*Frei Christopher O’Donnell, O. Carm.
Um elemento significativo na tradição da Ordem é a da mística mariana, um termo que não é usado univocamente por todos os estudiosos.[i] Seu principal exemplo é a terceira carmelitana flamenga Maria Petyt (Petijt – Maria de Santa Teresa, 1623-1677).[ii] Após alguns anos de busca por sua vocação ela encontrou o carmelita Miguel de Santo Agostinho, que se tornou seu orientador. Ele descreveu algumas das experiências de Maria Petyt num pequeno volume sobre a forma de vida mariana e a Vida de Maria. O estudo recente de S. Possanzini deixou este trabalho mais acessível aos carmelitas hoje.[iii]
Duas questões surgem sobre a mística mariana: a primeira é o papel de Maria que é geralmente encontrado na vida místico-contemplativa do Carmelo; a segunda é uma área mais difícil de examinar, ou seja, a realidade e a validade de uma experiência especificamente mística mariana.
Maria e os místicos carmelitanos
Em geral, podemos afirmar que na Ordem Carmelita a vida contemplativa e a experiência mística são freqüentemente definidas como tendo características marianas. Maria acompanha os carmelitas contemplativos em sua jornada para a união divina.[iv] Além disso, muitos místicos carmelitas tiveram experiências nas quais Maria tinha seu papel central. Elas são tão comuns que não precisam de elaboração. Podemos tomar como exemplo Santa Teresa d’Ávila. Foi na festa da Assunção em 1561:
Eu refletia sobre os muitos pecados que confessei no passado naquela casa e muitas coisas sobre minha vida infeliz. Um êxtase invadiu-me tão fortemente que quase me arrebatou... Pareceu-me, enquanto estava neste estado, que me vi vestida de um manto branco esplendoroso e brilhante. Mas a princípio, não vi quem me vestia. Depois vi uma Senhora à minha direita e meu pai São José à minha esquerda, pois eles estavam revestindo-se com o manto. Compreendi então que estava limpa de meus pecados...
A beleza que vi em Nossa Senhora era extraordinária, apesar de não ter percebido qualquer detalhe em especial, exceto a forma de seu rosto e que suas vestes eram de um branco muito brilhante, não deslumbrante mas suave... Então, pareceu-me vê-los subir aos céus com uma grande multidão de anjos. Fui deixada em profunda solidão, apesar de tão consolada e elevada e serena em oração e tocada pelo amor, que permaneci algum tempo sem ser capaz de mover-me ou de falar, praticamente fora de mim mesma. Sentia em mim um grande impulso de ser dissolvida em Deus e com emoções semelhantes. E tudo aconteceu de tal modo que nunca poderia duvidar, não importa o quanto tentasse, que era uma visão de Deus.[v]
Aqui, apesar de Maria ser central na experiência, temos uma visão de Deus, levando a uma união mais profunda com Deus. Santa Teresa d’Ávila, numa visão mística em 08 de setembro de 1575 renovou seus votos nas mãos de Nossa Senhora. Ela observa: “Esta visão permaneceu comigo por alguns dias, como se ela estivesse junto a mim, à minha esquerda.”[vi]
A cura de Santa Teresinha de Lisieux através do sorriso de Nossa Senhora no Domingo de Pentecostes de 1883, é outro exemplo de uma visão mariana, mas vista como uma ação da misericórdia divina. Este foi o começo de um processo que, cinco anos mais tarde, permitiria que ela entrasse no Carmelo.[vii]
Tais experiências místicas são freqüentes na história da espiritualidade e não precisam ser consideradas como especificamente carmelitanas,[viii] apesar de também encontradas, e surgindo, da vida do Carmelo.
A forma de vida mariana
Um segundo tipo de experiência é encontrado em autores carmelitanos, apesar de ainda não ter sido suficientemente estudado por teólogos espirituais.[ix] Contudo, ele também é encontrado fora da Ordem Carmelita.[x] Ele aparece mais elaborado em Miguel de Santo Agostinho e Maria Petyt, mas textos em línguas modernas não são muito acessíveis. Algumas observações iniciais devem ser feitas. O misticismo implica em uma jornada para Deus, para a união divina com a Trindade. Por isso, inevitavelmente, haverá uma necessidade de contextualização dos escritos destes dois autores, já que frases isoladas podem indicar um foco distorcido sobre Maria em lugar de Deus. Surgem dificuldades posteriores com a linguagem mística, altamente simbólica, usada por eles.
O estudo recente de S. Possanzini parece confirmar o que escritores mais antigos suspeitavam, ou seja, que sob a terminologia de forma de vida mariana o Venerável Miguel fala geralmente sobre a vida ascética, ou que parte da jornada espiritual é amplamente determinada pelo esforço humano, mas assistido, é claro, pela graça. O que ele chama de vida mariana é seu aspecto místico, ou seja, é livremente concedido como graça excepcional de Deus.[xi]
O fundamento da forma de vida mariana é a maternidade espiritual de Maria e sua mediação, as quais já vimos como estando profundamente dentro das tradições carmelitanas. A forma de vida mariana consiste em “manter os olhos abertos para Deus e para sua bem-aventurada Mãe, de forma que façamos pronta e alegremente o que sabemos ser agradável a eles, e evitar o que reconhecemos ser desagradável a eles”.[xii] Assim, vivemos uma vida que é, ao mesmo tempo, divina e mariana. O reino de Jesus e o reino de Maria coincidem de forma que “Jesus e Maria reinam unanimemente nela (a alma)”.[xiii]
Assim, está claro que as intuições centrais desta espiritualidade a partir da forma de vida mariana são plenamente ortodoxas. As expressões que ela valoriza são explicações deste discernimento da identidade da vontade de Maria e de Jesus. Onde o ensinamento torna-se específico e original é o que Miguel chama de mariano, no qual Maria é vista acompanhando e instruindo a pessoa em toda a jornada para a profunda união divina e casamento místico. Ainda mais distinta é a noção de união com Maria definindo o modo pelo qual a pessoa chega à união com seu Filho e com o Deus Trino. Miguel de Santo Agostinho usa diversas destas imagens.
Primeiramente, existe a vida em Maria:
Pelo diligente exercício de fé e do amor constante, adquirimos o hábito ou a prática de ter em mente, sempre e em todo lugar, a presença de Deus, e existe tal sincera afeição fluindo com tal facilidade para Deus que parece impossível esquecer Deus. Do mesmo modo aquele que ama Maria através deste exercício contínuo, adquire o hábito ou a prática de tê-la sempre presente em mente como Mãe amorosa, de forma que todos os pensamentos e afeições da pessoa terminam nela e em Deus, e a pessoa não pode esquecer nem a Mãe amorosa nem Deus.[xiv]
Segundo ele, isto não é algo infantil ou inocente, mas um movimento muito maduro, racional e corajoso (viriliori). É um trabalho do Espírito levando a pessoa a uma consciência ora de Maria, ora de Deus, sem qualquer conflito ou divisão no coração.[xv] Em segundo lugar, a pessoa vive para Maria. Aqui o autor é novamente cuidadoso em mostrar que o serviço a Maria não diminui Deus de modo algum.
Assim como em Maria tudo existe para o prazer divino e ela vive na eternidade para Deus, para seu prazer, amor e glória, então também cada vida e morte por Maria deve servir e ser dirigida a Deus. Portanto, não vivemos ou morremos para Maria como nosso fim definitivo, ou com qualquer reflexão que poderia aderir a qualquer coisa fora de Deus para nossa própria conveniência. Em vez disso, através da vida e morte em Maria e para Maria, vivemos e morremos mais perfeitamente em Deus e para Deus, como causa de seu prazer e amor. E nada no reino perfeito de Maria contradiz o reino de Jesus, mas é totalmente ordenado para ele.[xvi]
Poderia parecer que esta forma de vida mariana não é mística no sentido técnico. Apesar da graça ser necessária, realmente uma graça especial, a pessoa pode escolher este modo de aproximação de Deus através de Maria. Se a pessoa cresce profundamente neste modo de espiritualidade poderia depender de uma continuação de tal graça e do temperamento e da afetividade da pessoa. Existe uma diferença essencial entre esta forma de vida mariana e a do misticismo mariano atribuído à Venerável Maria de Santa Teresa e descrito por seu orientador, Miguel de Santo Agostinho.
[i] A. Neglia, “La mistica Mariana nel Carmelo” em Maria icona 115-128; cf. M. Schmidt et al, “Mystik”, MarLex 4:564-572; S. De Fiores, “Maria”, NDizSpir 878-902 em 890-891.
[ii] A. Derville, “Petyt, Maria”, DSpir 12:1227-1229; A. Deblaere, “Maria Petyt, écrivain et mystique flamande”, Carmelus 26 (1979) 3-76; O. Steggink, “Maria von der hl. Theresia”, MarLex 4:296-297; alguns textos em Hoppenbrouwers, Devotio 403-419.
[iii] S. Possanzini, La dottrina e la mistica Mariana del venerabile Michele di Sant’Agostino, Carmelitano (Roma: Edizioni Carmelitane, 1998); A. Deblaere, “Michel de Saint-Augustin”, Dspir 10: 1187-1191; ver G. Wessels, ed., Introductio ad vitam internam et fruitiva praxis vitae mystice. (Rome: Collegio S. Alberto, 1926) – Appendix “De vita Mariae-formi et Mariana in Maria et propter Mariam” 363-387.
[iv] Hoppenbrouwers, Devotio 268-277.
[v] Life 33:14-15 – Collected Works (n. 24) 1: 225-226.
[vi] Spiritual Testimonies 43 em Collected Works (n. 24) 1:343.
[vii] The Story of a Soul cap. 3 – Trad. J. Clarke (Washington DC: ICS, 1975) 65-67.
[viii] Ver M. Schmidt et al., “Mystik”, MarLex 4:564-572.
[ix] S. De Fiores, “Marie (Sainte Vierge)”, Dspir 10:461; id. “Maria” em NdizSpir 890-891; Hoppenbrouwers, Devotio 219-224; O. Steggink, “Mística Mariana en el Carmelo: P. Miguel de san Agustín y Maria de santa Teresa Petyt” em Congreso 1989 63-74; Valabek, Mary 1:269-289.
[x] E.g. Pierre-Joseph de la Clorivière – ver A. Rayez, “Devotion et mystique mariales du Père de Clorivière” em H. de Manoir, ed., Maria. Études sur la Sainte Vierge (Paris: Beauchesne, 1954) 3:307-328; cf. H. Monier-Vinard, “La mystique du P. de Clovière”, Revue d’ascétique et mystique”, 17 (1936) 147-168, 225-242. Veronica O’Brien (1905-1998) – ver L. J. Suenens, The Hidden Hand of God. The Life of Veronica O’Brien and Our Common Apostolate (Dublin: Veritas, 1994) 298-309. Ver E. Neubert, La vie d’union à Marie (Paris: Alsacia, 1954).
[xi] Op. Cit. 99-127.
[xii] Michael of Saint Augustine, De vita Mariae-formi et Mariana, ed. Wessels (n. 56) cap. 1, p. 363.
[xiii] Ibid. 364-365.
[xiv] Ibid. cap. 2, pp. 366-367.
[xv] Ibid. cap. 3, pp. 368-369.
[xvi] Ibid. cap. 5, p. 371; cf. cap. 4, p. 369.