*Dom Frei Vital Wilderink, O. Carm In Memoriam

1-Para você o que significa o silêncio e a ação contemplativa?

Faço uma distinção entre vida de silêncio e silencio da vida. A Regra do Carmelo fala do silêncio enquanto exercício e do silêncio e enquanto é algo do próprio Deus. O silêncio como exercício tem a finalidade de chegar a uma interiorização. Interiorização significa que a pessoa vive, trabalha, se relaciona não a partir da periferia da sua vida, mas a partir do seu centro.  Para isto é necessário que o silêncio abra um caminho para dentro que atravessa todas as camadas da nossa personalidade para chegar ao centro, ao coração. Coração no sentido bíblico indica o centro onde nascem as nossas opções fundamentais. É no coração que habita a Palavra de Deus..

 A meta do silêncio como exercício é chegar ao silêncio do próprio coração para que nele a Palavra possa encontrar a sua morada. Se acontecer essa transformação, objetivo de toda espiritualidade, as nossas próprias palavras, trabalhos, relacionamentos,e atitudes, tornam-se grávidas do Silêncio da Vida, daquela vida de que Jesus fala: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundancia”. Uma palavra autêntica só pode sair do silêncio. Com isto fica também claro que o silêncio é um processo que aos poucos nos despoja do nosso egocentrismo que freqüentemente está escondido nos nossos pensamentos, nas nossas palavras, nossas ações, e nos nossos relacionamentos.

È assim que a nossa ação se torna contemplativa, brota da contemplação. A Regra, recorre a vários textos bíblicos para falar do silêncio: “Temos ouvido falar que entre vocês há alguns que levam uma vida irrequieta, sem fazer nada. A esses tais ordenamos e suplicamos no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem em silêncio e, assim comam o seu próprio pão (2 Ts 3,7-12). Este caminho é santo e bom. É nele que devem andar” (cf Is 30,21). “O cultivo da justiça é o silêncio” (Is 32,17). “No silêncio e na esperança estará a força de vocês” (Is 30,15).

A palavra “contemplação” (e o adjetivo “contemplativo”) teve ao longo dos séculos diversos sentidos. Limito-me aqui a dizer que tem a ver com um certo “face a face com Deus”. Trata-se portanto de uma graça , ou seja de uma comunicação que Deus faz de si mesmo e que a pessoa humana, por si mesma, não pode provocar nem produzir. Por isso é difícil dizer em que consiste uma ação contemplativa. Seria uma ação que brota de uma união com Deus. Santo Inácio, falava de ser contemplativo na ação. De Santa Teresinha se diz que ela foi uma contemplativa ativa: porque a contemplação é vista como ação. Ação contemplativa consiste em ser ativo a partir da plenitude da contemplação. Em todo caso a expressão ação contemplativa acentua a relação que deve existir entre ação e contemplação.

Contemplação nos coloca no nível do ser; ação no nível do fazer. Os antigos filósofos e teólogos diziam: O fazer segue o ser. A ação brota do ser. Entre contemplação e ação deve existir um vínculo. Este deve ser salvaguardado porque sem ele a nossa ação acaba se reduzindo a “lenha, feno ou palha” (1 Cr 3,12).

2-Estar em silêncio é a mesma coisa que estar calada ou contemplando? Justifique!

Na linguagem cotidiana ficar em silêncio e ficar calado geralmente significam a mesma coisa. Mas devemos distinguir. No campo da espiritualidade, silêncio é uma atitude de receptividade, de escuta. Ficar calado não é necessariamente uma atitude de escuta; pode ser sinal de protesto, de raiva, de mal-estar, uma atitude de fechamento. Quando você recebe uma reprovação ou uma ofensa, a sua reação pode ser “ficar calado”. Não quer dizer que seu coração está em silêncio. Ficar calado pode ser até sinal de falta de silêncio. Quando você vê uma paisagem muito bonita você fica calada ou mantém um silêncio contemplando a beleza? Alguém se expressou assim: O silêncio é a adoração da verdade de Deus.

É pena que não existem escritos da Madre Maria das Neves para ver como ela fazia da contemplação fonte da sua ação. Mas a partir daquilo que ela vez podemos vislumbrar o que ela era. Na minha opinião a “consciência tranqüila” que ela recomendava às suas filhas para que “tivessem o céu perto delas” faz adivinhar a dimensão contemplativa da vida dela. É essa dimensão que se traduzia na sua ação.

3-Na sua opinião o que esses dois valores (silêncio e ação contemplativa) exigem de nós religiosas carmelitas da Divina Providência?

A dimensão contemplativa não é somente um dos elementos do carisma do Carmelo, mas é o elemento dinâmico que unifica todos os elementos: oração, vida comunitária, serviço. Cultivar a dimensão contemplativa leva a um “saber-se” tocado pelo mistério da livre iniciativa de Deus. Isto provoca um processo interior de transformação na nossa existência. Processo que encaminha a nossa vida para uma unidade de amor com Ele: “Vivo é o Senhor em cuja presença estou”. Se a iniciativa parte de Deus, é preciso que em nós haja uma atitude de escuta, com outras palavras uma atenção ao importante, ao que é fundamental., essencial. Uma atitude de escuta que se faz valer também no nosso pensar, agir e amar.Há tantas coisas para fazer na nossa vida, no nosso apostolado. São coisas urgentes. Mas se não houver a consciência do que é fundamental, a nossa vida vai mover-se unicamente no ritmo das coisas urgentes. Chamamos isto de ativismo que faz bater o nosso coração no ritmo de pré-ocupações. Um coração constantemente pré-ocupado não deixa espaço livre para o que é importante. A pessoa não vive no “Hoje silencioso” de Deus, mas estica o pescoço continuamente para o passado e para o futuro. Isto provoca “torcicolo”,não só em sentido físico e psíquico (estresse) mas também em sentido espiritual.

 O silêncio e a ação contemplativa exigem que a pessoa e a comunidade façam de vez em quando uma revisão de vida, um discernimento em vista da “salvação das almas” como diz a Regra.. Discernimento é para ver o que está em jogo na nossa vida. Programamos a nossa vida só em função do urgente (questão de tempo) deixando de lado o importante (questão de peso)? Não se trata de negar a importância das atividades da vida. Não há dicotomia entre contemplação e ação. Mas recorrendo constantemente às “coisas” da vida, identificando-nos com elas, a vida fica privada da sua fonte, tornando-se pobre, triste e medíocre.

Afirma-se freqüentemente que somos é peregrinos do Absoluto. Isto não significa que deve estabelecer uma separação entre o essencial (que é invisível) e o relativo (que é palpável). O relativo não tem a ver com relativismo, mas com relatividade no sentido de relação..Trata-se de descobrir que o essencial é essencial porque eu o experimento unicamente a partir do relativo. E o relativo é relativo porque descubro que existe uma relação que me permite estar em silêncio a partir do essencial.

Autores espirituais da Idade Média diziam que temos três olhos; O olho dos sentidos, o olho da razão, e o olho da fé contemplativa. Este último nos abre à uma dimensão da realidade que o olho dos sentidos e o olho da razão, não conseguem ver. Sem o silencio dos sentidos e da razão o terceiro olho ficaria atrofiado.

O que é necessário é programar tempos de silencio. Não se trata necessariamente de uma vida de silêncio como tem o monge no deserto. Mas fazer calar as atividades da vida que não são a Vida. Trata-se de harmonizar o urgente com o importante, o relativo com o essencial.

4-Como o silêncio e a contemplação podem ajudar-nos a vivenciarmos a ação evangélica, hoje, no contexto político, sócio-econômico, cultural e religioso da América Latina?

Em primeiro lugar é importante que tenhamos uma visão da realidade latino-americana. Essa visão adquire-se por meio de análises sociológicas, e análises da conjuntura. É claro que nem todo mundo pode ser profissional nessas análises. Essas análises, mostram os desequilíbrios que existem. Por exemplo, uma recente pesquisa da ONU mostrou que a metade da população mundial, não só da América Latina, vive na pobreza. Como isto se explica? Sabemos que o sistema econômico, a “globalização”, faz vítimas e leva a uma grande cisão entre povos, países e mesmo dentro de uma mesma sociedade. Uma sociedade que tem como único ponto referência a eficiência econômica, a produção, o consumo, gera sempre competição e individualismo. A vida torna-se uma questão de tecnologia. Fato é que o mundo é marcado pelo conflito entre interesses contrários e quem pretende resolver definitivamente essa situação complexa a partir dos seus interesses facilmente pode justificar a sua atuação inclusive recorrendo a argumentos religiosos. Isto temos visto na guerra “preventiva” contra o Iraque e nos movimentos fundamentalistas islâmicos. Em nome da corrupção ou da mesquinhez da natureza humana insistem na necessidade de um poder contrário que acaba com essa situação viciada. Acontece, porém, que não se leva em conta que os homens que detêm o poder contrário, são marcados pela mesma mesquinhez e corrupção de todos os outros. Santo Agostinho já percebia claramente esse círculo vicioso. Mas como sair dela?

Tratando-se de uma característica universal do comportamento humano muitos consideram essa situação como normal e até normativa. Embora o egoísmo esteja espalhado pela humanidade, como cristãos não podemos considerá-lo como algo que é conforme à natureza humana. Desde que o Filho de Deus assumiu a natureza humana no ventre daquela menina, chamada Maria de Nazaré, o amor se reacendeu. No silêncio da sua vida “ Maria “concebeu do Espírito Santo”. Pois bem, Maria é a Senhora do lugar que é o Carmelo, ou, como diziam os carmelitas do século XV, Maria é nossa irmã. A nossa ação evangelizadora tem tudo a ver com a vida dessa nossa irmã. Evangelizar significa viver segundo o Espírito para que Ele através da nossa vida faça acontecer a concepção do Filho de Deus na humanidade de que fazemos parte..

A Palavra se faz carne, se faz história.. Como fazer acontecer isso no nosso ambiente? Somos tão pequenos, limitados! É verdade! Uma coisa é certa: para evangelizar é necessário que a Palavra habite em nós. Por isso a Regra nos exorta a meditar dia e noite na Palavra do Senhor.Como acolher essa Palavra sem atitude nossa de silêncio e contemplação para vivermos “em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo fielmente com coração puro e boa consciência”? O coração puro é um coração despojado do nosso egocentrismo, detentor de poder que tem seus interesses. Estamos no meio da humanidade, não isentos do egoísmo universal. Na nossa vida deve reacender-se o amor que salva. E assim, deixando de comparar-nos com os outros como se fôssemos superiores a eles (o que seria falta de humildade), vamos ao encontro de situações concretas onde o amor não penetrou. Foi assim que agiu Madre Maria das Neves em Saquarema, em Campos, dois pontinhos no mapa da América Latina. Outras jovens mulheres seguiram essa centelha e fizeram nascer a Congregação das Carmelitas da Divina Providência.

5-Qual é a sua mensagem para nós junioristas, a respeito desses valores?

Vou contar uma espécie de parábola escrita por Charles Péguy, um escritor francês do século passado. Havia uma menina, criança ainda, que se chamava Esperança. Estava no primeiro ano do ensino básico. Sempre passeava com suas irmãs mais velhas, chamadas Fé e Caridade. A todos parecia que as duas mais velhas conduziam a menina que andava no meio delas de mãos dadas. Na realidade, era a pequena que puxava as duas.

Permito-me comparar você, juniorista, à irmãzinha caçula. Você vai caminhando com as irmãs mais velhas, já experimentadas na vida religiosa. Parece que uma brisa que vem lá detrás do horizonte visível brinca com os cabelos da caçula. O que lhe dá vontade de apressar os passos e puxar as suas irmãs.

Junioristas,

Sejam, em fidelidade criativa, a Esperança na Família Carmelitana de Madre Maria das Neves.!

Festa de Pentecostes de 2003

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.