Frei Antônio Corniatti, OFMConv, de São Bernardo do Campo, São Paulo.
(As reflexões sobre a misericórdia são tiradas de um artigo de Frei Hermógenes Harada, OFM (1928-2009) Com adaptação de Frei Antônio Corniatti, OFMConv)
Dia 30 de Julho (Segunda-feira)
1ª reflexão (noite): A) Um Retiro Espiritual
B) O Tema
Um Retiro Espiritual
Vamos fazer o nosso retiro anual. É um fazer. Mas, não, fazer no sentido de manufacturar uma coisa. No manufacturar uma coisa basta até certo ponto agenciar a coisa. Aqui não é tão importante se per-fazer. Mas, como o retiro anual não é uma coisa, mas sim um recolhimento no nosso próprio ser, no interior de nós mesmos, o fazer do retiro anual é um perfazer-se, isto é, trabalho de crescimento, na maturação de transformação, de nós mesmos, a partir da nossa essência: é a con-versão.
Vivemos no agenciamento das coisas dos nossos afazeres. Fazemos isto ou/e aquilo. Perdemo-nos no afã dos trabalhos cotidianos, nos afazeres da nossa profissão, nas vicissitudes das solicitações da nossa situação. Tornamo-nos sujeitos e agentes do fazer de agenciamento, e acossados pelo ritmo da produção, nos desgastamos, nos doamos sem retorno. Perdemos o senso e o jeito para o trabalho de per-feição de nós mesmos. Não sabemos mais nos recolher na ação penosa, apoucada, mas fecunda do crescimento na maturação de transformação de nós mesmos a partir da nossa essência.
É, pois, necessário reaprendermos a nos perfazermos em nós mesmos. É necessário reaprendermos a nos concentrarmos e nos assentarmos na essência de nós mesmos: precisamos do retiro anual.
No retiro, nos retiramos. De onde, para onde? Do fazer dos afazeres da nossa vida cotidiana para o recolhimento na essência de nós mesmos. Para uma séria busca do que realmente fomos com o que devemos ser: religiosos carmelitas.
Retirar-se dos afazeres e das vicissitudes dos nossos agenciamentos usuais requer uma grande decisão. Decisão é atitude. Atitude não é apenas desejo. Não é apenas anelo, um gostaria que, nem um quero, assim, ‘voluntarioso’. É antes uma tomada de posição, firme e incondicional. Posicionamento num pro-pósito, no qual de antemão eu tomo nas próprias mãos todo o meu ser e o coloco em vista da meta posta de ante-mão: no nosso caso, do recolhimento no íntimo de mim mesmo.
O que importa na tomada de posição é ser apenas posicionamento. É simplificar. Simplificar não significa bitolar-se numa linha, não significa alienar-se do complexo de nossas situações. Significa não estar implicado em múltiplas intenções. Significa ser todo e inteiro, uno, na limpidez do por-se na busca do que se almeja. Significa deixar de lado, como interferências inadequadas e indevidas, tudo quando não pertence ao que colocamos como propósito da nossa busca.
Simplificado, nesse sentido, fazer o retiro anual significa fazer exatamente o que podemos e devemos fazer dentro de um espaço de tempo de quatro dias: afastar-nos dos agenciamentos de nossos afazeres usuais para nos concentrarmos, apenas, somente, unicamente, no recolhimento ao íntimo de nós mesmos, à essência do nosso ser- frade-carmelita.
B) O Tema: Nós, frades carmelitas, somos chamados a ser "Misericordiosos como o Pai" na Vida Espiritual-Religiosa, na Vida Fraterna, na Vida de Trabalho e Serviço
Texto: Lc 6, 27-38
27Eu, porém, vos digo, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, 28bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. 29A quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica. 30Dá a quem te pedir e não reclames de quem tomar o que é teu. 31Como quereis que os outros, fazei também a eles. 32Se amais os que vos amam, que graça alcançais? Pois até mesmo os pecadores amam aqueles que os amam. 33E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que graça alcançais? Até mesmo os pecadores agem assim! 34E se emprestais àqueles de quem esperais receber, que graça alcançais? Até mesmo os pecadores emprestam aos pecadores para receberem o equivalente. 35Muito pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, pois Ele é bom para com os ingratos e com os maus. 36Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso[1]. 37Não julgueis, para não serdes julgados; não condeneis, para não serdes condenados; perdoai, e vos será perdoado. 38Dai, e vos será dado; será derramada no vosso regaço uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, pois com a medida com que medirdes sereis medidos também.
NÓS, FRADES CARMELITAS, SOMOS CHAMADOS...
De fato, nós, Frades Carmelitas, enquanto membros da comunidade religiosa de Vida Regular Consagrada, não somos um mero aglomerado de cristãos em busca da perfeição pessoal ou de trabalhos pastorais, mas sim em sentido muito mais profundo, participação e testemunho qualificado do Corpo Místico de Cristo, cuja Cabeça é Jesus Cristo, o Deus encarnado, cujo corpo é a Igreja.
Enquanto Ordem, como membros desse Corpo Místico, Frades Carmelitas, queremos e devemos ser expressão viva e realização privilegiada da peculiar "comunhão", que a Igreja tem, através de sua Cabeça, Jesus Cristo, com o insondável Mistério da Comunidade de Amor da Santíssima Trindade, de cuja ternura e vigor o Pai quis fazer participar os homens no Filho e no Espírito Santo.
Assim, em tudo que somos, agimos e buscamos, queremos, como Comunidade Religiosa, assumir o compromisso irrenunciável e a missão de nos tornar e ser focos da comunhão do Amor que pulsa nos abismos do Mistério da Santíssima Trindade e dali, através de Jesus Cristo e do seu Corpo Místico, como do manancial da Salvação, se estende a toda humanidade (Cf. Documento CIVCSVA, A Vida Fraterna em Comunidade, Introdução, 2a).
O esplendor, a vitalidade, a beleza que emana da profundidade do Mistério da mútua doação comunitária entre Pai e Filho e Espírito Santo, se torna visível em Jesus Cristo, Deus Humanado.
Assim Jesus é o Carisma, a Graça, o Esplendor da Santíssima Trindade, a bondade e a benignidade do Deus Uno e Trino, a presença do Belo Amor de Deus no meio de nós.
Esse Carisma, essa Graça que é a doação difusiva de si do próprio Deus Uno e Trino, do Deus que é a Caridade, se derrama sobre nós, multiplicando-se, recriando-se em infinitas gerações, cada vez de diferentes modos, originais e criativos, como os assim chamados carismas fundacionais, dando origem a diferentes Ordens e Congregações.
Os Carismas Fundacionais são, portanto, a faísca, o foco que salta da presença visível do Amor da Santíssima Trindade, que é Jesus Cristo, desvelando a multifária riqueza e profundidade do único Carisma de Deus, Jesus Cristo, Deus Humanado, no meio de nós.
Assim, "os membros de uma comunidade religiosa" estão "unidos por um comum chamado de Deus na linha do carisma fundacional, por uma típica comum consagração eclesial e por uma comum resposta na participação "na experiência do Espírito", vivida e transmitida pelo (a) fundador (a) e na participação em sua missão na Igreja" (Doc. CIVCSVA, A Vida Fraterna em Comunidade, Intr. 2c).
A SER "MISERICORDIOSOS COMO O PAI"
O chamamento que recebemos, como seguidores de Jesus Cristo humanado, é ser misericordiosos como o Pai. Distinguiremos a Misericórdia em:
- A) Misericórdia como o Amor do Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo
- B) Misericórdia como Espírito de Misericórdia
- C) Misericórdia como Virtude da Misericórdia, isto é, o Espírito de Misericórdia tomando corpo nos Frades
- D) Misericórdia como ideal-objetivo do projeto de vida dos Frades
- E) Misericórdia como obras de Misericórdia
- F) Misericórdia como frutos de Misericórdia.
Todas essas significações de Misericórdia podem estar direta ou indiretamente incluídas na compreensão da Misericórdia. No entanto, essas diversas significações de Misericórdia não estão uma ao lado da outra, como que enfileiradas, mas elas se constituem numa implicância de fundamentação. Há ali uma espécie de escalação de aprofundamento, da significação mais usual e superficial para a significação cada vez mais profunda e essencial. A significação, a mais fundamental e principal é a Misericórdia como o Amor de Deus Uno e Trino, revelado em Jesus Cristo.
Todas as significações mencionadas nas letras A) B), C), D), E), F) pertencem à Misericórdia. No entanto, entre as significações, existe uma ordem de fundamentação, numa escalação de significações mais superficiais para significações mais profundas e originárias.
As significações D), E), F) devem sempre de novo ser examinadas e purificadas a partir das significações A), B), C). Estas estão ordenadas de tal maneira que C) se baseia na B), e B) na A), sendo esta a significação a mais originária.
Tentaremos traçar um esquema de "definições" e "princípios" refletidos acerca da Misericórdia. As reflexões primeiramente tentam dizer em que consiste a Misericórdia. No entanto, a definição aqui não deve ser entendida como fixação da verdade acerca de uma realidade dinâmica que não pode ser prefixada, numa sentença simples e sintética. Definir aqui significa obter uma determinação mais clara acerca de um vigor originário, que na realidade não pode ser delimitado no sentido estático. Aqui definir e determinar quer antes dizer: compreender com maior decisão e amor, distinguir com maior nitidez o tesouro do nosso coração, para que num assunto tão decisivo para a vida consagrada não permaneçamos indefinidos, vagos e confusos, como alguém que não sabe por que e para que vive de fato.
A partir dessa definição, então, tentamos mencionar alguns princípios decorrentes dessa definição, que podem servir de orientação viva, isto é, de dicas fundamentais comuns, para que na praxe de nossa vida concreta e cotidiana, tenhamos uma boa condução de nossas ações e de nossos exercícios práticos.
Para refletir:
1-Como é na vida concreta a experiência do ser chamado? Examinar cada qual a sua vocação. Cf. Lc 6, 56-62
2-Eu estou grato por ser Frade Carmelita? Ou esta questão está vaga?
3-A compreensão que tenho da vocação religiosa e carmelita é existencial?
4-Uma questão (talvez ingênua!):
Se agora aparecesse um todo poderoso e me dissesse: “Você está inteiramente livre. Escolha! Mas, esta escolha é onipotente, isto é, não dá para voltar atrás”. O que eu escolheria? (Examinar o grau de cordialidade em minha escolha)
5-Qual a minha compreensão da Misericórdia? Cf. Lc 15,11-32 (o filho pródigo)
Comentário de Santo Isaac, o Sírio (século VII, monge perto de Mossul. Discursos ascéticos, 1a Série, no 81) à fala de Jesus: “SEDE MISERICORDIOSOS COMO O VOSSO PAI É MISERICORDIOSO” (Lc 6,36)
Não procures distinguir o homem digno do que não o é. Que a teus olhos todos os homens sejam iguais para os amares e os servires da mesma forma. Poderás assim leva-los todos ao bem. Não partilhou o Senhor a mesa dos publicanos e das mulheres de má vida, sem afastar de Si os indignos?
Do mesmo modo, concederás tu benefícios iguais e honras iguais ao infiel, ao assassino, tanto mais que também ele é teu irmão, pois participa da única natureza humana.
Aqui está, meu filho, um mandamento que te dou: que a misericórdia pese sempre mais na tua balança, até ao momento em que sentires em ti a misericórdia que Deus tem para com o Mundo.
Quando percebe o homem que atingiu a pureza do coração? Quando considerar que todos os homens são bons, e nem um lhe apareça impuro e maculado. Então, em verdade ele é puro de coração (Mateus 5,8).
O que esta pureza? Em poucas palavras: é a misericórdia do coração para com o universo inteiro.
E o que é a misericórdia do coração? É a chama que o inflama por toda a criação, pelos homens, pelos pássaros, pelos animais, pelos demônios, por todo o ser criado.
Quando o homem pensa neles, quando os olha, sente os olhos encherem-se das lágrimas de uma profunda, uma intensa piedade que lhe aperta o coração, e que o torna incapaz de ouvir, de ver, de tolerar o erro ou a aflição, mesmo ínfimos, sofridos pelas criaturas.
É por isso que, numa oração acompanhada por lágrimas, devemos sempre pedir tanto pelos seres desprovidos da fala como pelos inimigos da verdade, como ainda pelos que a maltratam, para que sejam salvos e purificados.
No coração do homem nasce uma compaixão imensa e sem limites, à imagem de Deus.
*CARMELITA: RETIRO ESPIRITUAL ANUAL.
ORDEM DO CARMO – PROVÍNCIA CARMELITANA DE SANTO ELIAS
Data: 30 e 31 de Julho e 01 a 03 de Agosto de 2018. Início, 30 à noite. Término, 03 ao meio-dia.
Local: Casa São José - Belo Horizonte - MG
Assessoria: Frei Antônio Corniatti, OFMConv
Tema: Nós, frades carmelitas, somos chamados a ser "Misericordiosos como o Pai" na Vida Espiritual-Religiosa, na Vida Fraterna, na Vida de Trabalho e Serviço
Objetivo: Refletir a partir da misericórdia e suas implicações no dia-a-dia da vida consagrada
[1] O negrito é nosso