Santa Edith Stein

Tradução: José Alberto Pedra

Comunidade Santa Edith Stein

Quando, nos sombrios dias de dezembro[2], começa a brilhar a doce luz das velas do advento[3], cheia de mistério em uma obscuridade incompreensível, nós somos despertados para o pensamento consolador de que a divina luz, o Espírito Santo, jamais cessou de iluminar as trevas do mundo decaído. Ele tem permanecido fiel à sua criação, não obstante toda a infidelidade de suas criaturas[4]. E, mesmo se as trevas não quiserem se dissipar pela luz celeste[5] ela, ainda assim, jamais deixará de encontrar algum lugar onde será acolhida e poderá brilhar.  

Um raio desta luz penetrou os corações de nossos primeiros pais quando o julgamento os tocou. Foi um raio luminoso que despertou neles a consciência de suas faltas; um raio flamejante que os inflamou e provocou a ardente dor do arrependimento, refinando-os, purificando-os e tornando-os capazes de acolher a doce luz da estrela da esperança que irradiava para eles nas palavras de  promessas do Proto-evangelho 6.

 Ele está sempre encontrando, no curso dos tempos, os corações humanos que, como os corações dos primeiros homens, se deixaram tocar pela radiante luz de Deus. No segredo  ela os iluminou e os inflamou. Ela amoleceu a matéria dura, encrostada e deformada de seus corações e a remodelou à imagem de Deus com uma mão doce de artista. No silencio as pedras vivas foram, então, formadas e  reunidas para a edificação [6] de uma igreja, inicialmente, invisível. Desta Igreja invisível, surge e cresce a Igreja visível mediante as ações e revelações de Deus que projetam, ao longe, o seu brilho de epifanias sempre renovadas. O trabalho silencioso do Espírito Santo no mais íntimo da alma fez, dos patriarcas, amigos de Deus[7]. Todavia, quando eles se entregaram totalmente a Ele, tornando-se instrumentos dóceis, Ele os empregou para uma obra cuja eficácia exterior era visível.  Ele dirigiu, por intermédio deles, o curso da história e constituiu, a partir deles, seu povo eleito. Assim foi com Moisés, que antes de ser enviado como profeta e legislador[8], foi, primeiramente formado no silêncio. 

 Aqueles que Deus utiliza como instrumentos não são, todos eles, formados necessariamente desta maneira. Os homens podem ser instrumentos de Deus sem o conhecimento deles ou mesmo contra seus desejos10; eventualmente tais homens não pertencem à Igreja, nem à exterior, nem  à interior. Eles são usados como o martelo ou o buril do artista, ou então, como a foice com a qual o vinhateiro poda os galhos dos vinhedos. Naqueles que pertencem à Igreja, a participação exterior pode preceder, no tempo, à participação interior, e, na prática, pode até condicioná-la (uma pessoa batizada sem ter a fé pode, mais tarde, ser conduzido à fé por participar da vida da Igreja exterior.). A vida interior, no entanto, é o fundamento último: a formação se faz do interior para o exterior.  Quanto mais uma alma está afeiçoada a Deus,  quanto mais completamente ela se abandonar à graça, mais forte será sua influência na edificação da Igreja. Inversamente: quanto mais uma época está mergulhada na noite do pecado e afastada de Deus, maior será sua necessidade de almas unidas a Deus. E Deus, não lhes  faltará. Das noites mais escuras surgiram as maiores figuras dos profetas e santos. Mas a trajetória da vida mística que fazem as almas, permanece em grande parte invisível. Algumas almas, das quais nenhum livro de história faz menção, tiveram uma influência determinante nos momentos cruciais da história universal.  Somente no dia, quando tudo o que se encontra escondido for revelado, é que nós descobriremos aquelas almas às quais  devemos as mudanças decisivas em nossa vida pessoal.

 Nós podemos falar de uma Igreja invisível porque as almas enclausuradas não vivem no isolamento, mas em uma relação viva entre elas e em um grande corpo organizado, cujo modelo é Deus. Sua eficácia e sua relação mútua podem permanecer escondidas tanto a elas  mesmas, como aos outros, ao longo de todo sua existência  terrestre. Mas pode, também, que algo transpareça ao exterior.  Assim foi com as pessoas e acontecimentos relacionados ao  mistério da Encarnação.  Maria e José, Zacarias e Elizabeth, os pastores e os reis magos, Simeão e Ana,  todos viveram a experiência de uma vida solitária com Deus. Foram, assim, preparados para suas missões particulares. Somente depois, descobriram e compreenderam que o caminho que percorreram os conduzia para serem protagonistas naqueles acontecimentos prodigiosos. Nos cantos de louvor que nos foram transmitidos11 vemos suas adorações maravilhadas diante das extraordinárias ações divinas.

 Nas pessoas reunidas em volta do presépio temos uma analogia para a Igreja e seu desenvolvimento. Os representantes da antiga linhagem real à qual foi prometida o Salvador do mundo e os representantes do povo crente constituem a ligação entre a Antiga e a Nova Aliança. Os reis do longínquo Oriente representam as populações pagãs para as quais a salvação viria de Judá. Assim, " a Igreja conhecida dos Judeus e dos gentios" aqui já estava presente. Os reis magos, diante do presépio, são os representantes daqueles que buscam a Deus, de todos os países e de todas as nações. A graça os conduziu, mesmo sem que eles participassem  da Igreja visível.  Um desejo puro pela verdade os possuía, verdade que não se esgotava nos limites dos ensinamentos e nas tradições de seus países. 

Porque Deus é a verdade e porque Ele quer ser encontrado por aqueles que O procuram de todo  coração12,   mais cedo ou mais tarde, a estrela irá aparecer, para mostrar a estes sábios o caminho para a verdade. Foi assim que eles, se reconhecendo diante da Verdade feito homem, se prostram para adorá-Lo e depositaram suas coroas a seus pés, pois, comparadas a Ele, todas as riquezas do mundo não são mais do que um punhado de poeira.

 Os reis magos têm uma significação especial para nós. Mesmo já pertencendo exteriormente à Igreja, um desejo interior nos impele, contudo, a sair do círculo fechado das concepções e dos hábitos que herdamos. Nós conhecemos a Deus, mas nós sentimos que Ele  deseja ser procurado e encontrado de uma maneira nova. Eis porque  ficamos disponíveis e buscamos uma estrela que  nos indicaria o caminho correto a seguir. A estrela brilhou para nós na graça de nossa vocação. Nós a temos seguido e nós a encontramos na Criança divina. Ele tem as mãos estendidas para nossos presentes13: Ele quer o ouro puro de um coração desgarrado de todos os bens da terra; a mirra da renúncia  às alegrias deste mundo para participar, em troca, da vida e do sofrimento de Jesus; o incenso de uma vontade  dirigida diretamente para o céu, que renuncia a ela mesma para se perder na vontade divina. A Criança divina responde a estes presentes se dando, a si mesmo, a nós.

 Mas esta troca prodigiosa não se realiza de uma vez por todas. Ela permanece durante toda a nossa vida. O cotidiano de nossa vida religiosa segue a hora solene de nossa consagração nupcial. Nós tivemos que "retornar ao nosso país", mas, "por um outro caminho"14 e guiadas por esta nova luz que tem brilhado para nós neste abençoado lugar. A nova luz nos convida a continuar procurando. “Deus se deixa procurar”, nos disse Santo Agostinho, para se deixar

                                                 

11

  Lc 1, 68-79 (canto de Zacarias) ; Lc 1, 46-55 Magníficat ; Lc 2, 29-32 (canto de Simeão) 12

 Jr. 29,13 13

  Os presentes simbolizam os três votos : o ouro da pobreza; a mirra da castidade e o incenso da obediência 

14

 Mt. 2, 12

encontrar. Ele se deixa encontrar para ser novamente procurado[9]. Após cada grande momento de graça, é como se nós começássemos  somente, então, a compreender  nossa vocação. Isto porque ela corresponde, também, à uma necessidade interior de renovar nossos votos  agora e sempre. Além disso, tem uma significação profunda que celebremos a festa dos reis magos, cuja peregrinação e confirmação de fé são um símbolo para nossa vida. A cada renovação de nossos voto, autêntica e seguida de todo nosso coração, a Criança divina responde aceitando-os novamente com uma união mais íntima. E isto significa uma nova e sutil ação da graça em nossa alma. Talvez esta se mostre como uma nova Epifania , a ação divina se tornará visível em nosso comportamento externo e nossas atividades serão percebidas por aqueles que estão ao nosso redor. Mas, talvez,  ela também traga frutos sobre os quais ninguém adivinhará de quais fontes secretas eles tiram, em abundância, a  seiva da vida.

 Nós vivemos hoje, novamente, em um época que tem uma necessidade urgente desta renovação proveniente das fontes escondidas das almas unidas a Deus. E muitos colocam sua última esperança nestas fontes escondidas de salvação. É uma grave exortação: uma dádiva, sem reserva, ao Senhor que nos tem chamado. Isto nos é pedido a fim de que a face da terra possa ser renovada. Com uma confiança cheia de fé nós devemos abandonar nossas almas ao  impulso poderoso do Espírito Santo. Não é necessário que nós experimentemos a epifania em nossas vidas. Nós devemos viver na certeza da fé que a ação profunda do Espírito Santo em nós, traz seus frutos no Reino de Deus. Nós os contemplaremos na eternidade.

 Eis como nós queremos trazer nossas oferendas ao Senhor:  nós as depositaremos nas mãos da Mãe de Deus; este primeiro sábado do mês[10][11] é particularmente consagrado a sua veneração e nada pode causar a seu coração tão puro maior alegria do que nós nos  abandonarmos sempre mais profundamente no Coração divino. Ela não pedirá, ao menino Jesus, de mais bom grado, outra coisa senão que tenhamos padres santos e que seus ministérios sejam ricos de benção. Este pedido  nos foi fortemente recomendado, neste sábado de orações pelos padres, e  nossa Santa mãe nos pediu para gravá-lo em nossos corações como um elemento essencial de nossa vocação carmelitana. 

 

[1] Para construir esta tradução, utilizei a versão inglesa, divulgada pela "Ordo Carmelitarum Discalceatorum" - Província Austríaca -  e a versão francesa publicada pela Cerf. Trata-se de uma tradução para uso particular cuja finalidade é divulgar, para as pessoas amigas e interessadas na obra escrita desta Santa, alguns documentos por ela produzidos que não foram, ainda, traduzidos para a língua portuguesa. 

[2] 2

 Dezembro europeu, quando é inverno e os dias são nublados.

[3] Uma tradição, particularmente viva na Europa do Norte, consiste em dispor quatro velas no começo do advento e as acender progressivamente durante as quatro semanas antes da festa do natal.

[4] Referência a  2Tm 2,13

[5] Referência a Jo 1,5 6

 É assim que os Pais da Igreja designaram o versículo Gn 3,15. A tradição vê, aqui, o anúncio da vitória de Cristo.

[6] Ver 1P 2, 5.

[7] Sb 7, 27

[8]   Ver Ex 2-3 10

 Este é um tema bíblico importante. Afirma que tudo está na mão de Deus ( Ver Is 10, 5-19;  45,14; 48,12)

[9]  Esta citação refere-se, certamente, a : "sic ergo quaeramus tanquam inventori et sic inveniamus tanquam quaesituri ( Procurar como se  devêssemos encontrar e encontrar com a intenção de sempre procurar) [De Trinitate, IX, I, 1])

[10]

[11] de janeiro de 1940 foi um Sábado, dia em que a ordem do Carmelo celebra, particularmente, a memória da Virgem Maria.