Ator Leo Bahia e médico Gerson Salvador falam sobre o filme Depois do Universo

 

Cynthia Araújo

CADA PESSOA VÊ UM SIGNIFICADO DIFERENTE, MAS, PARA MIM, MOSTRA COMO A MORTE É UM DISTANCIAMENTO FÍSICO: AS IDEIAS, OS MOMENTOS QUE A GENTE COMPARTILHA, OS ENSINAMENTOS QUE PODE DEIXAR PARA ALGUÉM, ISSO É IMORTAL, ETERNO. EU SINTO QUE O FILME MOSTRA COMO PODEMOS DIALOGAR COM A VIDA E O MUNDO, TÃO COMPLEXOS, DE DIFERENTES ÂNGULOS

LEO BAHIA

No final do ano passado, vi no catálogo da Netflix que um filme brasileiro estava entre os mais vistos da plataforma no mundo.

Depois do Universo estreou no dia 27 de outubro de 2022. Logo me chamou a atenção, porque reúne duas coisas que me interessam muito: histórias sobre pessoas com doenças graves e enredos em que pianos têm um papel importante. O filme conta a história de Nina (Giulia Be), uma pianista que tem lúpus e precisa de um transplante de rim.

Eu fiquei ainda mais interessada pelo filme ao saber que o querido amigo Gerson Salvador foi consultor técnico do filme. Gerson era nosso colega aqui na Folha de São Paulo e escrevia o Blog "Linha de Frente". Antes mesmo de assistir, pedi a ele uma entrevista para o Morte sem Tabu, porque acho fantástico quando as obras no audiovisual se preocupam com a qualidade das informações que passam, especialmente quando envolvem questões de saúde.

Logo nos primeiros minutos do filme, outra feliz surpresa. Leo Bahia, que eu havia conhecido alguns meses antes no teatro, como Marilton Borges do musical "Os sonhos não envelhecem", interpreta Yuri, um dos personagens mais carismáticos e sensíveis de Depois do Universo.

Abaixo você confere as entrevistas que realizei com o médico infectologista e escritor Gerson Salvador e com o ator, cantor e compositor Leo Bahia.

 

MORTE SEM TABU: Como é o trabalho de um médico consultor técnico no audiovisual?

GERSON SALVADOR: Na minha experiência, a consultoria técnica pode acontecer desde o roteiro até a produção, inclusive no set de filmagem.

A primeira consultoria técnica que eu fiz para audiovisual foi na série documental da Netflix Mundo Mistério, em que o apresentador Felipe Castanhari explora mistérios da ciência e da história. Eu fiz uma pesquisa para o episódio sobre a Grande Peste para dar suporte técnico para o roteiro. Então eu respondia perguntas e também revisava o texto final.

No filme Depois do Universo, com apoio de uma equipe de especialistas, eu trabalhei desde o roteiro até a produção, em diferentes etapas. Colaboramos com o laboratório do protagonista Gabriel (Henrique Zaga), que interpreta um médico que atua no SUS. Depois trabalhamos junto com o pessoal da direção de arte, cenografia e figurino. Na maquiagem, participamos especialmente da caracterização da Nina (Giulia Be), que é a outra protagonista, porque são apresentadas alterações no corpo em razão da doença que ela tem, lúpus. Também orientamos atores em cena, quando as gravações eram relacionadas a questões médicas.

O último trabalho de consultoria técnica que fiz foi para a 3ª temporada da série da Universal TV "Unidade Básica".

 

MORTE SEM TABU: Em qual momento você foi convidado para participar do filme?

GERSON SALVADOR: Um dos produtores do filme, Luciano Reck, fez o convite para o projeto ainda na fase de roteiro. Nessa fase da consultoria para o roteiro, eu trabalhei diretamente com o diretor e roteirista Diego Freitas, que tinha uma grande preocupação tanto de fazer um filme verossímil, representando as coisas como são e acontecem, quanto de ser respeitoso com as pessoas que tem lúpus, que fazem hemodiálise, aguardam transplante.

 

MORTE SEM TABU: Que tipo de informações são importantes no roteiro e na produção de filmes que contam a história de pessoas com doenças graves?

GERSON SALVADOR: O filme Depois do Universo conta a história da Nina, uma jovem que tem uma doença crônica, e quer passar a mensagem de que a doença não define um indivíduo. Apesar de ter lúpus com manifestações graves, como uma doença renal crônica, que exige a hemodiálise, ela mantém o sonho de ser pianista na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Muitas pessoas em situações semelhantes podem se identificar com a história e se sentir representados nessa ideia de que nossa vida vai muito além da doença, que podemos fazer muitas coisas com e apesar dela.

Em relação à produção, foi desafiador encontrar locação em hospital, então o pessoal da arte construiu um hospital cenográfico. Foi muito importante trabalhar com a equipe de cenografia desde as primeiras plantas e ver o hospital construído. Também trabalhamos com a equipe de figurino discutindo os trajes dos profissionais de saúde; com a equipe de maquiagem, especialmente para a caracterização da Nina, em que incluímos marcas no rosto características do lúpus, que a gente chama de "rash malar"; e fístula em seu braço que foi feita pela maquiadora com o suporte de um cirurgião vascular de nossa equipe.

Foi uma experiência muito especial para mim, tanto pelo que aprendi, quanto pelos excelentes profissionais que conheci.

 

MORTE SEM TABU: No filme, Nina tem lúpus e precisa fazer sessões de hemodiálise, mas, em dado momento, sua situação de saúde se agrava e ela precisa encontrar logo um doador ou uma doadora de rim. Pode falar um pouco sobre a relação entre o lúpus e o comprometimento dos rins?

GERSON SALVADOR: O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença que afeta o corpo em diversos aparelhos. Pode dar lesões de pele, alterações nas articulações, no sangue, no sistema nervoso central, pode inflamar a membrana que envolve o coração (pericárdio), e pleura que envolve o pulmão, o peritônio, que fica no abdômen. E pode também causar doença renal crônica, que acontece em 10 a 30% dos casos. É uma doença que acomete mais frequentemente mulheres jovens, como a protagonista Nina.

 

MORTE SEM TABU: Na sua experiência, é comum a doação de órgãos entre vivos? Em quais casos costuma acontecer?

GERSON SALVADOR: Eu nunca trabalhei diretamente com transplante, mas, sobre a doação de órgãos entre pessoas vivas, acho importante dizer que o doador ou a doadora precisa ter boas condições de saúde, ser capaz juridicamente, estar de acordo com a doação, tem que ter no mínimo 21 anos. Essa pessoa passará por uma avaliação geral de saúde, não pode ter insuficiência renal, precisa avaliar o risco cirúrgico e, claro, precisa fazer testes de compatibilidade, para evitar a rejeição do órgão, que poderia causar até mesmo a morte do receptor.

Diferente do que acontece na doação de órgãos de pessoas falecidas, em que existe uma lista única por ordem de entrada, requisitos de urgência e compatibilidade e condição clínica, pessoas vivas podem doar órgãos para familiares ou, mediante autorização judicial, para terceiros.

É importante destacar que o Brasil tem o maior programa público de transplantes do mundo, garantido a toda a população por meio do SUS, que é responsável pelo financiamento de cerca de 88% dos transplantes no país.

 

MORTE SEM TABU: Por que as pessoas leitoras do Morte sem Tabu devem assistir a Depois do Universo?

GERSON SALVADOR: O Morte sem Tabu é um espaço de reflexão ética sobre finitude. Depois do Universo, além de ser uma história muito bonita, por falar sobre sonhar e amar apesar da doença e das limitações que ela traz, tem muitas reflexões éticas sobre adoecer e morrer, além de ser um linda história de amor e arte. Então acredito que os leitores do blog irão gostar muito.

 

MORTE SEM TABU: Eu sei que você já fez trabalhos na televisão, mas fiquei apaixonada pela sua atuação no musical "Os sonhos não envelhecem". Conta para as pessoas que conheceram você em Depois do Universo sobre a sua trajetória?

LEO BAHIA: Quando era mais novo, eu queria fazer vestibular para Medicina, mas, enquanto tentava ser aprovado, comecei a me interessar por música e fazer aula de canto. Eu tinha alguns amigos que estavam fazendo a versão de 2008 da peça "O Despertar da Primavera" e eles sugeriram que eu fizesse um teste. E aí eu percebi que conseguia passar muito mais horas envolvido nesse universo, estudando texto e me preparando para esse teste, do que para qualquer outra coisa que eu já tivesse tentado fazer antes. Foi a primeira vez que eu me vi verdadeiramente focado, com a atenção totalmente voltada para algo que eu estava amando fazer.

Eu não consegui o papel, mas, quando voltei para o cursinho pré- vestibular, em uma aula de física, percebi que Medicina não fazia mais sentido para mim.

Então eu resolvi fazer vestibular de Música na Unirio, com habilitação em canto lírico, que depois também vi que não era bem a minha praia. Mas eu já estava muito inserido no mundo da Música e do Teatro, fiz parte do programa de teatro musical da universidade e fiquei um tempo envolvido com musicais. Em 2016, comecei a migrar para o audiovisual, onde me encontrei como ator. E hoje eu também trabalho em composições musicais, algo que eu quero explorar cada vez mais. Eu vejo a Música como um meio muito potente de compartilhar processos e ideias.

 

MORTE SEM TABU: Como surgiu o Yuri?

LEO BAHIA: Foi paixão à primeira vista. A produtora de elenco Vanessa Veiga me convidou para fazer esse teste e eu me identifiquei muito com o Yuri. O roteiro do Diego Freitas e da Ana Reber é muito rico, muito complexo e dá muitas camadas a todos os personagens. É um humor muito bem escrito e todas as facetas do Yuri estavam ali, era ler e entender de que forma eu iria entrar naquele personagem que já estava pronto, descobrir as minhas partes em comum com ele. Foi realmente um casamento, um processo de preparação muito gostoso.

 

MORTE SEM TABU: Você se inspirou em alguém para compor o Yuri?

LEO BAHIA: Eu me inspirei muito naquele Leo que queria estudar Medicina, mas ao mesmo tempo não compartilhava muitos interesses com o universo que envolve a Medicina. O Yuri é um médico meio perdido, talvez meio fora de lugar, quem sabe por não ter tanto empenho por aquele trabalho específico, como tem o protagonista Gabriel. Eu sinto que o personagem tem muito daquele Leo que não conseguia focar no estudo para o vestibular de Medicina, porque era atravessado por outros sentimentos, outros interesses. No caso do Yuri, ao menos naquele momento do filme, ele está muito mais voltado para suas questões amorosas.

 

MORTE SEM TABU: Quais as dificuldades de interpretar um personagem com veia cômica em uma obra dramática?

LEO BAHIA: Eu acho uma delícia encontrar esses pontos de soltura nas obras dramáticas, encontrar o contraponto. O Yuri, embora traga essa leveza para o filme, dialoga com todas as suas complexidades. Acho que é um pouco a forma como eu encaro a vida, com leveza diante das dificuldades e problemas, mas também mergulhando em suas águas profundas. Ele é aquela pessoa que alivia as dores, que traz um pouco de humor, com quem você pode contar, apesar de também ter os seus próprios problemas. Eu gosto de rir dos problemas, até me divertir com eles, acho que faz os monstros ficarem um pouco menores. É claro que nem sempre a gente consegue, mas, para mim, buscar essa leveza se tornou uma condição de sobrevivência, porque as situações difíceis sempre vão existir. Se eu puder rir um pouco delas, isso me ajuda até mesmo a encontrar caminhos diferentes para resolver e organizar a vida.

 

MORTE SEM TABU: Como você recebeu o final do filme?

LEO BAHIA: Eu acho o final de Depois do Universo muito bonito, muito sensível. Cada pessoa vê um significado diferente, mas, para mim, mostra como a morte é um distanciamento físico: as ideias, os momentos que a gente compartilha, os ensinamentos que pode deixar para alguém, isso é imortal, eterno. Eu sinto que o filme mostra como podemos dialogar com a vida e o mundo, tão complexos, de diferentes ângulos. E, embora seja surpreendente de certa forma, eu acho que o final sintetiza bem a mensagem que ele quer passar.

 

MORTE SEM TABU: Quais são os seus próximos projetos?

LEO BAHIA: Eu estou na nova série dramática da Globoplay, "O Jogo que mudou a História", com um personagem apaixonado por futebol que é viúvo, tem um filho e é muito diferente do Yuri. A série conta a história da guerra do tráfico entre os bairros cariocas Parada de Lucas e Vigário Geral, que começou com um jogo de futebol. Eu também estou gravando uma música para um projeto chamado "Vale a pena gravar de novo", sobre o lado B da Música Popular Brasileira, que é um projeto incrível. Será meu primeiro single e estou muito animado, doido para lançar. Assim que sair, mando para vocês incluírem na playlist do blog. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br