Opus Dei completa 95 anos 'em guerra' com o Papa Francisco

Mais poderoso grupo católico, com 4 mil sacerdotes em 67 países, ‘Igreja dentro da Igreja’ tem sua influência e independência questionadas pelo pontífice

 

Por 

Alessandro Soler 

— Madri

Os 95 anos de fundação do mais poderoso grupo católico do mundo, completados no último dia 2, provavelmente estão sendo menos festivos — e mais cheios de sombras — do que desejariam seus líderes. E a razão principal é a “guerra” que vaticanistas afirmam haver entre o Papa Francisco e a Opus Dei, instituição criada em 1928 por São Josemaría Escrivá, um sacerdote conservador espanhol canonizado em 2002 por iniciativa do então Papa João Paulo II.

Com status único no contexto do catolicismo, concedido também por Karol Wojtyła há mais de quatro décadas, a Opus é uma prelazia pessoal. Ou seja, uma espécie de diocese sem território, na qual seu líder tem ascendência sobre um rebanho de 93 mil afiliados diretos, 4 mil sacerdotes e 600 mil participantes dos seus projetos — entre eles dezenas de colégios e universidades — em 67 países. Tudo isso sem precisar prestar contas a bispos locais.

Tradicionalmente ligada às elites econômicas e às forças políticas de direita nos territórios onde tem mais força — principalmente na Espanha, onde surgiu, mas também na América Latina, na Itália e na França —, a organização tem visto como, desde o ano passado, uma série de decisões do Papa argentino colocam em xeque seu poder e sua influência. Uma tendência que, para alguns analistas, deve seguir.

Veja fotos do Papa Francisco no Santuário de Fátima, em Portugal

Em julho de 2022, veio o primeiro golpe. Por meio de um decreto papal, Francisco rebaixou o status do líder máximo da Opus, conhecido como prelado — cargo hoje ocupado pelo sacerdote espanhol Fernando Ocáriz. Com a decisão, os prelados já não podem virar bispos nem usar símbolos como o anel e as vestimentas episcopais. Além disso, a Opus passou a se remeter ao Dicastério para o Clero, um órgão “menor” do que a Conferência dos Bispos, à qual antes estava subordinada. Mais: em vez de elaborar um relatório minucioso das suas atividades a cada cinco anos, Francisco quer que a Obra — como também é chamada a organização — preste contas anualmente.

— Sempre se disse que a Opus é uma Igreja dentro da Igreja, rompendo a cadeia de comando da hierarquia eclesiástica e embrenhando-se nas instituições dos Estados. Francisco, ao regular essa pulsão por poder, faz um grande serviço não só para a Igreja, mas para toda a sociedade — disse o teólogo Álvaro Ramos, da Universidade Academia de Humanismo Cristão, de Santiago (Chile). 

 

Rebaixamento

Para ele, o Papa Francisco, ligado a correntes progressistas dentro da Igreja, quer pôr fim a décadas de privilégios de uma organização que ganhou impulso durante o regime do ditador espanhol Francisco Franco, quando passou a ocupar diferentes ministérios. Dali, seus dirigentes teriam saltado para a administração de grandes empresas estatais e privadas. E o mesmo modus operandi se reproduziria em outros países, com a expansão latino-americana da Opus turbinada durante as ditaduras de Brasil, Chile e Argentina.

Em agosto, Francisco editou um novo decreto, “rebaixando” ainda mais a entidade. A atual prelazia pessoal passará a ser tratada como uma simples associação católica com o poder de incorporar sacerdotes aos seus quadros. Um status de que já goza, por exemplo, a Comunidade Emanuel, associação dedicada a trabalhos de caridade e imigrantes.

— Francisco já tem idade avançada, talvez lhe falte vigor físico para esta guerra. Mas ele está incomodado com o poder acumulado pela Opus e outros grupos ultraconservadores. É interessante que ele nunca, desde que assumiu, veio à Espanha, onde a alta hierarquia do clero lhe é particularmente hostil. Mas acaba de emplacar na Arquidiocese de Madri um arcebispo próximo, está deixando seu legado e equilibrando o jogo em favor dos progressistas. E não deve parar — disse Alexandre Nicolae Muscalu, historiador e pesquisador da história das religiões.

Publicamente, os dirigentes da Opus garantem não haver qualquer briga. Para a chefe da Comunicação da entidade na Espanha, Almudena Calvo, a razão de ser da organização é “estar a serviço do Papa e da Igreja”.

— (O fundador) São Josemaría encorajou-nos a ter um grande carinho pelo Papa, seja quem for em cada momento, e é assim que vivemos o relacionamento com o Romano Pontífice — pontuou. — Quanto à ideia de uma perda de influência do Opus Dei após estas mudanças, vale a pena recordar as palavras do monsenhor Fernando Ocáriz, que afirmou que 'muitas vezes há uma tendência para ler a realidade em termos de poder e polarização'. Na Igreja e na Obra, estamos distantes dessas lógicas.

Na mesma entrevista ao GLOBO, Calvo abordou outro tema incômodo, que de tempos em tempos volta à tona: as acusações de trabalho escravo que recaem sobre a Opus. A mais recente foi na Argentina, onde 43 ex-numerárias auxiliares (base da cadeia hierárquica da organização) disseram ter sido submetidas a anos de servidão aos seus dirigentes em condições análogas à escravidão: sem salário, descanso ou aposentadoria.

— Esta acusação é totalmente falsa e faz uma referência enganosa e descontextualizada a uma iniciativa socioeducativa sem fins lucrativos que foi aprovada e supervisionada pelas autoridades estatais competentes na Argentina por mais de 40 anos — afirmou a representante da prelazia.

Na Espanha, existem denúncias similares. Uma ex-numerária auxiliar identificada como Soledad contou ter passado 26 anos “sem receber nada, em jornadas extenuantes e sem seguridade social”.

— Me liguei à Opus aos 18 anos. Disseram que eu ia ser santa e que Deus estava prestando atenção em mim. Aquilo me causou enorme impressão. As auxiliares cuidam dos afazeres domésticos. Não me deixaram estudar teologia, as mulheres os servem e os obedecem — afirmou Soledad.

 

Como outras numerárias auxiliares, Soledad, mesmo sem votos religiosos, disse ter tido de se submeter à mais estrita castidade:

— O desejo por outra pessoa é pecado mortal. Por anos, aguentei, até que tive um problema de saúde mental e quis sair. O processo é longo e doloroso. E, quando uma pessoa sai, é excluída. Ninguém de lá jamais me ligou para saber como eu estava.

O abandono relatado por Soledad é, como descreveu Muscalu, um indício do “sectarismo” da Opus — uma organização que não toleraria dissidências, degredando seus ex-membros. Para o historiador, a teia de infiltração de membros da Obra entre ricos e altos hierarcas dos três poderes sempre foi construída subterraneamente. A luz que Francisco lança sobre a organização traz dúvidas sobre a manutenção desse poder:

— É verdade que a Obra há décadas se voltou para um forte trabalho junto à juventude, de formação segundo suas balizas e visões de mundo ultraconservadoras, antiaborto, homofóbicas. Mas, hoje em dia, essas pautas foram capturadas na América Latina pelos evangélicos, daí a perda de influência da organização fora da Espanha. Se conseguirá se manter relevante, com a concorrência de tantos novos grupos, e sob essas investidas do Papa, só o tempo vai dizer — disse Muscalu.

  

‘Pessoas normais’

Mas, na Espanha, o crescimento de grupos conservadores, como o partido político Vox , podem manter parte da influência da Opus no local onde nasceu.

A chefe da Comunicação da Opus Dei, Almudena Calvo, nega que as pessoas da prelazia sofram autoflagelações e sacrifício físico:

— As pessoas do Opus Dei são normais e comuns, integradas na sociedade, se vinculam à Obra e são livres para sair e optar por outro estilo de vida. A mortificação cristã, própria da Igreja Católica, que os membros da Obra praticam livre e voluntariamente, tem um sentido próprio, que não tem nada a ver com o que você propõe. Exageros que foram levados a reportagens e filmes deformam a realidade. Fonte: https://oglobo.globo.com