Este dilema encontrará sua compreensão nos santos do Carmelo. No encontro com esta chama profunda os santos se deixaram queimar e purificar por ela. Teresa de Ávila a entende como a água que Jesus ofereceu à samaritana. Mais fogo que água, esta chama inflama o desejo. “Mas com que sede se deseja ter esta sede!” João da Cruz começa seu poema do Cântico Espiritual com uma queixa: “Onde é que te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo fugistes, Havendo-me ferido; Saí, por ti clamando, e eras já ido.” João da Cruz compreende nossa humanidade como o despertar no meio de uma história de amor. Alguém tocou nossos corações ferindo-os e fazendo-os penar por causa disto. Quem tem nos fez tal coisa e para onde foi? Estas perguntas perseguem a cada ser humano ao longo de sua viagem e o impulsionam a cada passo, desde o engatinhar do bebê à peregrinação do papa à Terra Santa, incluindo todo o esforço humano que é feito nesta busca.
João da Cruz diz que nossos desejos são como meninos. Se lhes damos atenção, acalmam-se por algum tempo. Mas logo despertam e rompem com seu barulho a paz do lar. Nossos desejos são também como um dia longamente desejado de estar com o amado; mas esse dia termina numa grande desilusão. Nossa humanidade tem uma fome que somente Deus pode satisfazer.
Teresa de Lisieux procurou explicar seus profundos desejos com a imagem do céu: o céu como o Domingo sem fim, o retiro eterno, a fonte eterna. A ribeira eterna é uma expressão particularmente evocadora do desejo do seu coração. ela queria tudo na sua vida, e esta imagem é expressão de todos os seus desejos. Mas não há imagem ou conceito que possa expressar seus desejos: Sinto o quanto sou impotente para expressar em linguagem humana os segredos do céu, e depois de escrever página após página vejo que ainda não comecei . Há tantos horizontes diferentes , tantos nuances de infinita variedade... (SS. 189)
Saímos ao encontro disto ou daquilo seduzidos por uma promessa de realização, mas terminamos por ser decepcionados mais uma vez. Usando a imagem de Terezinha chegamos a muitas fontes, mas não percebemos que não é a fonte eterna .
O espírito e a psique habitam a mesma região da mente. O espírito é esse dinamismo que há em nós, que nos impulsiona à plenitude do ser, ao conhecer tudo, ao amar tudo, a ser um com todos. A psique expressa estes desejos com imagens primordiais tiradas do corpo e do mundo. A psique conecta os órgãos do corpo com seu enraizamento no cosmos, com a transcendência do espírito e seu desejo de plenitude. Nossas imagens esperançosas, tais como “a ribeira eterna”, são expressão tanto da psique como do espírito .
As imagens da psique são movidas pelos desejos do espírito. Elas podem mover e expressar nossas ânsias de paz e de justiça, podem nos abrir a um profundo arrependimento, podem lançar luz sobre nossa existência e iluminar o nosso caminho, podem criar cenários de esperança sobre nosso futuro depois desta vida, como fez Teresa de Lisieux. Mas nenhuma delas é suficiente para expressar completamente nossos desejos mais profundos, sobretudo o desejo que somos. Nosso desejo profundo de conhecer e amar, de ser unificado com tudo o que se é, nunca será realizado. Nossa fome profunda nunca encontra suficiente alimento nesta vida. Expressamos nossas necessidades, mas, o que queremos na realidade?
O teólogo Bernard Lonergan acreditava que se nós seguirmos o caminho de nossos desejos profundos, expressando-os na verdade, confrontando-nos com eles e respondendo ao seu apelo em nossas vidas, dessa forma poderíamos experimentar conversões. Nossas necessidades e nossos desejos se purificarão na medida em que desejemos o que Deus deseja até que nosso desejo seja harmonizado com o de Deus.
Que desejam os homens e mulheres de nossas paróquias, de nossas casas de retiro, que buscam nossos conselhos e orientação? Tudo! Contem com isto e isto lhes dêem. Nós dizemos a nós mesmos e dizemos a eles que a fome dentro de nós é tão profunda e poderosa que, reconhecida ou não, só Deus é o alimento que a pode saciar. Quando Jesus pregou sobre o Reino de Deus presente e vindouro, se referia precisamente aos desejos profundos , ao santo desejo que aninhava o coração de seus ouvintes.
Em 24 de março de 2000 foi celebrado o vigésimo aniversário do assassinato do Arcebispo Oscar Romero em El Salvado. Foi assassinado durante a celebração da Eucaristia em uma capela carmelita. Enquanto celebrava os funerais daqueles que tinham sido assassinados pelos poderosos e lia os nomes dos desaparecidos, percebeu que era seu dever emprestar sua voz aos sem voz. E assim se produziu sua conversação de um padre tradicional, profissional e piedoso se converte num pastor valente e defensor de seu povo. Entregou-se à tarefa de denunciar os desejos oprimidos do povo e assim com sua presença valiosa dar vida ao desejo santo que viu refletido nos rostos das pessoas do povo salvadorenho .
Escutar as pessoas, expressar seu desejo profundo e ajudá-las a dar nome ao seu desejo, é parte do ministério carmelita. Os primeiros carmelitas estabeleceram em seu pequeno vale as condições que colocariam ordem em seus múltiplos desejos. Cada um habitava em uma cela e estas rodeavam a capela na qual recordavam diariamente o desejo de Deus para eles. Teresa de Ávila fundou comunidades de clausura nas quais as freiras puderam abrir-se completamente à força de seus desejos numa amizade afetuosa com o Senhor e entre elas. Ela as animou a que se deixassem seduzir pela atração de suas profundidades enquanto seus desejos fragmentados iam encontrando sanção e reorientação. Tanto ela como Teresa de Lisieux acreditavam firmemente que se Deus nos havia dado esses desejos, Ele mesmo os levaria à sua plenitude.
Resumo
A tradição carmelitana reconhece que há uma fome de Deus muito profunda no coração do homem. Este desejo e esta ânsia nos impulsiona ao longo de toda nossa vida enquanto buscamos a realização do desejo de nosso coração. Este desejo profundo de Deus em nossas vidas é o fruto do seu amor primeiro, do seu desejo anterior por nós. Deus, o primeiro contemplativo, nos olhou e nos fez encantadores e atraentes para Ele. A tradição carmelitana não fala do aniquilamento do desejo, mas sim da transformação dos desejos para que mais e mais desejemos o que Deus deseja, numa consonância de desejo. Como Teresa de Ávila disse simplesmente, Eu quero o que Você quer .
Perguntas para reflexão
1-Como experimento esse desejo, esta ânsia, esta fome que no fundo é de Deus ? Estou consciente dessa inquietude fundamental? Encontro um lugar na minha vida em que este desejo esteja se expressando?
2-O que produz em mim gozo e prazer profundo ? Em que momento me sinto mais criativo e mais vivo? Tento rejeitar, ignorar, suprimir o fogo dentro de mim ou procuro formas de valorizá-lo ?
3-Como expresso os meus desejos mais profundos? Que atividades os incluem e me deixam desejando sua realização profunda ?
4-Como as pessoas com as quais trabalho expressam os desejos profundos do seu coração ? Como eu, junto com elas, encontro a linguagem para este desejo e o celebro como um dom que eleva até Deus?
* Do Livro; AS ÉPOCAS DO CORAÇÃO: A DINÂMICA ESPIRITUAL DA VIDA CARMELITANA