O Estado do Rio de Janeiro prepara e entrega, com baixíssima resistência, mão de obra especializada — de armeiros meticulosos a assassinos profissionais — a toda modalidade de organização criminosa.

 

Por Carlos Andreazza

Jornalista, colunista do GLOBO e apresentador da rádio CBN

 

Já está na praça “Milicianos”, o livro-reportagem de Rafael Soares, repórter especial do GLOBO. Vai à categoria do “tem de ler”, prateleira Malu Gaspar, ademais editado em altíssimo nível. Demonstração vigorosa-corajosa-rigorosa das possibilidades do jornalismo quando investido de fôlego. Lembrança também de quanto é decisivo valorizar e proteger o arriscado jornalismo dedicado às cidades — ao local. (Lembrança inútil, para a festa no palácio.)

E então me recordo de “Os porões da contravenção”, de Chico Otavio e Aloy Jupiara, volume cuja leitura combinada à da obra de Soares explica — fundamenta — por que não haverá mais meios estaduais, com polícias Militar e Civil, para sequer enxugar o gelo da segurança pública no Rio de Janeiro. (Está no ar, no Globoplay, a série “Vale o escrito”; sobre a guerra contínua — guerra miliciana — entre bicheiros no estado. Capitão Guimarães, o que decerto tomou Niterói com versos, citando Shakespeare.)

Já era, o Rio tocado por claudios-castros e sob o signo de um sergio-cabral permanente. Agora — faz tempo — é narcomilícia, o efeito Ecko; o problema posto, imposto, como questão nacional, de fronteira, matéria suprapartidária, para 30 anos de gestão contínua de inteligência. A outra questão sendo se temos estadistas à altura do desafio. Não temos, dino-propaganda à parte.

“Milicianos” é aula de Rio de Janeiro, de como se decompõem — dissolvida a Liga da Justiça, fluente o intercâmbio entre práticas milicianas e traficantes, esmagados os comandos vermelhos — os limites entre zonas Oeste e Norte quando o assunto é progresso do corpo miliciano. Aula de Brasil — já que o armamento infinito não é produzido dentro das divisas fluminenses. Sem exagero: a obra jornalística deste 2023, desde já peça de referência a quem queira estudar “como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele”.

Como? As respostas estão todas nas 317 páginas. Tudo a começar sob lógica patrimonialista derivada da compreensão de que batalhões e delegacias, cuidando de áreas disputadas por grupos traficantes e milicianos, seriam também plataformas oportunistas — estratégicas — para exercício pervertido de poder.

É o caso da Patamo 500, entre 1997 e 2003; que, a partir do 9º Batalhão de Polícia Militar (Rocha Miranda, Zona Norte), ofereceu patrulha — carta branca — a que Ronnie Lessa pudesse desenvolver Ronnie Lessa. Sob o comando de Cláudio Luiz Silva de Oliveira. Não reconheceu? O caveira preso por ordenar a execução, em 2011, da juíza Patrícia Acioli. Evoluções.

O subtítulo é preciso: “Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele”. E o produto entrega o que apregoa. Prova que o Estado do Rio de Janeiro, para muito além da histórica corrupção nos poderes eleitos, prepara e entrega, com baixíssima resistência, mão de obra especializada — de armeiros meticulosos a assassinos profissionais — a toda modalidade de organização criminosa, inclusive internacional.

Faz toda a diferença — algo já desenvolvido no podcast “Pistoleiros” — o autor haver se dedicado ao percurso dos indivíduos. É o pulo do gato. Em vez de mais um estudo panorâmico sobre a constituição das milícias, uma investigação original pormenorizada acerca de personagens cujas dinâmicas, para além de encarnar a evolução das organizações criminosas, evidenciam padrões.

O matador de aluguel Adriano da Nóbrega, criador do Escritório do Crime, nunca foi caso isolado. Trajetórias como a dele, ex-policial raramente incomodado, exigiam o trabalho de formiguinha, perfeccionista, que Soares empreendeu. Um olhar sobre a multiplicação de policiais, a multiplicação de batorés, que foram promovidos, condecorados e bonificados — pelo Estado — enquanto, sob o Estado, faziam segurança de criminosos, traficavam armas e matavam a mando.

Outro padrão. Agentes de segurança estatais que, de colaboradores de traficantes, bicheiros e grupos paramilitares, avançam para se tornar sócios das organizações criminosas — e finalmente chefes milicianos, donos de territórios eles mesmos, não raro assassinos daqueles que os haviam arregimentando em busca de proteção. Capitão Adriano de novo. Corrompido para proteger o filho de bicheirão, afinal senhor do grupo de extermínio que mataria o antigo patrão.

Padrões desafiadores à ideia de República. Nenhum maior que o da demora, para não escrever negação, do Estado em punir os seus — até que não sejam mais seus. Até que matem uma juíza, uma vereadora. Fica ruim para Ministério Público e Judiciário também. Ronnie Lessa, acusado de ser o assassino de Marielle Franco, tendo contra si denúncias que iam de torturas a homicídios, passou anos e anos sem ser investigado a valer. Até se tornar sócio de Rogério de Andrade. Evoluções. Fonte: https://oglobo.globo.com