Frei Pedro Caxito O.Carm.
INTRODUÇÃO
Ao tratarmos do "Cultivo da Música entre os Carmelitas do Brasil", queremos pôr em mente três realidades, que lhes dizem respeito: 1ª - São filhos da Igreja; 2ª - São membros da Ordem do Carmo surgida na Terra Santa, em plena Idade Média no decorrer do tempo das Cruzadas; 3ª - Aqui aportaram, já no final da Época das Descobertas, como filhos do Carmo português, do qual o Santo Condestável, Nuno Álvares Pereira, foi admirador, protetor, promotor e o maior filho. Dele vieram a receber, em Lisboa, o "Convento de Nossa Senhora do Vencimento (de Monte do Carmo)"[1]
AS ESCRITURAS
"São filhos da Igreja, o novo «Israel de Deus»".
Os israelitas eram constantemente convidados a louvar o Senhor com um cântico novo[2]. Nas várias festividades de Israel, o Senhor Jesus, como autêntico israelita, com voz de tenor, talvez, cantava os salmos com os seus discípulos e com o seu povo: "Depois de terem cantado os salmos, foram para a colina das Oliveiras" (Mt 26,30).
A Virgem Santa, em casa de Isabel, em alta voz entoou ao Deus Único o seu canto de alegria, de engrandecimento do Senhor e de libertação dos humildes.
Maria cantava. "O Universo, como a Catedral, é um conjunto cheio de harmonia a cantar a glória de Deus. Deste cântico a Santa Virgem é a nota mais alta, que ressoa em cada ângulo e oferece a tudo leveza e serenidade. Sobretudo às almas atormen-tadas"[3]. A eternidade inteira será pouca para Ela a cantar o seu Magnificat e engrandecer ao seu Deus e Salvador, toda alegre no seu espírito, deslumbrada a contemplar a beleza daqueles olhos, que olham para a pequenez da sua serva.
Para a freira jeronimita, Sóror Joana Inês de la Cruz (1651-1695), a humilde Mãe de Deus, "Angélica en hermosura", é "a Mestra Divina da Capela Suprema" do Universo[4].
Diz São Paulo: "Orabo spiritu, orabo et mente; psallam spiritu, psallam et mente" "Rezarei com o meu espírito, rezarei também com a minha mente; salmodiarei com o meu espírito, salmodiarei também com a minha mente" (1Cor 14,15): e os cristãos aprenderam, obedientes. Diz-nos Frei Carlos Mesters O.Carm: "Canta-se muito no Apocalipse" (4,8.11; 5,9-10.12-13; 6,10; 7,10.12; 11,15.17-18; 12,10-12; 15,3-4 etc)[5].
OS CRISTÃOS
As Atas dos Santos Mártires nos contam que "Cantantibus organis, Cæcilia virgo in corde suo soli Domino decantabat" (Enquanto os órgãos ressoavam, Cecília Virgem, no íntimo do seu coração, cantava somente ao Senhor).
E Santo Agostinho realmente o confessa: "Quanto chorei copiosamente, ao som dos teus hinos e cânticos, comovido profundamente com as vozes da tua Igreja a cantar suavemente! Nos meus ouvidos aquelas vozes penetravam e a tua verdade destilava no meu coração. Acendia-se em mim um piedoso sentimento, dos meus olhos as lágrimas corriam e chorar fazia-me bem"[6].
O MAGISTÉRIO
A "Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium" o constatou:"Na verdade, cumularam de louvores o canto sacro tanto a Sagrada Escritura (cf. Ef 5,19 e Cl 3,16) quanto os Santos Padres e os Romanos Pontífices que, recentemente, a começar por São Pio X, definiram mais claramente a função ministerial da música sacra no culto do Senhor"[7]. E continua: "A Igreja não considerou nunca como seu nenhum estilo de arte, mas conforme a índole dos povos e as condições e necessidades dos vários Ritos admitiu as particularidades de cada época, criando no curso dos séculos um tesouro artístico digno de ser cuidadosamente conservado"[8].
Dizia São Pio X:"O fim próprio da (Música Sacra) é acrescentar mais eficácia ao texto (litúrgico), a fim de que por tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à piedade e se preparem melhor para receber os frutos da graça próprios da celebração dos sagrados mistérios"[9]
E Pio XI afirmava:"É admirável como quanto, já desde aquela mais remota antigüidade, aqueles cânticos ingênuos, que adornavam a prece e a Ação Litúrgica, concorreram para afervorar a piedade do povo! Nas antigas basílicas, principalmente onde o Bispo, o clero e o povo alternavam os louvores divinos, os cânticos litúrgicos contribuíram não pouco, segundo testemunha a História, para conduzir muitos dos bárbaros à cultura cristã e civil. (...) Em Milão, Santo Ambrósio era acusado pelos hereges de fascinar as turbas com cânticos litúrgicos, pelos quais Santo Agostinho foi empolgado e aceitou o conselho de abraçar a fé cristã"[10].
Diz ainda o Concílio Vaticano II na sua Constituição sobre a Sagrada Liturgia, "Sacrosanctum Concilium":"Havendo em algumas regiões, principalmente nas Missões, povos que têm uma tradição musical própria, que desempenha importante função na sua vida religiosa e social, a esta música se dêem a devida estima e o lugar conveniente, tanto para lhes formar o senso religioso, quanto para adaptar o culto à sua mentalidade (...)"[11].
Já dizia anteriormente que a finalidade da Música Sacra é a glória de Deus e a santificação dos fiéis e que o canto sacro faz parte necessária ou integrante da liturgia solene. Mais: "A Igreja aprova e admite no culto divino todas as formas de verdadeira arte"[12]. Comenta alguém: "novamente a música como tal é Liturgia"[13]. Quer dizer então que Música Sacra é Liturgia, e a Liturgia é uma coreografia, para não falar uma dança. Eis o que para a sua filha escreve uma santa mãe: "A dança não é coisa má. Ela é o termômetro que marca a temperatura entre o nosso corpo e a nossa alma; ela «deve ser proporcional e harmônica e menos temperamental». Podemos até mesmo considerar todos os movimentos da Santa Missa como uma dança"[14].
A ORDEM CARMELITA
"São membros da Ordem do Carmo".
A santa Regra diz no Capítulo 10º[15]: Oratorium, prout comodius fieri poterit, construatur in medio cellularum, ubi mane per singulos dies ad audienda missarum solemnia convenire debeatis, ubi hoc comode fieri potest.(Da maneira que for possível fazê-lo mais comodamente, no centro das celas seja construído um Oratório[16], aonde, cada dia pela manhã, deveis ir encontrar-vos[17], para ouvirdes as solenidades das missas, sempre que isto puder realizar-se comodamente). Capítulo central: o oratório no centro das celas; Jesus Eucarístico e Maria, Mãe de Jesus, no centro do oratório; e o convenire no centro da vida fraterna.
Dizia Santo Atanásio, Bispo: "Os Santos, enquanto viviam neste mundo, estavam sempre alegres, como em contínua festa. Um deles, o Bem-Aventurado Davi, levantava-se de noite, não uma, mas sete vezes, para atrair com suas preces a benevolência divina. Outro, o grande Moisés, exprimia a sua felicidade entoando hinos e cânticos de louvor a Deus pela vitória alcançada sobre o Faraó e sobre todos os que tinham oprimido o povo hebreu. Outros ainda dedicavam-se alegremente ao exercíco contínuo do culto sagrado, como o grande Samuel e o Bem-Aventurado Elias. Todos eles, pelo mérito das suas obras, já conquistaram a liberdade e celebram no céu a festa eterna[18]".
Elias arquétipo constelado: do canto, portanto, e da música também.
Segundo Frei Egídio Palumbo O.Carm.[19]:
"No Capítulo III (da Institutio Primorum Monachorum) dizem-nos que Elias, quando voltou do Horeb, escolheu o Carmelo como o lugar mais apto para a vida monástica e para a «disciplina profética», porque um lugar sadio, lugar de paz e tranqüilidade. Aí Elias, juntamente com os seus discípulos, edificou uma casa de oração, chamada «semnion»[20], onde se reuniam três vezes por dia para louvarem a Deus por meio de salmos e cânticos acompanhados de instrumentos musicais, e para ouvirem a Lei e os Profetas".
"No Capítulo V do Livro VI se diz que os monges do Carmelo eram chamados «profetas» porque salmodiavam: cantavam em louvor de Deus salmos e hinos, acompanhados por instrumentos musicais".
Já se dizia o mesmo no Livro II, cap. III, como se fosse "outra imagem complementar da primeira"[21]. "Com a vinda de Jesus Cristo - contam-nos assim naquela mesma obra (Livro IV, cap.5º) - este rito de louvor a Deus ao som de instrumentos musicais foi interiorizado conforme as palavras do Apóstolo: «Sede cheios do Espírito, entretendo-vos mutuamente por meio de salmos e cânticos espirituais, entoando hinos ao Senhor com todo o vosso coração, por todas as coisas dando graças a Deus Pai continuamente, em nome do Senhor Nosso, Jesus Cristo» (Ef 5,18-20). Aqui também, segundo penso, revela-se o peso da intenção do autor de, numa linguagem e figuras diversas, reafirmar aquele «entrelaçamento»: oração/vida já observado na Regra, e que significa fazer da nossa vida uma doxologia perene, um autêntico «Louvor de Glória» - para usar o modo de falar de Isabel da Trindade - onde esteja espelhada a presença do Deus Vivo".
Tudo é sacramento, sempre sinal de uma realidade mais alta.
Se não julgarmos apressadamente, entenderemos a "mentalidade simbólica" do homem da Idade Média, que confirma gestos presentes e anseios, garantindo que eram gestos e anseios dos antepassados, gestos e anseios presentes naqueles tempos, em que viviam.
Diz Carlos Cicconetti O.Carm., citando Lubach H.[22]:
"Para o homem da Idade Média o universo, mais do que uma série de efeitos, é um sistema de símbolos. Apresentar a razão das coisas, portanto, não consiste unicamente em explicá-las pelas causas internas, mas em descobrir a sua misteriosa densidade simbólica que vai além da cortiça das aparências. O simbolismo, mais do que uma simples mentalidade, torna-se então um método universal, um meio de conhecimentos, que se aplica em todos os domínios, sempre à procura dos Arcana spiritualis intelligentiæ, dos arcanos de uma inteligência espiritual. Aplica-se bem, tanto ao estudo do cosmos, da filosofia, da teologia e da história, como às regras do direito canônico"[23]. Anteriormente, Joris-Karl Huysmans (1848-1907), pela boca de Durtal, herói do seu romance La Cathédrale, tinha proclamado: "A Idade Média sabedora de que tudo é sinal nesta terra, tudo é figura, que o visível tanto vale quanto revela o invisível, a Idade Média que não era, na verdade, escrava das aparências, como somos nós, estudou profundamente esta ciência (o simbolismo) e dela fez criada e servidora da mística"[24].
Declarava o piedoso Geral da Ordem, Nicolau, o Francês:
"Nobis autem ad laudem psallentibus Creatoris, montes circumstantes, fratres nostri conventuales, iuxta identitatem vocis nostræ, linguæ polite plectra percutientes, ac versus organice in aere modulantes, una nobiscum tono concordi resonant Dominum collaudantes" (Quando, porém, entoamos os nossos salmos em louvor do Criador, os montes dos arredores, confrades nossos conventuais, identificam-se com as nossas vozes, tangendo afinadamente a lira das suas línguas e, ao som dos órgãos, pelos ares ecoando os seus hinos, ressoam conosco numa tonalidade cheia de harmonia, e louvam ao Senhor)[25].
Com toda a natureza o carmelita canta louvores ao Criador e ama a "diaconia da beleza"[26].
JOÃO DU MOULIN aos três anos de idade ficou cego em conseqüência de um sarampo mal cuidado, mas Deus e a natureza compensaram a falta da visão com uma grande força de vontade e um ouvido e talento musicais, que muito o alegraram. Aprendeu bem cedo órgão, espineta, cítara, guitarra, viola, alaúde, flauta doce, flauta alemã e oboé: João du Moulin, que muito alegrou as festas populares, tornou-se Fr. João de São Sansão, carmelita, para alegrar a casa de Deus com as suas melodias e fazer os corações aspirar às alturas harmoniosas da mística[27].
ANTÔNIO EDUARDO JAWELAK, natural de Pittsburg na Pensilvânia (USA), cego de nascença, foi chamado a "maravilha da nossa época". Nasceu a 1º de abril de 1896. Aos dois anos de idade a todos já supreendia pela facilidade de decorar e executar qualquer trecho dos grandes compositores: os dedinhos, os cotovelos e até o nariz o ajudavam. Aos cinco anos já era levado em excursões musicais. Cresceu alegre e musical. Foi organista da igreja carmelita de Pittsburgh. Se era organista de um repertório de mais de 400 partituras, tornou-se também compositor e, para agradecer a graça da sua vocação, compôs uma admirável Missa em louvor de Nossa Senhora do Carmo. De fato, já órfão de pai e mãe e - apesar de alguns membros da família lamentarem "tal desperdício de talento" - apoiado pela sua tia e madrinha, professou na Ordem do Carmelo no dia 15 de agosto de 1932, quando tinha 36 anos de idade,... e "a sua música pertenceu ciosamente só a Deus, Nosso Senhor". Vítima de úlcera varicosa nas pernas, sofreu pacientemente por quase dez anos, sem perder aquele humor inocente, quase infantil, transbordante de simplicidade, que sempre o assinalou. Faleceu no dia 14 de agosto de 1976, aos 80 anos de idade, marcado pela Vigília da gloriosa Assunção da Virgem Maria, Nossa Senhora, aos céus. Para ele "obstáculo = uma coisa que a gente sempre vence!"[28].
"Aqui aportaram, já no final da época das Descobertas, como filhos do Carmo português". Veremos no capítulo seguinte.
[1]. Cf. Leandro Tocantins Santa Maria do Belém do Grão Pará Editora Civilização Brasileira S.A. 1963 p.176.
[2]. Sl.32 [33],2-3; 95 [96],1-3 etc.
[3]. Cf. La Civiltà Cattolica em J.- K. Huysmans: a Dio passando per il satanismo II 1998 I p.350
[4]. Octavio Paz Sor Juana Inés de la Cruz Editora MANDARIM São Paulo 1998 p.326 e 439
[5]. Carlos Mesters Comentário ao Apocalipse de São João Edições Paulistas Lisboa 1985 p.68.
[6]. Confissões Livro IX c. 6º.
[7]. Sacrosanctum Concilium n.112. "Estejais repletos do Espírito Santo, alegrando-vos uns aos outros com salmos, hinos, cânticos espirituais, cantando e festejando ao Senhor com todo o vosso coração" (Ef 5,19); "Instruí-vos e admoestai-vos mutuamente com toda a sabedoria, de todo o coração e com gratidão cantando a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais" (Cl 3,16).
[9]. Motu Próprio de S.Pio X Tra le sollicitudine 22 de novembro de 1903 n.1 - DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS Editora Vozes 1959 p.5.
[10]. Pio XI na Constituição Apostólica Divini Cultus 20 de dezembro de 1928 n.2 - DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS Editora Vozes Ib. p. 15.
[11]. Sacrosanctum Concilium n.119.
[13]. Gerard Kock ENTRE O ALTAR E O CORO - Música Sacra: liturgia ou arte? apud Revista Concilium/222 - 1989/2 p.15 [159]
[14]. Eneida Assumpção Menezes Para minha filha Rachel Editora VIGÍLIA Ltda. Belo Horizonte (MG) 1961 p.67
[15]. É o Capítulo Central: Oratório no centro físico - Eucaristia do Senhor e Maria no centro espiritual
[16]. "No centro levantar-se-á o Santuário" (Ez 48,8). E também: "E estes todos, com sentimentos iguais, eram perseverantes na oração na companhia de algumas mulheres e Maria, a Mãe de Jesus, e com os irmãos dele" (At 1,14).
[17]. "Todos juntos freqüentavam o Templo todos os dias" (At 2,46).
[18]. (Ep 14,1-2 - PG 26, 1419-1420)
[19]. Frei Egídio Palumbo em O Carmelo a serviço da Nova Evangelização Fraternità Carmelitana Pozzo di Gotto 1993. Tradução minha.
[20]. "Semnion" quer dizer lugar venerável, augusto, sagrado.
[21]. A primeira das imagens simbólicas fortemente evocativas do Carmelo das origens é a "centralidade" da igrejinha dedicada a Santa Maria.
[22]. Em Exégèse médiévale. Les quatre sens de l' Écriture 4 v. Aubier Paris 1959-1964
[23]. Carlos Cicconetti LE PROPHÈTE ÉLISÉE, PREMIER-NÉ DES CARMES ET LEUR MODÈLE selon John Baconthorpe (1290-1348) em Carmel 1994/1 p.40-41. Frères Carmes - Toulouse.
[24]. J.- K. Huysmans La Cathédrale apud La CiviltÀ Cattolica Anno 149 1998 n. 3544 p.350 no artigo acima citado.
[25]. Nicolau, o Francês Ignea Sagitta c. XI em Carmelus v.9º p.299 Roma 1962.
[26]. Ver Frei Egídio Palumbo O.Carm. o.c.
[27]. Joachim Smet O.Carm. The Carmelites vol.III, tomo I Carmelite Spiritual Center Darien Illinois (USA) 1982 p.41-42 e Hein Blommestijn O.Carm. Jean de Saint-Samson (1571-1636) Institutum Carmelitanum 1987 Roma p.37, 39, 44-48.
[28]. The Universe (16-05-1941) citado por Mensageiro do Carmelo Ano XXIX p.270; Plácido H. Otterson O.Carm. O Músico de Deus apud Mensageiro do Carmelo Ano XLVI 1958 p.88-89; Analecta Ord.Carm. Ano LXIX vol.33 p.36-37 e Norman Werling O.Carm. em The Sword vol. XL n.2 1980 p.33-36.