer que há ramos que devem ser podados (cf. Jo 15, 2): mas é determinante que a poda seja feita pelo Pai, e não por nós, nem mesmo por aqueles que, na comunidade cristã, presidem ou trabalham nela como operários. Por si só, o Evangelho tem a força de atrair e de deixar cair: basta que ele seja anunciado na sua verdade e com franqueza, sem ser adocicado.

Sim, o Evangelho é a Palavra de vida eterna, como Pedro responde a Jesus, confessando que a fé da Igreja é fé no “Santo de Deus”, isto é, fé que, em Jesus, está a Shekinah, a presença de Deus. Onde Deus está agora neste mundo? Não no Santo do templo de Jerusalém, mas sim na humanidade feita carne e sangue de Jesus, o Filho de Deus.

Ao perguntar a Jesus: “A quem iremos, Senhor?”, Pedro expressa toda a fé dos discípulos em relação a ele, toda a sua unicidade de Rabi, Profeta e Messias; ao mesmo tempo, chega ao verdadeiro vértice da sua profissão de fé: “Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus”.

Pedro manifesta uma experiência, um conhecimento devido ao fato de estar com Jesus durante anos: ele é o Santo, como o anjo o tinha definido a Maria no anúncio (“O Santo que vai nascer de você será chamado Filho de Deus”, Lc 1,35); Jesus é partícipe da santidade do próprio Deus, portanto, é o Senhor (JHWH), que, nas Sagradas Escrituras, é chamado e invocado como Santo. Na tradição joanina, que confluiu no Apocalipse, Santo também é o título de Jesus ressuscitado (cf. Ap 3, 7).

Assim termina o longo e nada fácil discurso de Jesus sobre o pão da vida. No fim, provavelmente, há mais coisas que não conseguimos entender, realidades que não podemos sustentar, em relação àquilo que compreendemos e acolhemos. Nós também ficamos chocados com essas palavras, talvez não intelectualmente, mas ao acolhê-las para vive-las existencial, concreta e cotidianamente. Mas se, como os Doze, não vamos embora, mas permanecemos junto de Jesus com as nossas fraquezas, que também dizem respeito à fé, e se tentamos perseverar no seu seguimento, isso é suficiente para acolher o dom gratuito e não rejeitá-lo ou não percebê-lo: Jesus, homem como nós, no qual “habita corporalmente toda a plenitude da vida de Deus” (Col 2, 9), Deus mesmo, é a palavra que nos alimenta, é o pão de vida que recebemos na eucaristia, no nosso caminho rumo ao Reino.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br