O Papa Francisco investiu os sínodos dos bispos com uma relevância que não se via há séculos, então talvez seja justo que ele tenha agora a sua própria versão da mais renomada cúpula de todas, o infame “Sínodo do Cadáver”, do ano 897. A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 22-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Acredite-se ou não, a principal manchete da ação dessa segunda-feira no Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, que ocorre entre os dias 6 e 27 de outubro, envolveu um vídeo de dois homens que roubaram estátuas indígenas que representavam uma mulher grávida nua que estava em exibição em uma igreja romana e depois, um por um, jogaram pedaços quebrados das imagens no Rio Tibre, em frente à fortaleza papal de Castel Sant’Angelo.

Até o momento em que este texto foi escrito, cerca de 115.000 pessoas haviam assistido ao vídeo do incidente no Youtube.

O porta-voz vaticano, o leigo italiano Paolo Ruffini, disse em resposta aos repórteres na segunda-feira que o furto e a destruição das estátuas eram “um ato de desafio” e um “golpe” que era “contra o espírito de diálogo”, enquanto o padre jesuíta italiano Giacomo Costa acrescentou que “roubar objetos nunca é construtivo”.

Na terça-feira, os participantes indígenas do Sínodo da Amazônia divulgaram uma declaração, denunciando o incidente por refletir “a intolerância religiosa, o racismo, atitudes vexatórias, que (...) demonstram uma resposta negativa para construir novos caminhos para a renovação da nossa Igreja”. Eles também alertaram que “esses atos podem se repetir ou subir o tom, e gerar efeitos maiores”.

O incidente ocorreu em meio a uma onda constante de críticas por parte de meios de comunicação católicos tradicionalistas, que definiram a estátua – que apareceu durante uma cerimônia de oração envolvendo o Papa Francisco, no Vaticano no dia 4 de outubro, bem como na procissão de abertura do Sínodo –como uma imagem pagã e sugerindo que sua presença em espaços e ritos católicos equivalia a sacrilégio.

Como disse uma vez o falecido cardeal Francis George, tudo na Igreja Católica já ocorreu pelo menos uma vez. De fato, existe um precedente para a mise-en-scène dessa segunda-feira, envolvendo não o fato de lançar uma estátua no Tibre, mas sim um papa.

Le Pape Formose et Étienne VII (“O Papa Formoso e Estevão VII”), óleo sobre tela, Jean-Paul Laurens, 1870 (Credit: Stock image/Crux)

Em 896, um novo pontífice chamado Estevão VI chegou ao poder sob o patrocínio da influente família Spoleto de Roma. O clã ainda mantinha um antigo rancor contra um papa anterior, Formoso, que havia apoiado seus rivais carolíngios como Sacro Imperador Romano.

Foi assim que, um ano depois, Estevão ordenou que os restos de Formoso fossem desenterrados e postos sob julgamento. O cadáver foi colocado em um trono durante os procedimentos, e um diácono foi até nomeado para falar em sua defesa – embora, como observam os historiadores, não de um modo muito agressivo.

Estevão acusou Formoso de várias formas de heresia e usurpação, e o falecido pontífice foi obedientemente considerado culpado. Seu papado foi declarado nulo, três dedos da mão direita usados para administrar as bênçãos foram cortados, e seus restos mortais foram jogados sem qualquer cerimônia no Tibre, de acordo com o antigo costume romano, quando o objetivo é uma damnatio memoriae, obliterando até mesmo a memória de um inimigo derrotado.

Sem dúvida, existem diferenças entre 1.100 anos atrás e a última segunda-feira.

Por um lado, ninguém jogou o papa no Tibre desta vez, embora esse contraste possa ser menos significativo do que pareça. Obviamente, as pessoas por trás do minidrama dessa segunda-feira viam as estátuas como símbolos daquilo que eles não gostam no Papa Francisco – o fato de ele abraçar as culturas e crenças não cristãs, sua agenda “terceiro-mundista” e progressista, sua indiferença à costumeira pompa e circunstância do rito tradicional, e assim por diante.

Em outras palavras, se aqueles dois homens tivessem a opção de jogar o próprio Francisco no rio, eles o teriam feito. As estátuas foram simplesmente o mais próximo que elas realmente puderam chegar.

Talvez a diferença mais relevante seja que o que aconteceu em 897 não foi realmente um “sínodo”, mesmo que Estevão tenha obrigado um punhado de prelados a estarem presentes para dar uma certa credibilidade superficial aos procedimentos. No máximo, o que aconteceu poderia ser chamado de um julgamento eclesiástico, embora isso seja exagerado.

Na realidade, foi apenas uma farsa realizada para conseguir alguns pontos políticos baratos – o que, pensando bem, talvez sugira que isso não foi tão diferente do que aconteceu na segunda-feira.

O que resta saber é se as consequências da ação dessa segunda-feira terão alguma semelhança com o que aconteceu com o Papa Estevão depois do Sínodo do Cadáver.

Todo o caso azedou a opinião pública sobre o novo papa, e começaram a surgir rumores de que o corpo de Formoso havia chegado às margens do Tibre com o poder de realizar milagres. Uma revolta popular levou à prisão de Estevão, e ele foi estrangulado até a morte na prisão, apenas seis meses depois.

Provavelmente, ninguém vai estrangular os homens que roubaram as estátuas na segunda-feira – embora algumas discussões acaloradas no Twitter indiquem que existem pelo menos algumas almas capazes disso por aí. No entanto, veremos se o ato, no entanto, se voltará contra os especialistas e os meios de comunicação que levaram as pessoas a um frenesi, oferecendo uma espécie de reductio ad absurdum teatral sobre todo o debate.

Enquanto isso, o Sínodo da Amazônia seguirá em frente, produzindo presumivelmente um conjunto de recomendações ao Papa Francisco que podem fornecer o esboço para uma nova abordagem pastoral para a maior floresta tropical do mundo. É um assunto sério, sendo conduzido por pessoas que levam a sério aquilo que está em jogo.

Não obstante, daqui a alguns anos, o que as pessoas realmente podem se lembrar desse sínodo não serão as suas conclusões, mas o seu cadáver... o que, se você pensar bem a respeito, é praticamente o oposto daquilo que uma damnatio memoriae bem executada supostamente deve fazer. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br