O objetivo da vida cristã é que a vontade de Deus se realize em cada um de nós e em nosso mundo. Para que isso aconteça, precisamos ser transformados. De fato, toda a Criação, que espera ansiosamente pela revelação dos filhos de Deus, também deve ser transformada.

Nossa transformação individual acontece em vários níveis e espaços. Os primeiros carmelitas começaram como eremitas, mas num certo ponto, reuniram-se como uma comunidade e, mais tarde, como um grupo. Também buscaram reconhecimento da Igreja através da “formula vitae” dada por Alberto, patriarca de Jerusalém. A vida eremítica sempre permaneceu como uma possível expressão do ideal carmelitano. No início, ela exerceu uma profunda influência na espiritualidade carmelitana através dos séculos.

A CELA

A cela é um conceito importante na Regra e, mais tarde, nos escritos carmelitanos. Ela representa o interior. Nela estamos diante de nós mesmos para lutar contra o inimigo. Para essa batalha precisamos da proteção da armadura de Deus. A Regra tem uma dinâmica de passar da cela individual para a capela no centro e depois retornar à cela. Ouvir a Palavra de Deus e celebrar a Eucaristia juntos em comunidade, nos fortalece para retornarmos à luta na cela. Saímos de nossas batalhas contra o falso eu no silêncio da cela com um coração purificado para o serviço da comunidade.

A solidão e o silêncio são armas essenciais na batalha contra o falso eu e, portanto, no processo de purificação. Por estarmos longe das distrações, ficamos diante de nós mesmos como realmente somos. Começamos a ver através da fachada que passamos muitos anos construindo para proteger nossos frágeis egos. Começamos a ter consciência das grandes e pequenas infidelidades em nossas vidas e da grande inconsistência entre os ideais que professamos e a realidade em que vivemos. A cela é claramente um conceito espiritual e não pode ser equiparada ao espaço físico em que vivemos. Em nossos quartos, podemos nos rodear de distrações externas de todo tipo. A cela é o lugar do encontro com Deus nas profundezas de nosso ser. É possível que nosso quarto não seja um lugar para a oração.

Somente quando começamos a deixar as distrações externas, nos tornamos conscientes do ruído constante que está dentro de nós. Quando começamos a nos aproximar do aposento mais profundo do castelo, parece que o inimigo se torna mais frenético em nos manter afastado. Temos todos os tipos de distrações em nossas mentes. Ao tentarmos rezar, geralmente barramos a maior parte das distrações externas, mas então tomamos consciência de nosso ruído interno. Às vezes, nossa oração pode parecer uma batalha constante contra as distrações. Outras vezes, nem reconhecemos que estamos seguindo uma distração em vez de permanecer com Deus. Podemos pensar que um assunto sobre o qual estamos meditando é muito santo, mas ele pode ser um modo sutil de reforçar nosso próprio ego. De acordo com São João da Cruz, a linguagem que Deus ouve melhor é o amor silencioso. Teresa disse que o fim da oração não é pensar muito, mas amar muito. É realmente difícil alcançar o silêncio, mas a tentativa é válida porque é somente no silêncio que podemos ouvir a Palavra proferida por Deus num silêncio eterno.

Nossas Constituições nos dizem que a experiência transformadora do irresistível amor de Deus nos esvazia de nossos modos limitados e imperfeitos de pensar, amar e agir, transformando-os em modos divinos (Const. 17). Toda nossa vida e, especialmente nossa oração, deve ser uma preparação para esse encontro transformador com Deus. É importante cultivar o silêncio interior e exterior, para que possamos ouvir verdadeiramente a Palavra de Deus nas profundezas de nosso ser. A voz do Espírito é muito gentil e precisamos ser muitos silenciosos para ouvi-la.

A cela individual é a primeira arena do processo de transformação. Contudo, os eremitas no Monte Carmelo se reuniram em comunidade. Nosso título nos chama de Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. A fraternidade é uma parte essencial do carisma carmelitano. Não vamos sozinhos ao encontro de Deus. A fraternidade é o local do teste de nossa espiritualidade. É muito bom falar belamente sobre a oração e a vida espiritual, mas a menos que seja vivida na prática, ela não passa de muito ar quente. O modo como realmente nos tratamos uns aos outros é a medida de nosso relacionamento com Deus. Como você pode amar o Deus que não vê se não ama o irmão a quem vê? A fraternidade é também o ambiente no qual crescemos. Através de nossos relacionamentos com os outros membros de nossa comunidade, algumas de nossas asperezas serão polidas.

COMUNIDADE

A comunidade é um sinal maravilhoso de que o amor de Deus pode operar milagres nos corações dos seres humanos. Ela proclama a verdade do Evangelho e é uma parte integrante de nossa missão. Todos nós conhecemos a bela teoria da comunidade e o prazer que pode ser viver numa boa comunidade, mas também temos consciência dos obstáculos que encontramos na comunidade. Às vezes, não é fácil viver em comunidade. Ela é feita de seres humanos imperfeitos. Esperamos que todos se comprometem com a jornada espiritual e que possam apoiar se uns aos outros para que alcancemos o objetivo para o qual fomos criados. Contudo, todos os membros da comunidade são seres humanos imperfeitos que buscam a felicidade de modos que nunca serão plenamente satisfeitos. De tempos em tempos, esses modos entram em conflito porque até que o processo de transformação alcance um certo nível de maturidade, estaremos buscando auto-estima e afeição, segurança e controle, que nem todos podemos ter e, portanto, experimentamos conflitos de personalidade.

Ao fazermos nossa profissão, nos comprometemos com um grupo de pessoas reais que são fundamentalmente boas, mas imperfeitas. Somos convidados a amar nosso próximo, que é um ser humano de carne e osso com sentimentos, que nem sempre reage como esperamos. É fácil amar outro ser humano na teoria, mas é mais difícil fazê-lo na prática. Talvez tenhamos que agradecer a Deus pelo sucesso que temos em comunidade. Os relacionamentos humanos não são todos fáceis. Também devemos agradecer a Deus porque os companheiros de nossa jornada são, na sua maioria, pessoas que tentam ao máximo viver o Evangelho como eles o entendem, apesar de acharmos isso difícil de acreditar tal vez.

A celebração da Eucaristia e a leitura comunitária da Palavra de Deus são de grande ajuda para construir uma comunidade. A Eucaristia é a celebração da comunidade, mas também forma a comunidade e, por isso, merece uma preparação séria. Ela transforma indivíduos em comunidade e então nos envia a viver o Evangelho em nosso dia-a-dia. Infelizmente, a Eucaristia também pode ser um divisor dentro da comunidade se dermos muita atenção aos fatores externos e pouca atenção ao coração da questão.

Sair das celas individuais para a capela todo dia é um símbolo do constante esforço necessário para sair de si mesmo para encontrar os outros e fazer comunidade com eles (Ratio, 35). A fraternidade é um sinal profético de que é possível viver em comunhão apesar de termos que pagar o preço (Ratio, 36).

Acredito que uma das maiores dificuldades na vida comunitária é que cada membro busca coisas diferentes e nunca partilha suas expectativas. Cada um tem um modelo de vida religiosa e de Igreja que nunca questiona porque são parte dele e, portanto existem expectativas que foram construídas a respeito da vida de um(a) religioso(a). A necessidade da purificação profunda da noite escura torna-se clara quando tomamos consciência de como estão profundamente enraizadas as expectativas e os preconceitos que inconscientemente colhemos em nosso crescimento e em nossos primeiros anos como carmelitas.

O objetivo da jornada espiritual é que sejamos transformados em Deus. Nossas Constituições descrevem-na como uma mudança profunda no modo como pensamos, agimos e amamos. Nos afastamos de nossos modos humanos, que são limitados por natureza, para o modo divino. Simplificando, nossa vocação é que nos tornemos como Deus. Os Pais da Igreja falaram e escreveram muito sobre a divinização do ser humano. Todos os aspectos do ser humano devem ser transformados. Esse processo é normalmente longo e lento, e talvez dificilmente será completado nesta vida. Estar na jornada espiritual é estar envolvido nesse processo de transformação. O relacionamento com outros seres humanos ajuda muito nesse processo de crescimento e de transformação porque aprendemos muito sobre nós mesmos se tivermos olhos para ver e ouvidos para ouvir.

Numa comunidade religiosa vivemos e partilhamos com pessoas com quem temos pouco em comum. O que devemos ter em comum são os valores fundamentais de seguir Cristo e a tradição carmelitana. No entanto, o modo como compreendemos isso nos vem através de nossos processos humanos que ainda não estão transformados. Logo teremos maneiras diferentes de compreender e de viver esses valores e nossa motivação nunca será completamente pura. Viver em comunidade provoca algumas dificuldades porque meu falso eu entra em conflito com o falso eu dos outros. É muito fácil e errado culpar os outros membros da comunidade por todas as dificuldades de viver em comunidade ou presumir que todas as dificuldades são negativas. A maioria das dificuldades na vida comunitária tem um aspecto positivo ao me revelarem algo sobre mim mesmo, mas devo ser bem honesto para considerar que um problema de minha comunidade seja meu problema.

Existe um certo paralelo entre a vida religiosa e a vida matrimonial. Sabemos que se um casal não mantém um diálogo, pequenas coisas se tornarão problemas maiores ou o casal se separará. A mesma questão está em atividade numa comunidade religiosa. Podemos tentar evitar o problema pedindo uma transferência, mas existem alguns religiosos que viveram em diversas comunidades da Província e não estão felizes em lugar algum. Muitos nunca perguntam se o problema pode estar vindo deles!

Quando uma nova comunidade se forma, e isso acontece toda vez que um novo membro chega ou outro parte, seria muito útil se a comunidade partilhasse suas expectativas. Por exemplo, se um membro da comunidade espera ser capaz de partilhar seus sentimentos mais profundos com a comunidade e outro fica paralisado de constrangimento se alguém pergunta: “como vai você?”, haverá grande insatisfação nessa comunidade. Se a comunidade puder ao menos estar consciente das diferentes expectativas desde o princípio, ela aprenderá a não esperar muito ou a equilibrar as expectativas de acordo com as necessidades dos membros.

A DISFUNÇÃO NA VIDA COMUNITÁRIA

Não tenho nenhuma pretensão de ser um psicólogo, mas o conceito de disfunção é muito comum hoje e pode ser muito útil na compreensão de alguns problemas na vida comunitária. Ninguém é perfeito e todos podemos causar problemas aos outros, mas existe uma situação realmente disfuncional numa comunidade quando a vida de toda a comunidade gira em torno de uma única pessoa. O caso clássico seria o de um alcoólatra na comunidade. Ninguém contesta o indivíduo sobre a bebida e não se enfrenta o problema. Podem existir outros casos onde um membro da comunidade tem um problema psicológico que domina a vida da comunidade. Nenhum encontro comunitário pode ser realizado porque os outros têm medo de como o indivíduo enfermo reagirá e tudo é feito em nome da paz. Nesse caso, toda a comunidade está enferma porque o problema de um indivíduo domina e estabelece a ordem do dia de toda a comunidade. Acima de tudo, cabe ao superior intervir em tal situação para ter certeza de que tal indivíduo possa obter a ajuda de que necessita. Se o irmão não aceitar ajuda, ao menos não devemos permitir que ele domine a vida da comunidade.

Cada um de nós precisa se examinar no tocante à nossa própria vida em comunidade. Deus usará as pequenas idiossincrasias de nossos irmãos para nos purificar e usará nossas idiossincrasias para purificar nossos irmãos. A convivência conosco é agradável? Somos egoístas ou realmente tentamos viver uma vida fraterna? Estamos preparados para permitir que nossos irmãos desafiem e purifiquem nosso falso eu?

O ENCONTRO COMUNITÁRIO

O encontro comunitário é uma ferramenta essencial para o crescimento de um grupo de indivíduos numa comunidade. Às vezes, surgirão tensões nos encontros comunitários. Isso é muito natural e não algo que devemos temer. Se os encontros comunitários são realizados freqüentemente, de acordo com o que está estabelecido nas Constituições, isso dá aos membros da comunidade a oportunidade de manifestar seus ressentimentos. Isso diminui o nível de tensão na casa. Se os encontros comunitários não acontecem regularmente, não há foro no qual levantar as questões normais que emergem em toda comunidade. Na ausência de encontros comunitários regulares, a informação será transmitida por meio de discussões nos corredores. Isso também pode levar a apatia dentro da comunidade, o que não é saudável.

Os encontros comunitários não devem se limitar ao trabalho, mas deve existir foro no qual sejam discutidas questões espirituais. Tratar de questões espirituais amedronta muito mais os corações das pessoas, mais do que os encontros para tratar de trabalho. Por isso, em muitos lugares, a Regra e as Constituições neste ponto são simplesmente ignoradas.

Empregar o método da Lectio Divina tem sido útil para os encontros comunitários sobre questões espirituais. A redescoberta desse antigo método de oração foi muito importante para toda a Igreja e também para a Ordem. Um passo da Lectio Divina é partilhar nossas idéias sobre um texto das Escrituras com os outros, mas este não é o objetivo. O objetivo da Lectio Divina é a contemplação, que é um relacionamento amadurecido com Deus, em Jesus Cristo, no qual nossos modos humanos limitados de pensar, amar e agir são transformados em modos divinos (Const. 17). A discussão de um texto das Escrituras e a tentativa de aplicá-lo na vida da comunidade pode ser muito útil, mas muito mais poderosa é partilharmos juntos a experiência do silêncio no qual todos desejam a presença e a ação de Deus dentro da comunidade. A Lectio Divina pode ser muito útil nas comunidades, mas é importante não parar o processo na metade do caminho.

A PROVÍNCIA

Não somos membros de uma comunidade isolada. Cada comunidade é parte de um grupo mais amplo, geralmente uma Província ou um Comissariado. Os superiores devem seguir a determinação dos Capítulos Gerais e Provinciais. Além disso, os superiores devem tomar certas decisões após o devido discernimento e consulta. É impossível agradar a todos. Temos o direito de ter uma opinião e de expressá-la claramente, mas uma vez que a decisão foi tomada, devemos acatá-la, mesmo que não concordemos inteiramente com ela.

O falso eu é muito sutil e podemos aceitar aparentemente uma decisão, mas tentar miná-la não cooperando plenamente. Também podemos minar a autoridade de um superior de diversas maneiras ao mesmo tempo em que apresentamos uma fachada inocente. A vida comunitária, no nível local ou provincial, revela o que está em nossos corações. Outras pessoas perceberão quem somos. Se nós perceberemos também depende do nível de autoconhecimento, que é fundamental para a jornada espiritual.

A ORDEM E A IGREJA

Cada Província faz parte de uma realidade mais ampla, a Ordem. Por sua vez, a Ordem faz parte da Igreja. Todos nós somos membros da Ordem e não apenas de uma comunidade ou Província em particular. A Ordem Carmelitana faz parte da Igreja e temos o dever de assumir nosso lugar dentro da missão da Igreja. Logo, não fazemos apenas o que será  bom para a Ordem. Tentamos fazer o que a Igreja nos pede. Um grupo recebe um carisma dentro da Igreja para servir ao mundo. Acima de tudo, a Igreja espera que nós carmelitas não façamos apenas esse ou aquele trabalho em especial, mas que sejamos fiéis ao carisma que recebemos de Deus.

O MUNDO

Durante toda história da Ordem, expressamo-nos de diferentes formas. Um tema constante, que é parte importante de quem somos e que corre pelos oito séculos de nossa existência, é a dimensão contemplativa. O estilo de vida contemplativo buscou fornecer as condições mais favoráveis para o desenvolvimento da vida contemplativa. Contudo, os dois são muito diferentes. Somos chamados a sermos contemplativos, mas como frades mendicantes. Não somos chamados a viver um estilo de vida contemplativo. Vivemos no meio do povo. Um(a) contemplativo(a) é alguém que está no processo de ser afinado, como um lindo instrumento, pelo Mestre. Um(a) contemplativo(a) é um amigo prudente de Jesus Cristo e, logo, estará em união com todos os homens e mulheres num nível profundo. O(a) contemplativo(a) é alguém que está aprendendo lentamente a ver com os olhos de Deus e a amar com o coração de Deus.

Essa é nossa vocação. Trilhamos esse caminho não como indivíduos isolados, mas na companhia de nossos irmãos e irmãs com todos os membros da Família Carmelitana. Rezemos com eles e por eles. Lembremo-nos especialmente em tempos de dificuldades, que o apoio e as orações de todos os nossos irmãos e irmãs nos sustentam.

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO:

  1. Em sua prática, como a experiência de viver em comunidade o ajudou a crescer como um indivíduo?
  2. Você vive uma vida fraterna?
  3. Se você fosse convidado a ser o prior da comunidade, o que você faria para favorecer a fraternidade dentro da comunidade?

*ASSEMBLÉIA DA PROVÍNCIA CARMELITANA DE SANTO ELIAS.Convento do Carmo – São Paulo- JANEIRO 2007