Ainda que permaneça certo desânimo com o que é visto como apatia do ex-presidente, o discurso antipetista alvoroça púlpitos

 

Anna Virginia Balloussier

SÃO PAULO

Após uma ruidosa participação na campanha eleitoral, em que até mentiu sobre uma intimação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que nunca existiu, o pastor André Valadão baixou o tom por um tempo. O entusiasmo por Jair Bolsonaro (PL) desbotou em suas redes sociais.

Valadão chegou a se dizer decepcionado com a letargia do aliado após a derrota para Lula (PT), semanas antes da viagem para os EUA que Bolsonaro fez no epílogo do seu mandato, e da qual ainda não retornou.

Em fevereiro, um seguidor quis saber no Instagram: "O senhor batizaria o Lula?". Líder na Igreja Batista da Lagoinha, baseado na mesma Flórida onde por ora reside o ex-presidente, ele respondeu que sim. "Mas deixa uns 30 segundos ali debaixo d’água para dar uma limpada com força, né?"

Ambígua o bastante para mesclar apologia de violência e proposta evangelizadora, a reação ressuscitou algo nas entranhas do bolsonarismo.

A quem se perguntava se o triunfo lulista marcaria a volta de uma velha disposição fisiológica no segmento, o chiste mostrou que não é bem assim. O persistente mau humor nas igrejas com a esquerda pode sinalizar um ponto de não retorno nessa relação.

Ainda que permaneça certo desânimo com o que é visto como apatia de Bolsonaro nesses primeiros meses fora do cargo, o discurso antipetista ainda alvoraça púlpitos.

Silas Malafaia foi um dos que foi a público criticar o amigo. Mas a mão que apedreja também afaga. "Sou aliado, não alienado. Não tenho Bolsonaro como ídolo. Sei que ele tem defeitos, que tem erros, mas põe na balança o que ele fez nos quatro anos de governo. Ele tem muito mais crédito."

E o ex-mandatário conseguiu uma façanha, diz o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. "É uma coisa rara: o cara é derrotado e continua com maioria absoluta no segmento."

Malafaia, assim como Valadão, costuma se posicionar com mais belicosidade do que outros colegas, é verdade. Como também é fato que alguns líderes ensaiaram uma trégua.

O bispo Edir Macedo, por exemplo, logo depois da eleição falou em perdoar Lula, eleito "por vontade de Deus". As pancadas que o jornal da sua igreja, o Folha Universal, vinha dando na esquerda também murcharam.

Mas "espaços viáveis de conciliação" estão fora do horizonte, afirma o sociólogo Ricardo Mariano, que pesquisa a ascensão evangélica. "A aliança com Bolsonaro robusteceu a radicalização política de grande parte das lideranças, e isso intensificou a oposição ao PT."

Para a cientista política Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião, pastores bolsonaristas podem até estar "mais calados sobre o apoio a um ex-presidente que saiu do país e nunca mais voltou", mas não silenciaram suas desaprovações a Lula. "Esse elemento é novo. Nas gestões anteriores do PT, a vocalização dessas críticas arrefecia assim que os governos eram eleitos."

Bater em candidaturas tidas como progressistas não é nenhuma novidade. O próprio Lula apanhou um bocado no passado. A Universal de Edir Macedo o comparava ao diabo em 1989. Em 1994, colocou-o na capa de seu jornal e legendou: "Sem ordem e sem progresso".

Tão logo o petista chegou ao Palácio do Planalto, em 2003, vários líderes suspenderam a beligerância e abraçaram o PT, cortesia que se estendeu ao governo Dilma Rousseff. Entre os fatores que colaboraram para o desgaste dessa relação estavam a iminência da perda de poder, na medida em que o impeachment de Dilma se avizinhava, e também o avanço da agenda identitária.

É preciso considerar que o bolsonarismo se retroalimentou desse fenômeno relativamente novo, diz Mariano.

"As disputas morais ganharam relevo nas últimas duas décadas. Em resposta a movimentos feministas e LGBTQIA+, a reivindicações por igualdade de gênero e à aprovação, pelo STF, da união civil de pessoas de mesmo sexo e do aborto de anencéfalos, atores evangélicos radicalizaram seu ativismo político, sobretudo a partir do primeiro governo Dilma, em defesa da conformação do ordenamento jurídico a valores bíblicos."

Deram assim uma contribuição e tanto para a avalanche de manifestações de direita que jorrariam nos anos seguintes, segundo o sociólogo. Bolsonaro pegou carona nesse Zeitgeist em formação, como ao difundir a falsa tese do "kit gay".

Num primeiro momento, o retorno do lulismo pareceu desnortear a cúpula evangélica. Encontrar saídas honrosas para se aliar ao governante da vez costumava ser a praxe no meio. Bússolas para o batalhão de pequenos e médios pastores espalhados pelo país, líderes de envergadura nacional apostaram alto na reeleição de Bolsonaro. Ele perdeu, e eles se viram numa posição que lhes era pouco familiar: oposição.

Para Evangelista, o debate "é menos sobre como se mantém o bolsonarismo e mais sobre como, e se se mantém, o antiesquerdismo". Pastores, afinal, pautam a base, mas também são pautados por ela. Fica insustentável persistir no discurso do medo se lá na ponta os fiéis estão vendo melhoras reais no dia a dia.

"Que políticas deste governo também estão a serviço dessa população e melhoram concretamente suas condições de vida como trabalhadores, mães de família, jovens inseridos nas universidades e no mercado de trabalho? Independentemente de serem evangélicos."

Chegamos então a um impasse. Ainda não há qualquer sinal à vista de que o PT vai conseguir reaver a parceria com as igrejas. Já Bolsonaro ainda é um farol, mas sua moral no segmento caiu no último trimestre.

A Casa Galileia, que monitora redes sociais evangélicas, notou essa retração, diz seu assessor de campanhas, o antropólogo Flávio Conrado.

Os acampamentos em frente a quartéis, que por fim desembocaram nos ataques golpistas de 8 de janeiro, afugentaram parcela dos crentes.

"Alguns já disseram ali ‘perdemos’ e vamos então orar pelo Lula, botar a viola no saco e lidar com a perda. A candidatura de Bolsonaro foi trabalhada como a luta do bem contra o mal, e a derrota causou grande frustração entre os fiéis."

A partida para os EUA, contudo, deixou um vácuo no conservadorismo, afirma Conrado. "Me parece ter uma rearrumação desse campo, esse refluxo. Ele vai continuar sendo a liderança da extrema direita?"

O deputado Otoni de Paula (MDB-RJ), que chegou a posar com petistas e dizer que a omissão do ex-presidente nos últimos tempos "beira a covardia", é um bom exemplo desse pêndulo entre pragmatismo político e óbice ideológico.

"Sem dúvida alguma", diz o membro da bancada evangélica, Bolsonaro ainda é o grande nome para 2026 nos templos. "Ele tem a capacidade da Fênix. Quando todos apostam que agora já era, ele consegue ressurgir. As críticas que ele sofreu, e inclusive fiz parte de algumas delas, não são fator de ruptura."

Retomar uma acomodação com progressistas lhe parece algo improvável, diz. "Antes você não tinha muito bem a compreensão entre direita e esquerda. Com a voz dissonante do bolsonarismo, passou-a se ter a real clareza do que é uma e do que é outra. Por isso acho muito difícil que o lulismo consiga fazer dentro da igreja o que Bolsonaro fez. Era necessário que o PT morresse e ressuscitasse com nova roupagem ideológica."

"Em futuras eleições, continuaremos sendo guiados pelos mesmos princípios que nos trouxeram até aqui, ou seja, mais à direita", afirma o bispo Eduardo Bravo, à frente da Unigrejas, braço da Universal.

Esse nome pode ser Bolsonaro, mas não necessariamente. "Para mim, pessoalmente, mito somente o Senhor Jesus."

Enquanto isso, o efeito rebote vem a mil. Daí o fortalecimento de pautas como o preconceito visto no deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que usou uma peruca para zombar as trans no Dia da Mulher, e no reforço transfóbico do também evangélico senador Magno Malta (PL-ES). Em evento com Michelle Bolsonaro, ele disse que homens nunca terão útero, ataque patente à mulher trans.

Valadão, o pastor que sugeriu deixar Lula um tempinho sob a água para batizá-lo, embarcou na mesma onda. Postou uma montagem da "picanha trans", que "nasceu coxão duro, mas se sente picanha".

"Tá desse jeito", comentou. O futuro do bolsonarismo entre evangélicos está nas mãos de líderes como ele. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br