Como indivíduos, cada um de nós tem seu próprio jeito de viver o Evangelho, como uma resposta pessoal ao chamado de Cristo para segui-lo. As grandes tradições espirituais – carmelitana, franciscana, jesuíta, dominicana – evoluíram durante centenas de anos e ainda estão em processo de evolução. A tradição carmelitana nos oferece um lar e o meio que nos ajudam a nos tornarmos aquilo que Deus sabe que poderemos ser. Se as grandes tradições espirituais falharem em seu desenvolvimento e não forem mais capazes de dar assistência às pessoas em seu seguimento de Cristo dentro das circunstâncias de cada nova era, então elas morrerão e vão dar lugar a novos movimentos.
As fontes da espiritualidade carmelitana são o Evangelho, que é a lei suprema para todos os religiosos (cf. Perfectae Caritatis, 2), seguido da Regra e das Constituições, e pelas figuras do profeta Elias e de Nossa Senhora. Santa Teresa e São João da Cruz foram formados e alimentados nessa tradição espiritual. Eles não surgiram do nada. Eles desenvolveram a tradição, mas esta certamente não começou com eles, nem parou de evoluir após a morte deles. A popularidade de Teresa e de João vai além da Igreja Católica e muito além das fronteiras do cristianismo. Para compreender tal relevância, precisamos nos voltar brevemente para algumas tendências contemporâneas.
Parece que hoje vivemos num mundo sem esperança. Nosso mundo está devastado por guerras, declaradas ou não-oficiais. Dois terços da humanidade vivem numa pobreza miserável enquanto uma minoria tem muito. Muitos morrem de fome, enquanto a indústria que mais cresce no Ocidente é a que investe no combate à obesidade. O secularismo cresce com toda força, pelo menos no ocidente. A norma é um ateísmo prático. O ateísmo intelectual do século XIX produziu uma vaidade no imaginário humano. Acreditava-se que os seres humanos tinham atingido a maturidade e que não precisavam mais de Deus. Não havia mais necessidade da existência de um ser divino para preencher o vazio no conhecimento humano. Acreditava-se intensamente que os seres humanos logo seriam capazes de fazê-lo. Essa segurança foi abalada por todas as guerras em que nosso mundo se envolveu, no terrorismo, e nos eventos como a tsunami na Ásia, que demonstram que os seres humanos são muito pequenos quando comparados aos atos poderosos da natureza.
A ciência, a tecnologia e a rápida industrialização do ocidente falharam em realizar suas promessas. As descobertas científicas são excitantes e têm produzido mais bens de consumo do que nunca. Pela internet podemos nos comunicar quase que instantaneamente com pessoas a milhares de quilômetros. Contudo parece que perdemos nossa alma. O valor é medido pelo que podemos produzir. As drogas, como tentativa dolorosa de fuga da realidade, são um grande problema, pelo menos nas sociedades ocidentais. No entanto, em meio ao desespero, houve um novo aumento no interesse pela espiritualidade e não na religião institucional. Podemos ver um exemplo desse interesse pela espiritualidade na enorme publicidade dada à morte e ao funeral do Papa João Paulo II, assim como ao Conclave que se seguiu.
Os anos 60 e 70 viram uma revolução nas sociedades ocidentais. Muitos jovens decidiram “cair fora”, rejeitando os pseudo-valores do consumismo. Os jovens do ocidente passaram a ter um grande interesse pelo misticismo oriental. As formas mais exuberantes de revolução desapareceram, mas permanece uma inquietação, uma sede, uma fome de Deus. João da Cruz e Teresa falam à fome de tantas pessoas pelo Absoluto. Os dois apresentam um Deus transcendente que, ao mesmo tempo, está muito perto de nós. Eles não apresentam um caminho fácil, mas a maioria das pessoas não acredita em respostas fáceis. João e Teresa nos dizem a verdade – se vale a pena possuir alguma coisa, ela exige o sofrimento. Os dois reafirmam a mensagem do Evangelho – “Busquem o Reino de Deus, e Deus dará a vocês essas coisas em acréscimo” (Mt 6,33; Lc 12,31); “Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33; Jo 12,25).
TERESA, JOÃO E A ESPIRITUALIDADE CARMELITANA
Na vida e nos escritos de Teresa e de João, vemos que a vida espiritual não está dissociada da vida real. A espiritualidade carmelitana, com suas raízes na Regra e na experiência dos eremitas no Monte Carmelo, deu origem a muitos movimentos nos 800 anos de sua existência. A maioria desses movimentos enfatizou a contemplação e Teresa e João são autoridades renomadas nesta área. Os dois falam da possibilidade de experimentar o divino e do caminho que deve ser seguido rumo à oração.
Teresa e João faziam parte de um amplo movimento, mais forte na Espanha, que enfatizava a chamada “oração intelectual”. Sabemos que surgiram todos os tipos de problemas com este movimento e que isso incluiu a Inquisição. Ocasionalmente, Teresa e João eram denunciados a este órgão por seus inimigos mas nada sério veio das acusações, embora os dois tivessem que ser cautelosos. Apesar dos perigos, Teresa e João não podiam ignorar o chamado. Eles estavam respondendo com seus corações Àquele que os amava. A definição de Teresa de oração intelectual era muito simples e, ao mesmo tempo, muito profunda: “não é nada mais do que uma partilha íntima entre amigos; significa dedicar freqüentemente um tempo para estar a sós com Ele, aquele que sabemos que nos ama” (Vida 8,5). João escreve: “Aquele que foge da oração, foge de tudo que é bom” (Outras Máximas, 11).
Através da história da Ordem, é inquestionável que a contemplação sempre foi compreendida como o coração do carisma carmelitano. O Institutio Primorum Monachorum, que por centenas de anos foi o documento de formação para todos os jovens carmelitanos, diz: “O objetivo desta vida é duplo: Uma parte adquirimos através de nossos próprios esforços e pelo exercício das virtudes, com a ajuda da graça divina. Significa oferecer a Deus um coração que é sagrado e puro da verdadeira mancha do pecado. Alcançamos este objetivo quando somos perfeitos e ‘no Carit’, isto é, escondidos naquela caridade que o Homem Sábio cita, ‘O amor cobre ofensas’ (Pr 10,12). ... O outro objetivo da vida nos é dado como dom gratuito de Deus; ou seja, não apenas após a morte mas nesta vida mortal, para saborear algo no coração e experimentar na mente o poder da presença divina e a doçura da glória celestial” (Livro 1, cap. 3).
Santa Teresa e São João da Cruz foram bem formados na tradição carmelitana e lembraram a Ordem de sua inspiração inicial, como o fizeram todas as outras reformas através da história da Ordem. Ocasionalmente a Contemplação foi definida de diferentes maneiras e essas formas de compreendê-la estiveram mais ou menos em contato com a realidade das vidas dos verdadeiros carmelitanos. Na atual apresentação do carisma carmelitano, a Ordem diz o seguinte: “Os carmelitas buscam viver sua obediência a Jesus Cristo pelo compromisso de buscar a face do Deus vivo (a dimensão contemplativa da vida), pela fraternidade e pelo serviço no meio do povo” (Const. 14). Outro artigo da Constituição diz: “A tradição da Ordem sempre interpretou a Regra e o carisma fundador como expressões da dimensão contemplativa da vida e os grandes mestres espirituais da Família Carmelitana sempre retornaram a esta vocação contemplativa” (Const. 17). O mesmo artigo das Constituições assim descreve a contemplação: “uma experiência transformadora do irresistível amor de Deus. Esse amor nos esvazia de nossos modos humanos limitados e imperfeitos de pensar, amar e comportar-se, transformando-os em modos divinos” (Const. 17).
A Ratio esclarece o papel da contemplação no carisma da Ordem: A dimensão contemplativa não é meramente aquela dos elementos de nosso carisma (oração, fraternidade e serviço): é o elemento dinâmico que os unifica.
Na oração nos abrimos para Deus, que, por sua ação, nos transforma gradualmente através de todos os grandes e pequenos eventos de nossas vidas. Esse processo de transformação permite que participemos e experimentemos relacionamentos fraternos autênticos; nos coloca prontos para servir, capazes de compaixão e de solidariedade, e nos dá a capacidade de colocar diante do Pai as aspirações, as angústias, as esperanças e as súplicas do povo.
A fraternidade é o campo de provas da autenticidade da transformação que está acontecendo dentro de nós (Ratio 23). A Ratio continua: Através dessa transformação gradual e contínua em Cristo, que se realiza em nós pelo Espírito, Deus nos leva para si mesmo numa jornada interior que nos tira das margens dispersivas da vida para o âmago interior de nosso ser, onde ele vive e nos une a si mesmo.
O processo interior que leva ao desenvolvimento da dimensão contemplativa nos ajuda a adquirir uma atitude de abertura à presença de Deus na vida, nos ensina a ver o mundo com os olhos de Deus e nos inspira a buscar, reconhecer, amar e servir a Deus naqueles que estão ao nosso redor (Ratio 24).
Algumas pessoas vêem dificuldades entre o modo como as Constituições e a Ratio compreendem o carisma. Eu, pessoalmente, não vejo. O deserto foi usado muitas vezes como eufemismo para a jornada da contemplação (cf. Living Flame B, 3,38).
A JORNADA ESPIRITUAL
O teste crucial que revela o progresso em nossa jornada espiritual está em percebermos se estamos nos tornando seres humanos melhores: “A fraternidade é o campo de provas da autenticidade da transformação que está acontecendo dentro de nós (Ratio 23). Isso também fica claro em Santa Teresa. Não podemos progredir na vida de oração a menos que melhoremos no amor a Deus e num amor muito prático pelo próximo (cf. Caminho, 4). Teresa nunca buscou progredir na vida espiritual ou na oração. Ela buscou o progresso no amor a Deus e ao próximo. Ela escreveu: “quando vejo pessoas tentando descobrir que tipo de oração estão experimentando e completamente envolvidas em suas orações que parecem ter medo de mover-se, ou de entregar-se a um pensamento momentâneo, para que não percam o mínimo nível de ternura e de devoção que sentiram, percebo que compreendem muito pouco a estrada para a realização da união. Eles acham que tudo se resume nisso. Mas não, irmãs, não; o Senhor deseja obras” (Castelo Interior 5, 3, 12). João diz em uma de suas máximas: “Aquele que não ama seu próximo abomina Deus” (Outras Máximas, 9).
Um dos problemas de estudar Teresa e João é que seus ensinamentos foram escondidos sob camadas de interpretação, especialmente de forma sutil na tradução por teólogos que impuseram suas próprias idéias de como um santo deveria ser. Teresa saiu-se melhor do que João nesse processo porque sua personalidade brilhava mais claramente através de seus escritos. João da Cruz tem sido apresentado como uma personalidade melancólica, sombria, cujo desejo parece ser escapar deste mundo. Contudo, recentemente, um biógrafo em inglês descobriu uma figura diferente: “... um ser humano que se apaixonou por Deus no mundo. Descobri um homem que é realmente santo, mas não porque escapou do mundo. Descobri um homem que descobriu em sua vida que a santidade significava buscar e encontrar Deus neste mundo em que vivemos. Era um homem para quem a Encarnação da Palavra de Deus em Jesus significou a consagração do mundo e da história. Para Frei João, Deus fala no tempo, na vida, no mundo” (Richard Hardy, The Search for Nothing, Intro, p. 3).
ORAÇÃO
Deus, que busca um relacionamento de amor com o ser humano, é central aos escritos de Teresa e João. Eles vêem a oração como um meio privilegiado de comunicação com Deus. Um traço forte de suas vidas e escritos é o intenso relacionamento que têm com Deus e a possibilidade que oferecem a qualquer pessoa que busca a Deus em alcançá-lo.
Qual é o objetivo da oração? Não seria melhor gastar nosso tempo no proveitoso trabalho apostólico? Esse é um problema específico que você enfrentará quando entra no trabalho apostólico em tempo integral. A oração é “vacare Deo”, ou seja, perder tempo com Deus, e rapidamente rezar pode parecer uma completa perda de tempo. O apostolado muitas vezes lhe dará muitas certezas e será mais atraente do que a oração. Algumas pessoas sentem-se mais atraídas pela vida tranqüila do que pelos apostolados atarefados. Existem comunidades eremitas na Ordem. Por favor não tenha nenhuma noção romântica sobre permanecer rezando em sua cela o dia inteiro. Esses homens e mulheres trabalham duro. A maioria de nós está completamente envolvida no mundo engajados em apostolados ativos. Nossas Constituições deixam claro qual é o principal objetivo de nosso trabalho: “Fiéis à herança espiritual da Ordem, devemos canalizar nossos diversos trabalhos para o objetivo de promover a busca de Deus e a vida de oração” (Const. 95).
Teresa resistiu ao encontro pessoal com Deus na oração. Ela teve medo de encontrar Deus na oração pessoal porque pensava que sua vida era má (Vida, 6). Contudo, ela tentou manter a aparência exterior da virtude e todos a estimavam. Existe um paradoxo comum de que quanto mais nos aproximamos de Deus, pior parecemos. Os santos não se comparam com outras pessoas mas olham para si mesmos à luz do amor de Deus por eles. Eles percebem que sua contribuição é pequena diante do amor que Deus tem por eles. O fato de que muitas vezes parecemos piorar ao nos aproximarmos de Deus não significa que estejamos piorando. Paradoxalmente, quase sempre significa que estamos melhorando. Parece que estamos piorando porque somos capazes de suportar uma luz mais forte e a luz do amor de Deus está nos mostrando como realmente somos. Assim aprendemos nossa grande necessidade de Deus. Como Santa Teresa escreveu sobre a oração, devemos ter uma determinação muito determinada para não desistirmos independente do que aconteça (Caminho da Perfeição, 21).
Nossa tendência é julgar a oração através de nossos sentimentos. Pensamos que nossa oração foi boa quando estamos em paz ou quando sentimos um verdadeiro crescimento na fé. Sentimos que a oração foi ruim quando nos distraímos ou fomos incomodados. No entanto, não podemos julgar nosso relacionamento com Deus através de nossos sentimentos. O único modo de julgar é através de nossa vida exterior. A primeira carta de João deixa claro: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). A verdadeira oração se reflete em nossas ações. A oração não é um luxo nas vidas atarefadas dos cristãos ativos. Ela é essencial, porque é pela oração que nos relacionamos com Deus. A relação correta entre oração e prática não é que a prática seja muito mais importante e a oração a ajude. Ao contrário, a oração é sumamente importante e a prática é seu teste.
Rezamos porque Deus de alguma maneira toca nossas vidas. Desejamos rezar porque Deus nos chama e a oração é a nossa resposta. A oração é um mistério porque é um encontro pessoal com o Mistério Último. Deus sempre inicia esse encontro pessoal. Deus alcança o grande abismo que existe entre Ele e sua criação através de seu Filho. Contudo, já que a oração é encontro pessoal ou diálogo, ela exige de nós algum esforço em resposta. Em primeiro lugar, devemos fazer o esforço de ouvir a Deus e nosso esforço sempre é sustentado pela graça de Deus. Nosso esforço de ouvir e de responder ao que Deus nos fala é uma questão tanto de cabeça quanto de coração. Devemos nos esforçar para conhecer Deus. Podemos chegar a conhecer alguma coisa de Deus através da leitura da Bíblia, da teologia e da espiritualidade. É isso o que acontece, humanamente falando, no primeiro estágio de um relacionamento pessoal.
Quando começamos a rezar seriamente, nosso amor por Deus geralmente não é muito forte. Por isso precisamos construí-lo através da leitura, etc. Acima de tudo, dando tempo a Deus. Quanto tempo? As Constituições dizem: “A oração silenciosa é de grande ajuda no desenvolvimento de um espírito de contemplação; por isso devemos praticá-la diariamente por um período de tempo” (Const. 80).
O silêncio é uma virtude muito importante para os carmelitas. A Regra nos ensina que o silêncio é um modo de cultivar a justiça (Regra 21). Palavras e ações que não venham de um coração silencioso levam à injustiça e simplesmente acrescentam problemas ao mundo e não uma solução. Silêncio não significa sentar em nossos quartos estudando sem ouvir música. Isso não é silêncio, é estudo. Devemos ter uma prática sólida de oração diária na qual o silêncio é um elemento importante. A lectio divina é uma prática santificada por muitos séculos de uso. Nesse método, existe tempo para a leitura, tempo para meditação sobre o que lemos, tempo para responder ao que lemos e, por fim, tempo de deixar a Bíblia de lado e abandonar até mesmo nossas palavras e pensamentos sagrados, permitindo que a Palavra de Deus se apodere de nossos corações. Permitimos que Deus nos fale no silêncio ou nos defendemos contra Deus? O que é falso dentro de nós detesta o silêncio porque o silêncio o coloca em foco e então sempre haverá a tentação de preencher o silêncio com palavras e pensamentos. Qualquer coisa servirá, desde que nos distraia deste terrível silêncio! Para que qualquer tipo de oração, que fazemos diariamente, seja realmente eficaz no caminho da transformação, deve incluir longos períodos de silêncio.
Precisamos aprender como nos tornarmos silenciosos. O primeiro fruto da oração autêntica é o auto-conhecimento, que sempre permanece uma parte essencial da vida espiritual saudável (Castelo Interior, 1, 2, 8-9). Não podemos conhecer Deus sem aprender muito sobre nós mesmos e, quase sempre, isso é muito doloroso. Quando refletimos sobre alguns fatos dolorosos sobre nós mesmos, devemos tentar fazer alguma coisa para transformá-los. Nossa oração não será boa se nos recusarmos a desistir de algum pecado. “Não importa quão elevada nossa contemplação possa ser, procure sempre começar e terminar sua oração com o conhecimento de nós mesmos” (C. 39,5)
No começo na oração, tentamos aprender quem é Deus. Usamos nossa cabeça, nossa inteligência para que nossa compreensão possa alimentar nossos corações e assim possamos amar a Deus. Esse é o caminho da meditação, que é estritamente discurso e não oração, mas que é uma preparação essencial para a verdadeira oração. A verdadeira oração começa quando nossos corações estão em comunicação com o coração de Deus. Teresa nos lembra que o importante na oração é “não pensar muito e sim amar muito” (Castelo Interior, 4, 1, 7; Foundations, 5,2). Se formos fiéis a Deus na oração e na vida diária, provavelmente acharemos muito fácil rezar depois de algum tempo. Compreendemos que não precisamos de muita preparação para deixar que nossos corações falem ao coração de Deus. Com o tempo, pouca ou nenhuma preparação imediata através da meditação será necessária para a oração – assim que nos colocarmos em oração, entraremos imediatamente num diálogo com Deus. Contudo, às vezes, será muito difícil rezar.
A jornada espiritual é o processo onde somos transformados em Deus. Observemos cuidadosamente que o verbo está na voz passiva, i. e., nós não realizamos a transformação, este é um trabalho apenas de Deus. Não está dentro de nossa capacidade. Não podemos simplesmente nos transformar por mais que tentemos, por mais penitência que façamos, por mais boas ações que pratiquemos, por mais comunhões que acumulemos. Nunca podemos nos tornar santos por mais que façamos. Apenas Deus pode nos santificar. Nossa tarefa consiste simplesmente em consentir a presença e a ação de Deus em nossas vidas – uma tarefa muito difícil, muito mais difícil do que qualquer obrigação auto-imposta.
A Regra assume o ritmo da lectio divina, que leva à contemplação. Podemos decidir ler a Palavra de Deus e a refletir sobre ela. Nossa resposta à Palavra geralmente é espontânea e fruto do que aconteceu antes, mas ainda estamos no controle. A oração contemplativa acontece para nós. Não temos controle quando se torna oração contemplativa. Esta é a ação transformadora de Deus dentro de nós e, de certa forma, somos colocados para dormir enquanto Deus, o grande Médico, opera bem dentro de nós para transformar os espaços vazios de nossos corações na imagem do Cristo. O processo de contemplação continua no dia a dia, mas alcança seu ponto alto na oração contemplativa. Ele não pode ser alcançado, apenas recebido: “Tão delicado é este repouso interior que, geralmente, se o desejarmos ou tentarmos experimentá-lo, ele não será experimentado; porque, como digo, ele realiza seu trabalho quando a alma está mais descansada e mais livre de cuidado; ele é como o ar que escapa ao tentarmos prendê-lo em nossas mãos” (Noite Escura, 19.6). A princípio a contemplação é tão vaga e gentil que o indivíduo normalmente não percebe que algo incomum está acontecendo. Em algumas pessoas essa consciência cresce muito e podemos ver os resultados desta consciência contemplativa na abundância da literatura mística através dos séculos.
A contemplação não é uma recompensa que Deus dá a algumas almas excepcionalmente santas por suas virtudes. João da Cruz diz que a contemplação começa quando Deus guia a alma para uma noite escura (Noite Escura 1,1). Portanto, a contemplação não é uma recompensa pela santidade mas uma necessidade para tornar-se santo porque as várias fases da noite escura nos purificam de tudo que não é Deus. A contemplação é um processo de transformação gradual em Cristo. Como carmelitas, os leigos virão ao nosso encontro para falar sobre problemas na oração. Eles esperam que nós tenhamos conhecimento desse tipo de coisa a partir da experiência pessoal.
Deus destrói o que é falso dentro de nós e cura as feridas emocionais de uma vida toda através da Noite Escura, o famoso exemplo usado por São João da Cruz. Os métodos de Deus não são os nossos e os pensamentos de Deus não são nossos pensamentos. Muitas vezes Deus coloca nossas idéias sobre a jornada espiritual de cabeça para baixo e de trás para frente. O modo como Deus age pode ir contra qualquer coisa que possamos imaginar e quando isso acontece, as coisas podem parecer realmente muito escuras.
A transformação não é apenas uma mudança de uma ou duas circunstâncias exteriores. É uma mudança profunda do que nos motiva diariamente. Nossa motivação muitas vezes está escondida de nós mas determina como agimos e reagimos durante o dia. É essa motivação que deve ser purificada em algum momento de nossa jornada. Nosso comportamento exterior pode ser angelical ou uma crucificação para nós mesmos e/ou para os outros, mas realmente não podemos mudar muito até mudarmos a raiz do problema. Muitas vezes é necessário mudar o comportamento exterior, mas nenhuma mudança será duradoura a menos que o motivo subjacente também seja modificado. Este último é muito mais difícil.
O falso eu é o modo que cada um de nós busca para se defender do ataque daquilo que pensamos ser o “eu”. Para que a transformação aconteça, devemos cooperar, devemos abandonar este falso eu, devemos morrer verdadeiramente para que recebamos a vida em abundância. Isso envolve uma luta contínua contra toda manifestação do falso eu, que invade todo aspecto de nossas vidas: emocional, intelectual, social e até mesmo espiritual. O sacramento da Reconciliação e a direção espiritual são muito úteis no caminho para a transformação. Se estivermos presos numa rede de pecado, essa ajuda é essencial. Contudo, o falso eu é muito sutil e sua primeira defesa é nos assegurar de que ele não existe. Temos todos os tipos de métodos para racionalizar nosso comportamento. A falha é sempre da outra pessoa. No entanto, nossas próprias emoções podem nos dizer muito. Se experimentamos agitação emocional, eis um sinal seguro de que o problema está dentro de nós e precisamos olhar para aquilo que estamos tentando evitar, ganhar ou agarrar. Geralmente nossa atitude é de que nunca somos culpados por nada e por isso, nunca temos que refletir sobre nosso comportamento. O único modo de ficarmos conscientes da presença do falso eu é permitindo que ele venha à tona em silêncio. Ele vem à tona em nossos comentários interiores ou mesmo num vago sentimento de inquietude que nos constrange com o silêncio. Podemos facilmente ignorar isso voltando a ser ativo na oração ou através do trabalho, por isso precisamos estar vigilantes para não reprimirmos o que Deus está nos dizendo.
É importante lembrar as palavras do sábio:
“Meu filho, se você se apresenta para servir ao Senhor, prepare-se para a provação. Tenha coração reto, seja constante e não se desvie no tempo da adversidade. Una-se ao Senhor e não se separe, para que você seja exaltado no último dia. Aceite tudo o que lhe acontecer, e seja paciente nas situações dolorosas, porque o ouro é provado no fogo e as pessoas escolhidas, no forno da humilhação. Confie no Senhor, e ele o ajudará; seja reto o seu caminho, e espere no Senhor” (Eclo 2,1-6).
A razão desse teste é que precisamos ser purificados para que sejamos capazes de servir aos outros com o coração puro. Contudo, não iniciamos a jornada com um coração puro. Isso é um processo gradual. Muitas vezes nossa oração estará seca, mas isso não significa que Deus não esteja falando conosco. Normalmente Deus fala fora do tempo de oração, no nosso dia a dia. O processo contemplativo é muito mais amplo do que o tempo que dedicamos à oração, mas não podemos afirmar que somos contemplativos, a menos que ficar um tempo a sós com Deus seja uma parte importante de nossas vidas. É durante esse período que Deus purifica gradualmente nossos sentidos espirituais para que sejamos capazes de discernir a voz de Deus em meio às muitas outras vozes que ouvimos a cada dia. Às vezes Deus nos diz palavras de consolo, mas outras vezes Deus nos aponta algo que precisa ser modificado. É vital que aceitemos isso e façamos algo a esse respeito, do contrário não haverá crescimento. É claro que nosso falso eu usará todos os tipos de argumentos razoáveis para que não haja mudança. Devemos permitir que qualquer emoção forte se acalme e depois perguntar a nós mesmos o que podemos aprender com o que foi dito ou com o que percebemos sobre nós mesmos. É útil perguntar porque essas emoções fortes surgiram. Desse modo, gradualmente, nos desprenderemos de nossas próprias opiniões, de nosso jeito de fazer as coisas e seremos capazes de discernir o que Deus está nos dizendo.
O coração humano é muito sutil e requer uma profunda purificação. Esse é o propósito da jornada contemplativa e da noite escura. Ao crescermos mais e mais à semelhança de Cristo, aprendemos a nos ver como realmente somos. Esse é o dom de Deus e o resultado da ação purificadora e transformadora de Deus dentro do ser humano.
Nossa vocação carmelitana é muito profunda. Somos chamados a servir as pessoas em comunidades contemplativas. Ao respondermos ao chamado de Cristo para segui-lo, nos comprometemos a assumir sua visão e valores. Mas logo percebemos que somos incapazes de viver de acordo com nossos ideais por nosso própria conta. Ao amadurecermos em nosso relacionamento com Deus, damos espaço para que Deus nos purifique para que possamos começar a ver como Deus vê e amar como Deus ama. Esse jeito de ver e de amar é doloroso para o ser humano porque requer uma transformação radical do coração. O clamor dos pobres vai penetrar em nossas defesas e nossa resposta, libertada da distorção do falso “eu”, virá de um coração puro. O Papa João Paulo II nos lembra que, “o Cristo encontrado na contemplação é o mesmo que vive e sofre nos pobres” (VC, 82).
A contemplação é um dom puro de Deus. Como a salvação, ela não pode ser merecida. Deus não é um ídolo que podemos controlar através do ritual certo. Não podemos forçar Deus a nos conceder o dom da contemplação.
Nos estágios finais da contemplação, somos ligados a Deus de tal modo que as palavras não podem expressar e que nossa compreensão não pode alcançar: “Os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, nem o coração humano concebeu o que Deus preparou para aqueles que O amam” (2Cor 9).
O conhecimento que adquirimos pela contemplação é do tipo que nunca poderíamos aprender com anos de estudo ou de reflexão. Deus confere um verdadeiro conhecimento de si mesmo a nossos corações. Só podemos fazer tudo que está ao nosso alcance para nos prepararmos pela fidelidade à oração e acima de tudo demonstrando nosso amor por Deus amando ativamente nosso próximo.
A contemplação ou a oração mística não deve ser confundida com o fenômeno das visões ou êxtases ou locuções ou com qualquer outra coisa que tenhamos lido. Esses são os efeitos num número muito pequeno de pessoas do poder do amor de Deus crescendo dentro delas. Para a maioria das pessoas, o processo de transformação acontece na escuridão.
O CAMINHO PARA A PERFEIÇÃO CRISTÃ
Existem fundamentalmente dois modos diferentes para a perfeição da vida cristã? Apenas alguns são chamados a percorrer o caminho místico? Nem Teresa nem João respondem diretamente essas questões mas podemos encontrar uma ou duas alusões em seus escritos. Todos nós fomos chamados à santidade. Cada um de nós foi chamado a ser santo de modo único para contribuirmos com o esplendor do Corpo de Cristo. Só porque não podemos ser santos como Nossa Senhora, não significa que possamos dar vez à mediocridade. O primeiro mandamento é que amemos o Senhor, nosso Deus, com todo nosso ser. Os místicos nos mostram do que o espírito humano é capaz quando impregnado do Espírito Santo. Nenhum de nós pode alcançar os níveis de santidade de São João da Cruz ou de Santa Teresa d’Ávila, mas cada um de nós pode desenvolver ao máximo nosso próprio potencial humano e esse é o trabalho de Deus, mas devemos cooperar com graça.
Acredito que existe apenas um caminho para a perfeição da vida cristã. Devemos permitir que Deus, que faz em nós sua morada, assuma gradualmente o controle de nossas vidas até que Ele seja tudo em todos. Quanto a nós, devemos nos conscientizar de nossa pobreza, de nossa incapacidade e deixar que Deus assuma. Não podemos alcançar a santidade sozinhos. Deus é nossa santidade. Não existem dois caminhos. Se existissem dois caminhos para a perfeição cristã, então uma grande parte dos escritos de Santa Teresa e, virtualmente, tudo que João da Cruz escreveu, seriam interessantes a partir de um ponto de vista literário, mas seriam irrelevantes para a maioria de nós. Contudo, se existe apenas um caminho, então podemos descobrir em Teresa e em João os princípios básicos para cooperar com Deus neste grande trabalho de transformação e de purificação do espírito humano.
Existem vários elementos da espiritualidade carmelitana que não mencionei porque a totalidade da espiritualidade carmelitana não se limita a esses dois santos. Se você deseja saber qual a hora do vôo da Ibéria de Madri para Roma amanhã, você vai procurar o horário dos vôos e não o horário dos trens. Não espere encontrar tudo em Teresa e João. Não é necessário encontrar uma citação de Teresa ou de João para tudo que queremos fazer ou dizer. Contudo, os dois são de grande importância para a espiritualidade carmelitana hoje e para seu desenvolvimento futuro. Devemos ser homens e mulheres de oração. Como dizem nossas Constituições: “Desde o princípio, a Ordem Carmelitana assumiu uma vida de oração e um apostolado de oração. A oração é o centro de nossas vidas e a comunidade autêntica e o ministério brotam desta fonte” (Con. 64).
Teresa e João não pretendiam escrever a palavra final sobre a oração, mas o que escreveram é um ensinamento seguro e isso foi reconhecido por toda a Igreja quando eles foram declarados doutores da Igreja. Hoje, muitas pessoas buscam a Deus porque suas almas estão famintas devido ao secularismo moderno. Elas não estão buscando nos lugares tradicionais, isto é, dentro da religião institucional. O Capítulo Geral de 1995 desafiou a Ordem a mudar-se para o novo “areópago”, os novos mercados do mundo. A busca pela espiritualidade acontece muitas vezes no mundo da internet. Devemos estar lá e em outros lugares novos, com nossa espiritualidade que tem enriquecido tantas pessoas nos últimos 800 anos. Contudo, o que importa acima de tudo é que nós mesmos vivamos esta espiritualidade. Teresa e João não conheciam nada sobre nosso mundo atual, mas seus escritos permanecem atuais.
“Meu Bem-amado, as montanhas, os vales solitários
as ilhas estranhas, os rios sonoros, o sussurro das brisas amorosas,
a noite tranqüila, na hora do raiar do dia,
a música silenciosa, a solidão sonora, a ceia que recria e o amor inflamado”.
(Cântico Espiritual, 14-15).