Parece-me agora a mim que quando Deus fez uma pessoa chegar a claro conhecimento do que é o mundo e que coisa é mundo, e que há outro mundo, e a diferença que há de um para o outro, e que um é eterno e o outro é sonhado; ou que coisa é amar o Criador ou a criatura - isto visto por experiência, que é negócio diferente do que apenas pensá-lo e crê-lo - ou (que coisa é) ver e provar que é que se ganha com um e se perde com o outro, e que coisa é Criador e que coisa é criatura, e outras muitas coisas, que o Senhor ensina a quem se quer entregar para ser ensinado por Ele na oração, ou aos que Sua Majestade quer que amem mui diferentemente de nós os que não temos chegado até aqui".
(...) São estas pessoas que Deus faz chegar a este estado; almas generosas, almas régias; não se contentam com amar coisa tão ruim como estes corpos, por mais formosos que sejam, por muitas graças que tenham (e ainda bem que haja agrado da vista e louvem a Deus); mas para neles se deter, não. Digo «se deter», de maneira que por estas coisas tenham amor; parecer-lhes-ia que amam coisa sem importância, e que se põem a querer sombras; correriam de si mesmos e não teriam cara para, sem grande afronta a Ele, dizer a Deus que o amam".
Dir-me-eis: «Estes tais não saberão querer nem pagar o amor que se lhes tiver; ao menos se lhes dá pouco de que o tenham a eles». Já que com rapidez algumas vezes a natureza leva a folgar-se de ser amados, tornando sobre si, vêem que é disparate, se não são pessoas que hão de fazer proveito a suas almas ou com doutrina ou com oração. Os outros amores todos as cansam, pois entendem que nenhum proveito lhes fazem, e poderiam prejudicá-las, não porque lhes deixem de agradecer e pagar ao encomendá-las a Deus. Tomam-no como coisa, que lançam elas aos que as amam como carga sobre o Senhor, pois entendem que vem dali, porque não lhes parece que há que querer em si (tais pessoas), e logo lhes parece que as querem porque as quer Deus, e deixam a Sua Majestade que o pague e lho suplicam, e com isto ficam livres, pois lhes parece não lhes tocar. E bem reparado, se não é com as pessoas a que me refiro, que nos podem fazer bem para ganharmos bens perfeitos, eu penso algumas vezes quão grande cegueira se traz neste querer que nos queiram".
Agora notem que como o amor, quando o queremos de alguma pessoa, sempre se pretende algum interesse de proveito ou contentamento nosso, e estas pessoas perfeitas já os têm todos debaixo dos pés, os bens, que no mundo se lhes pode fazer e agrados, e contentamentos, elas já se encontram de sorte que, ainda que eles o queiram - como se diz - não as podem manter que o seja fora de com Deus ou fora de tratar com Deus. Pois que proveito lhes pode vir de ser amadas?"
Quando se lhes representa esta verdade, de si mesmas se riem pela pena que algum tempo lhes foi dada se era pago ou não o seu amor. Ainda que seja bom o amor, não é logo natural querer ser pago. Vindo-se cobrar esta paga, é com palhas, porque tudo é ar e sem importância e o carrega o vento; porque, quando muito nos tenham querido, que é isto que nos resta? Assim que, se não é para proveito da sua alma com as pessoas de que tenho falado - porque vem a ser tal a nossa natureza que se não há algum amor logo se cansam - não se lhes dá mais ser queridas do que não".
"Parecer-vos-á que estes tais não querem a ninguém, nem sabem, a não ser a Deus. Digo que sim: amam muito mais, e com mais verdadeiro amor, e mais apaixonadamente e mais proveitoso amor; enfim é amor. E estas tais almas são sempre afeiçoadas a dar muito mais do que a receber: até mesmo com o próprio Criador lhes acontece isto. Digo que merece este nome de amor, que estas outras afeições baixas lhe têm usurpado".