Frei Carlos Mesters, O.Carm.

I- INTRODUÇÃO

Situar o fenômeno: falar do leigo

* Se falamos tanto em leigo hoje, é porque existe um problema que se impôs à consciência e busca uma solução.

* Este mesmo problema se expressa na insistência com que, hoje, as Congregações começam a partilhar sua espiritualidade com os leigos, procurando caminhos novos para isso.

* Está ligado também à preocupação que se nota, em todo canto, de ir criando a “família religiosa”, na qual se congregam congregações afins junto com os leigos.

A busca de solução: voltar às fontes a partir da problemática atual

* O questionamento vem da realidade que já não aceita a visão tradicional, a teoria de sempre, e, por isso mesmo, inicia uma nova prática e uma nova leitura do passado.

Exemplos concretos: Bultmann, Cardijn, CPT, CIMI, CPO.

* Esta nova leitura do passado, motivada pela problemática atual ou pela preocupação de encontrar uma nova maneira de anunciar o Evangelho, está descobrindo dimensões desconhecidas e insuspeitadas. Pensávamos conhecer o passado e agora, de repente, descobrimos coisas totalmente novas que nos questionam. Por exemplo, na história da

Ordem: a dimensão laical, a fraternidade, o profetismo.

* Investiga-se, sobretudo, a Escritura a partir da problemática atual. É o que vamos tentar fazer nesta breve reflexão a partir da preocupação atual em torno da atuação dos leigos na Igreja e na Família Carmelitana. A divisão clero-leigo da maneira como existe hoje não existia naquele tempo, pois certos fatores que marcam o nosso clericalismo, não existiam naquele tempo. Por exemplo, o celibato, a jerarquia da maneira que está descrita no direito canônico, clero como sinônimo de sacerdote, etc. Mas, como hoje, havia uma elite que defendia e mantinha o sistema de divisão entre, de um lado, a elite e, de outro lado, o povo. E convém não esquecer que, por vezes, o leigo clericalizado é mais radical que o próprio clero.

Alguns pressupostos evidentes que não pareciam tão evidentes

* Nas primeiras comunidades cristãs, todos eram laicos, leigos, isto é, membros do laos, do povo de Deus. Havia novas funções, tanto para dentro como para fora, e havia, inclusive, uma certa jerarquia entre as funções ou carismas, mas, tudo era em vista da edificação da comunidade. No início, não havia a divisão entre clero e leigos que hoje marca a vida da Igreja.

* Todos se sentiam responsáveis pela divulgação da Boa Nova de Deus, que era a razão de ser da Comunidade. Este sentimento de responsabilidade nascia não de uma imposição da parte da autoridade, nem do medo de ir para o inferno, nem de um convite da parte do clero para as pessoas ajudarem na Igreja, mas nascia de uma experiência pessoal profunda da Boa Nova de Deus que Jesus trouxe. Ela é que fazia arder o coração e levava as pessoas a anunciar a Boa Nova, sem pedir licença a ninguém.

* A força que empurrava tudo era o Espírito de Jesus, presente na comunidade e distribuído, indistintamente, a todos e todas. Ele levava as pessoas a tomarem iniciativas novas que pareciam proibidas pelo sistema anterior. Por exemplo: entrar em casa de um pagão, acolher os pagãos, comer com não judeus na mesma mesa. Ele ajudava a derrubar divisões que pareciam de ordem divina, desde os tempos de Moisés. A preocupação de todos era reconstruir a Comunidade e ser o novo Povo de Deus.

II- A PREOCUPAÇÃO PRINCIPAL: RECONSTRUIR A COMUNIDADE

Clã, Família, Comunidade.

* A importância da comunidade ao longo da história: clã, tribo, família, comunidade. Esta nova convivência social comunitária era expressão da nova experiência de Deus como Javé.  Acentuava a igualdade de todos diante de Deus e impedia que alguém pudesse apropriar-se do poder para criar divisões no meio do povo, como acontecia no Egito, onde o sistema do Faraó, legitimado pela religião, criara uma divisão profunda no povo entre opressor e oprimido.

* Ao longo da história secular do povo da Bíblia, toda vez que enfraquece a vivência comunitária, diminui a experiência de Deus e cresce o domínio de uma elite sobre o resto do povo. Toda vez que a experiência de Deus se faz mais presente, começa uma renovação da vivência comunitária que denuncia e elimina as divisões e a marginalização de pessoas.

* A lei do GOÊL, uma lei clânica, em defesa da família e das pessoas é uma expressão da luta dos profetas, quase todos leigos, para manter e fortalecer a convivência comunitária tribal. O ideal expresso na Lei era não haver necessitados (Dt 15). Deste modo, se renovava a imagem de Deus. A comunidade ou o clã era um anúncio vivo da Boa Nova de Deus como Javé, presença libertadora no meio do povo, Deus-conosco.

* A situação da dupla opressão em que vivia o povo no tempo de Jesus fez com que comunidade ou o clã já não podia exercer o seu papel de defesa da pessoa e da família. Era cada vez mais difícil para as famílias praticarem a hospitalidade, a partilha, a comunhão de mesa e a lei do goêl. A comunidade deixou de ser uma revelação do Reino, do rosto de Deus. As famílias, em vez de se abrirem e de se unirem entre si em comunidade ou clã, se fechavam sobre si mesmas, impedindo, assim, a manifestação do reino de Deus. E a religião, em vez de despertar e de alertar o povo, aumentava ainda mais a exclusão e a marginalização.

* A esperança do povo no tempo de Jesus era que o profeta Elias voltasse para reconduzir o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais. Reconstruir a Comunidade. É com esta frase de esperança, a última do livro de Malaquias, que o Antigo

Testamento passa para o Novo Testamento.

* A preocupação principal de Jesus é refazer o tecido social, o relacionamento entre as pessoas, reconstruir a comunidade, para que fosse novamente uma revelação do Rosto de Deus. Ele tenta abrir as famílias, para que novamente se unam em comunidade. Ele mesmo deu o exemplo. Quando foi procurado pelos familiares que queriam traze-lo de volta para casa, ele disse: “Quem é minha mãe e meus irmãos? Todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu!” Alargou a família.

* Jesus falava e agia a partir de uma nova experiência de Deus como Pai. Esta experiência era a luz com que lia e relia, tanto o passado como o presente e a partir da qual nascia nele a consciência da sua missão. Esta mesma missão ele conferiu aos discípulos: “Como Pai me enviou, eu envio a vocês!”, a saber, a reconstrução da comunidade como revelação do rosto de Deus.

*VIII Encontro OC-OCD. Recife, 17 a 23 de junho de 2002