Arie G. Kallenberg

O servo de Deus, João de S. Sansão, nasceu no ano de 1571 em Sens, no Ducado de Borgonha, e faleceu no ano de 1636. Ficou cego aos três anos de idade, devido à varíola. Mais tarde entrou no Carmelo da Reforma de Touraine como irmão leigo. Os seus escritos emanam o odor duma mística profundamente vivida.

Uma das suas obras mais famosas é o mencionado Cântico Espiritual do Santo Sepulcro. Antes de entrar mais a fundo no texto do mesmo, é necessário dizer algo do conteúdo e do contexto histórico em que João de Sansão elaborou o cântico.

Em princípio todas as obras e poesias de João de Sansão tratam do Amor de Deus por nós e do convite de Deus a todos para corresponder a esse Amor. A linguagem empregada é linguagem de amor, afeição e ternura.

O Cântico do Santo Sepulcro[1] apresenta a forma exterior dum drama espiritual das últimas décadas da Idade Média, uma récita espiritual em que a visita de Maria Madalena ao Santo Sepulcro na madrugada da primeira Páscoa constitui o elemento mais importante. Tais récitas eram muito populares na Idade Média. Principalmente a Visitatio Sepulchri, a visita ao Santo Sepulcro no tempo da Páscoa, era uma récita muito estimada. Nela Maria Madalena sempre desempenhava o papel central. Às vezes a récita era integrada na liturgia pascal. Constava de alguns elementos fundamentais:

-           A chegada das mulheres ao sepulcro na madrugada da Páscoa

-           A pergunta do Anjo: “Quem procurais?”

-           A resposta: “Jesus o Nazareno”.

-           A resposta do Anjo: “Não está aqui”.

-           As mulheres inspeccionam então o sepulcro vazio e proclamam que Jesus está ressuscitado.

No Cântico do Santo Sepulcro de João de S. Sansão não há outros intervenientes: apenas Maria Madalena visita o sepulcro. Ela está sozinha. Não há anjo com quem fale.

João de S. Sansão estava a par dos vários papeis que Maria Madalena desempenhava nos evangelhos. No tempo dele, Maria Madalena era vista como mulher exemplar e modelo para todos os cristãos. Havia um alto grau de afeição: todas as Marias dos textos evangélicos, com excepção de Nossa Senhora, coincidiam com Maria Madalena cujo nome era também associado ao sepulcro vazio do Senhor Ressuscitado.

No cântico espiritual de João de S. Sansão o Santo Sepulcro é personificado, é uma pessoa quem fala e dialoga com Maria Madalena. O Santo Sepulcro dá-nos a seguinte lição: não são as visitas ao Santo Sepulcro na Terra Santa que nos santificam, não é aí que encontramos Jesus, o nosso Amado. Pelo contrário, encontrá-mo-lo na nossa própria alma.

O Cântico do Santo Sepulcro diz respeito a um encontro místico. Os versos falam claramente da fé que transcende os piedosos sentimentos e vivências dos crentes.

 O Cântico Espiritual do Santo Sepulcro consta de quatro partes:

*          O prólogo (1-200) que trata “da mais alta e mais pura abnegação” que nos leva para a perda total de nós próprios a fim de encontrar o derradeiro repouso em só Deus.

            É necessário que Deus tome  posse de nós, esteja presente no fundo do nosso ser. É preciso perder-se nesse mar de Amor que nos invade e transforma pelo fogo do seu Amor. Logo no princípio do Cântico somos convidados a um comprometimento pessoal.

*          Na segunda parte (201-320) Maria Madalena toma a palavra. Expressa lamentos amorosos, dirigidos ao Santo Sepulcro de Jesus, objecto da sua alma e da nossa. Pede a morte a fim de se poder unir com seu Deus morto. Ao pé do sepulcro vazio dá-se conta de que o seu Tesouro já não está aí. Esta parte termina com a constatação que Maria Madelena está ciente que ambos, o Santo Sepulcro e ela própria, ficaram a final de contas sem nada.

*          Segue então (versos 321-440) a resposta do Santo Sepulcro a Maria Madalena: apesar de o Santo Sepulcro ser muito glorioso, não deve ser amado. Não é necessário visitar o Santo Sepulcro em pessoa uma vez que através da ‘Chama da Fé’ a presença de Jesus nos possa ser revelada no ‘túmulo vivo’ da nossa alma.

*          Na última parte (441-561) encontra-se a ‘Reposta da alma aos louvores do Santo Sepulcro’. A alma esconde-se no Santo Sepulcro. A resposta com que a alma reage aos louvores do Santo Sepulcro é, em essência, um “Te Deum” permanente, um agradecimento continuado, uma liturgia total uma vez que a essência da liturgia é louvar e agradecer a Deus. A resposta da alma torna, de maneira delicada, claro que a felicidade final apenas pode ser encontrada na relação amorosa e, por conseguinte, mística com o Senhor. Somos convidados a nos enterrar no Amor transformante de Deus.

Na última parte do Cântico do Santo Sepulcro há uma aglomeração de imagens que mostram como finalmente a alma se deve livrar de tudo: de tudo o que é pessoal e pertence ao ego e também da ilusão que a alma pudesse desenvolver alguma iniciativa ou acção pessoal uma vez que se trate do movimento místico em direcção à união com Deus.

João de São Sansão desenvolve então a metáfora da alma que, vítima dum naufrágio, desce para a profundidade impenetrável do mar e se enterra no mistério do Santo Sepulcro. Esta alma feliz e perfeita é arrastada mais ainda para a profundidade insondável do Sepulcro.

A água é tão saborosa que é desfrutada a grandes tragos.

No fim do Cântico, após as imagens do naufrágio e da água saborosa, somos convidados a enterrar-nos vivos no Santo Sepulcro a fim de encontrar a verdadeira felicidade.

Para o leitor ter uma ideia do conteúdo seguem agora alguns versos do Cântico

 

O CÂNTICO ESPIRITUAL DO SANTO SEPULCRO

Prólogo

1          Aquele que crê consegue superar tudo;

                        o seu coração está enamorado e repleto de amor suave,

                        contempla o seu Deus com um olhar sublime;

                        livrando se de si próprio, repousa só em Deus

 

Lamentos amorosos de Santa Maria Madalena ao pé do

Santo Sepulcro de Jesus Cristo

201      Lamentemos, o meu Amor morreu;

                        Há sorte mais dura e mais triste

                        do que a dum Amante que abandona a sua Amada?

                        Divino Sepulcro, receba o meu coração,

                        já não quero mais viver,

                        porque tu me roubaste a minha felicidade.

 

309      Apressa-te, Sepulcro, e devolve-me a minha felicidade,

                        porque o meu amor ardente e a minha paixão

                        não são capazes de suportar este martírio.

                        Mas o que? Já não tens o meu tesouro!

                        Já não está no teu poder?

                        Aonde levantou voo?

 

Resposta do Santo Sepulcro a Maria Madalena

333      Perco pelo menos tanto quanto tu

                        porque se tu perdes o teu Noivo

                        devo dizer-te que Ele pertence tanto a mim quanto a ti:

                        desde o nascimento DELE fomos destinados um ao outro

                        e o corpo DELE me era prometido.

 

411      Apesar de eu ser famoso e glorioso

                        por ter tido o prazer [de ter trazido

                        em mim] JESUS, o Divino Salvador,

                        a alma que O traz no seu coração

                        é, no entanto, ainda mais perfeita.

 

417      No sepulcro Ele estava morto,

                        mas na alma Ele é belíssimo,

                        gloriosíssimo, cheio de vida;

                        Ele dá-lhe uma beleza igual à Sua,

                        enobrece-a, vivifica-a.

                        fortifica-a e ampara-a.

 

429      Por conseguinte, não é necessário

                        empreender uma viagem tão longa

                        para adorar o Santo Sepulcro.

                        Pois, a Fé, aquele Facho Divino,

                        desencobre para ti com muito mais graça

                        Jesus num sepulcro vivo.

 

Resposta da alma aos louvores do Santo Sepulcro

 

441      Oh Túmulo mais que maravilhoso!

                        Oh Sepulcro demasiadamente glorioso!

                        Logo que o meu espírito te contempla,

            mostras-me a minha sorte feliz:

                        Eu sou um templo vivo de Deus,

                        E tu apenas dum Deus morto.

 

549      Aquele que não habita no Túmulo,

                        Não é muito santo.

                        Porque é no interior do Sepulcro

                        que Deus devolve a luz

                        e a vida à sua criatura

                        contanto que ela seja capaz de amar.

 

573      Aí todas as suas forças activas

                        e tudo o que ela possui

                        se perdem num feliz naufrágio.

                        Ela procura à sua frente o mais profundo

                        abismo sem, no entanto,

                        alcançar o fundo do mesmo.

 

579      Após aquele alto e sublime esforço

                        novamente ela torna a se submergir

                        num outro abismo profundo,

                        quero dizer naquele Túmulo

                        onde aquela Majestade sublime

                        se faz escabelo para os nossos pés.

 

603      Minha alma, tens que esforçar-te

                        por esconder-te, neste Túmulo,

                        aos olhos dos homens e a ti própria.

                        É necessário enterrar-te toda viva

                        a fim de ter a suprema felicidade

                        de não viver aqui senão morrendo.

 

* A RESSURREIÇÃO NA LITURGIA E ESPIRITUALIDADE  DOS ANTIGOS CARMELITAS.

[1] Os seguintes dados foram tomados do estudo de ROBERT STEFANOTTI: The Phoenix of Rennes : The life and poetry of John of St. Samson, 1571-1636,  New York etc. 1994