Pe. Jaldemir Vitório SJ
Introdução
A cena de Elias, no monte Horeb, parece destoar do conjunto da tradição em torno do profeta. Teve coragem de profetizar, contrariando a casa real (1Rs 17,1-17). No estrangeiro, mostrou-se solidário com uma pobre viúva, à beira da morte por inanição (1Rs 17,8-24). A cena no monte Carmelo descreve-o com uma impavidez invejável, a ponto de, sozinho, desafiar os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e, no fim, passar todos ao fio da espada (1Rs 18,20-46). O injustiçado Nabot encontrou em Elias um defensor destemido, cujas palavras desmascararam a má conduta do rei e de sua mulher e anunciaram a terrível punição pela impiedade (1Rs 21,1-29). Falou duro contra o rei doente que, ao invés de confiar em Javé, preferiu consultar Beelzebub (2Rs 1,1-17). A carreira gloriosa de Elias foi concluída com o arrebatamento para o céu, levado num “carro de fogo e cavalos de fogo” (2Rs 2,1-28).
1Rs 19,1-21 apresenta o profeta de forma muito diferente. “Desespero profundo, expressão de fracasso, e rejeição do ofício profético são os temas preponderantes” (COGAN, 2001, p. 456). Tem-se a impressão de terem fracassado os esforços para fazer frente à disseminação da idolatria em Israel. A fuga desponta como a única saída. É como se estivesse fugindo da luta. Javé, porém, fá-lo tomar o caminho de volta, para o “lugar” de onde não deveria ter saído.
Este artigo pretende fazer uma leitura de 1Rs 19, levando em consideração o conjunto das tradições em torno do profeta Elias, sem se deter nas várias questões de crítica textual, de unidade, de relação com o capítulo precedente, de historicidade, de significado de certas palavras e expressões, evidentes no texto. O sentido do conjunto é claro, apesar dos entraves pontuais no texto hebraico[1]. No correr da leitura, será explicitado o que, em análise narrativa, é chamado de “ação transformadora”. Ou seja, o caminho percorrido pela ação desde a situação inicial até o seu desfecho (MARGUERAT-BOURQUIN, 2009, p. 59). O percurso da leitura mostrará como o profeta Elias, optando por fugir, foi para o lugar errado. Javé fá-lo voltar para o lugar onde deveria estar, pois, para um profeta verdadeiro, a fuga jamais será solução. Para ele, vale o que diz uma música brasileira bem conhecida: “Nada temer, senão o correr da luta!” O lugar do profeta é, sempre, o lugar do conflito. A fuga, mesmo para um lugar sacratíssimo – “o monte de Deus” – leva-lo-á ao lugar equivocado. É aí que ouvirá a ordem peremptória de Javé: “Vai e volta por teu caminho!” (v. 15a). Em outras palavras: “Volta para o teu lugar”.
O profeta Elias na mira da rainha Jezabel (vv. 1-2)
A narração inicia-se aludindo ao conflito do profeta com a casa real de Israel. O rei Acab informa à rainha Jezabel a ação violenta de Elias contra os profetas de Baal, como havia eliminado todos eles, matando-os à espada (1Rs 19,1; cf. 18,40).
Jezabel era estrangeira, filha do rei dos sidônios. Deve ter vindo para Israel no contexto da aliança entre Omri e Etbaal, seu pai. Omri deu-a em casamento a seu filho Acab (1Rs 16,31a). Era costume dar uma filha para o rei com quem se estabelecia aliança, certamente, para estreitar os laços entre os contratantes[2]. O casamento de Acab com Jezabel estreitou os laços entre Israel e Sidon.
Jezabel era devota adoradora de seu deus – Baal – e, por todos os meios, tentou implantar sua religião no reino de Israel. Acab, que deveria ser adorador de Javé, era de personalidade pusilânime. E se deixou manipular pela esposa, incapaz de se impor. Antes, “deu u’a mãozinha” a Jezabel para propagar o culto baalista. O baalismo em Israel teve grande sucesso, durante seu reinado. Por isto se diz dele, logo na primeira referência que se lhe faz na Obra Historiográfica Deuteronomista (Js-2Rs), que “foi prestar culto a Baal, adorando-o. Pôs um altar de Baal no templo de Baal que tinha construído em Samaria, ergueu um poste idolátrico e cometeu ainda outros pecados, a ponto de irritar o Senhor, Deus de Israel, mais do que todos os reis de Israel que o antecederam” (1Rs 16,31b-33). Os adoradores de Javé vivem uma situação difícil. Jezabel mandara eliminar os profetas de Javé. Um grupo sobreviveu, protegido por Obadias, que “os escondera em grupos de cinquenta em duas cavernas, alimentando-os com pão e água” (1Rs 18,4.13). Já “os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas de Asera” gozavam da proteção real, comendo à mesa de Jezabel (1Rs 18,19).
O profeta Elias desponta como defensor impávido da fé em Javé, disposto a tudo. No confronto com os profetas de Baal, no Monte Carmelo, sai vencedor. E manda prender os profetas de Baal, sem deixar escapar nenhum; “fê-los descer à torrente do Qishon, onde os degolou” (1Rs 18,40). Esta notícia chega a Jezabel por intermédio de Acab. A rainha é informada que Elias “tinha passado ao fio da espada todos os profetas de Baal” (1Rs 19,1). Desencadeia-se, então, contra ele uma cólera sem tamanho. A rainha toma a decisão de tirar-lhe a vida, mandando avisar-lhe por um mensageiro: “Os deuses me cumulem de castigos, se amanhã, a esta hora, eu não tiver feito contigo o mesmo que fizeste com a vida desses profetas” (1Rs 19,2). Os dias do profeta estavam contados. A rainha, de certa forma, dá-lhe tempo para fugir, pois não manda prendê-lo, imediatamente, e, sim, envia um mensageiro para comunicar-lhe sua intenção. É uma forma de dizer-lhe para “dar o fora”[3]. O profeta dispunha de um dia – “amanhã a esta hora” (v. 2) – para tomar as providências.
*Publicado em Estudos Bíblicos nº 107 (2010) 35-49
[1] Para ROBINSON (1991, p. 533), apesar de vários episódios terem circulado, originalmente, de forma independente, e de os sinais de múltiplas autorias e redações serem claros, “a narrativa, como um todo, foi, cuidadosamente, organizada temática e estruturalmente”. Um elenco dos problemas presentes em 1Rs 19 está nas pp. 514-516.
[2] Explica-se, assim, o casamento de Salomão com a filha do Faraó egípcio e com muitíssimas outras mulheres (1Rs 11,1-3).
[3] “Seria isto, realmente, uma ‘confissão de impotência’ por parte da rainha, como sugeriu Skinner? Com o pano de fundo do Carmelo, poderia ter sentido que não mais estava livre para seguir seu caminho, como aconteceu quando matou, impunemente, os profetas” (COGAN, 2001, p. 451).