Austeridade é palavra de ordem no governo do papa jesuíta

 

Em decisão histórica, Francisco reduz em 10%, e por tempo indeterminado, o salário dos cardeais que atuam em Roma (AFP/ Vincenzo Pinto)

 

Mirticeli Medeiros*

Como o resto do mundo, o Vaticano está em crise. Recentemente, a Secretaria de Economia da instituição publicou seu balanço anual, que prevê déficit de 49,7 milhões de euros. Motivo: atividades comerciais em queda (atrações turísticas e museus fechados); menos doações à Igreja e setor imobiliário pouco movimentado por causa da crise. Diante disso, qual a atitude do papa? Evitar, a todo o custo, as demissões. O pontífice disse que nenhum funcionário do Vaticano ficará sem emprego, independente do que aconteça. O pequeno Estado mantém, atualmente, cerca de 5 mil funcionários. Dentre os quais mais de 3 mil não são religiosos.

Mas para tomar esse tipo de decisão, outros cortes tiveram que ser feitos. E num ato corajoso, Francisco mexeu, justamente, no bolso de seus mais estreitos colaboradores: os cardeais. Preferiu sacrificá-los a reduzir a remuneração dos pais de família que dependem do Vaticano.

Um cardeal que trabalha no pequeno Estado ganha, atualmente, cerca de 5. 500 mil euros (pouco mais de 36 mil reais, na cotação atual). Além disso, eles não pagam impostos na Itália (porque são cidadãos do Vaticano) e moram em 'apartamentos funcionais' cedidos pela instituição. Com a medida, eles passarão a receber 4.950 mil euros – menos 10%. Mesmo assim, é um valor acima da média, se compararmos à realidade italiana. Para se ter uma ideia, um funcionário público, no país, fatura metade disso. Um gerente de banco, por exemplo (um dos cargos mais bem pagos na Itália), embolsa cerca de 4 mil euros ao mês.

Vale salientar que a medida se aplica somente aos cardeais que trabalham no Vaticano. São eles que, em sua maioria, coordenam os dicastérios (ministérios) da Cúria Romana, como no caso da Congregação para a Doutrina da Fé, Institutos de Vida Consagrada, Culto Divino, etc. Como vimos, o valor da remuneração ultrapassa o recebido por trabalhadores formais na Itália. Porém, enquanto ministros de um Estado (no caso, o Vaticano), os purpurados recebem menos que um ministro do governo italiano, cujo salário varia entre 9 mil e 12 mil euros ao mês.

Os outros cardeais, que geralmente são arcebispos de grandes cidades pelo mundo, são mantidos pelas dioceses que coordenam. Os italianos recebem entre 1.400 e 3 mil euros.

A decisão de Francisco foi publicada em forma de motu proprio (um documento pontifício que exprime um desejo pessoal do papa). É a segunda vez que ele, dentro do seu projeto de reforma das finanças vaticanas, mexe no dinheiro dos purpurados. E explicou que a mudança não foi motivada somente pela crise provocada pela pandemia. O texto também diz que o objetivo é seguir os "critérios da proporcionalidade e da progressividade", de modo que "os postos de trabalho, daqui pra frente, sejam salvaguardados".

Em 2013, após ser eleito, o papa argentino retirou o bônus de 2 mil euros que era concedido aos cardeais da Comissão do Banco do Vaticano (IOR). Na época, para conter gastos, também congelou o salário de todos os empregados do Vaticano.

Desta vez, além dos cardeais, chefes de outros organismos da Cúria Romana, bem como religiosos e padres, que não necessariamente assumem cargos de direção, terão redução na folha de pagamento. Menos 8% para o primeiro grupo e menos 3% para o segundo.

Os cardeais, que trabalham em Roma, sempre receberam uma contribuição?

A remuneração dada aos cardeais, que por muito tempo foi chamada de "piatto cardinalizio" – do italiano, "prato cardinalício" – foi estabelecida, formalmente, no século 15, pelo papa Paulo III. Porém, para que o cardeal pudesse receber a remuneração, alguns critérios deveriam ser observados.

O beneficiado não poderia pertencer a uma família nobre nem receber nenhum tipo de sustento do soberano do território de proveniência. O prato, nesse caso, servia para suprir o que faltava à manutenção daquele cardeal em Roma, um auxílio "ao prato do pobre cardeal".

Atualmente, o Vaticano prefere usar o termo "contribuição cardinalícia" quando se refere à remuneração recebida pelos cardeais que atuam na Cúria Romana.

 

*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras. Fonte: https://domtotal.com