Entenda como a ideia do sociólogo Zygmunt Bauman pegou — e como se diluiu
Bolivar Torres
Quando o mal-estar com o mundo atual surge na mesa de bar, pode contar: alguém vai sacar a palavra “líquido”. Mas o papo vai além do chope: em uma das maiores livrarias da Zona Sul do Rio, todos os clientes abordados pelo GLOBO disseram conhecer bem o termo. As interpretações variam, mas são sempre associadas a mudanças bruscas, vida acelerada, afetos passageiros... O tal cotidiano pós-moderno.
— Tenho uma amiga que usa “líquido” direto. Para falar de rolos, emprego... Tudo é líquido — conta Victor Furtado, de 22 anos, atingido pelo “liquidez” na faculdade de Psicologia.
Assim como o conceito, seu criador também é pop. No Brasil, pelo menos, o pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) é um best-seller: seus 43 títulos já venderam mais de meio milhão de exemplares. Boa parte deles traz a palavra-chave no nome: “Modernidade líquida”, “Amor líquido”, “Vida líquida”... até “Mal líquido” — o último lançado entre nós ( veja quadro abaixo ) e em que o autor volta a seu tema fundamental: os dilemas da humanidade num mundo mais incerto e movediço.
A fórmula da água
Para o bem ou para o mal (líquido?), Bauman achou uma fórmula. Que, para o sociólogo Alexandre Werneck, funciona justamente por dar uma explicação para a perda de antigos valores.
“O termo 'líquido' se refere à liquefação do nosso arcabouço mais sólido: as instituições, a política, as identidades. Bauman nos oferece a ideia agradável de que alguém está pensando sobre nossas inseguranças.” ALEXANDRE WERNECK. Sociólogo
Outros intelectuais se debruçam sobre as mudanças contemporâneas, claro. O diferencial de Bauman, segundo Werneck, são as “metáforas espertas”, de fácil identificação pelo público.
“Amor líquido” (2004), por exemplo, trata da afetividade de um tempo em que tudo é passageiro, conceito ideal para a era de aplicativos como o Tinder. O livro é o maior sucesso de Bauman no Brasil, com mais de 100 mil exemplares vendidos. Em 2018, aliás, foi vice-campeão de vendas na editora Zahar, atrás apenas do sucesso mundial “Como as democracias morrem”, escrito pelos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
Mas, ao se tornar tão conhecido, o conceito não corre o risco de... diluir-se? Para outro pensador pop, Leandro Karnal, o risco é inevitável. Há bem mais gente falando “líquido” do que lendo Bauman, ele argumenta.
“É parecido com o que acontece com o termo “quântico”. Tudo o que uma pessoa não consegue explicar logicamente, vira quântico. Ela não sabe o que é quântico, mas parece demonstrar a existência de Deus” LEANDRO KARNAL. Filósofo
Segundo o italiano Thomas Leoncini, que conviveu com Bauman e coescreveu com ele “Nascidos em tempos líquidos” (2017), o autor tinha consciência do sucesso conquistado. Na Itália, conta Leoncini, as pessoas o paravam na rua para pedir abraços e autógrafos.
— Não me preocupo com a exploração do conceito de “liquidez” — ele diz. — Ao contrário, isso demonstra o quão representativa é esta imagem. Bauman foi brilhante em achar um nome que combina a incerteza da forma com o conceito de movimento.
Após “Mal líquido”, a Zahar planeja mais quatro lançamentos de Bauman até 2020. E a fonte (líquida!) está longe de secar. O autor polonês escreveu quase 90 obras. Talvez por causa do sucesso, sua produção ficou ainda mais intensa em seus últimos anos de vida: somente entre 2015 e 2017, quando morreu, foram 11 títulos.
— Nos anos 1990, ele teve a intuição de falar em modernidade líquida, dando sentido cultural a uma transformação da sociedade — observa o filósofo Paulo Vaz, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. — Era um conceito muito interessante, que ele passou a aplicar em diferentes campos. E aí talvez ele tenha se repetido um pouco, usando o mesmo argumento sem acrescentar muita coisa. Fonte: https://oglobo.globo.com