*Frei Carlos Mesters, Carmelita.

O jeito de o povo rezar os seus salmos

Hoje existem várias maneiras de se rezar os salmos. “O Senhor é meu Pastor” (Sl 23), por exemplo, tem várias melodias e várias letras. Usam-se vários instrumentos. Às vezes, os salmos são rezados por uma única pessoa, enquanto os outros escutam; outras vezes, são rezados alternadamente, em coro. Às vezes, depois de recitação do salmo, fica-se um tempo em silêncio para ruminar a palavra ouvida e, em seguida, cada um repete o versículo que mais o impressionou.

Estas e outras maneiras são meios que nós usamos hoje para poder agarrar o sentido do salmo e, assim, rezá-lo como expressão dos nossos próprios sentimentos. O ideal é este: recriar o salmo, a partir da sua raiz, como se fosse rezado hoje pela primeira vez.

E aí vem a pergunta: Como é que o povo do tempo da Bíblia rezava os seus salmos? Como fazia para recriá-los e assimilá-los na vida? O que podemos aprender deles neste ponto? O próprio Livro dos Salmos nos dará a resposta a estas perguntas.

1-Chaves de leitura

A maioria dos salmos tem um pequeno título que funcionava como chave de leitura. Ele informava sobre a origem, o autor, o tipo e o uso do salmo. Os títulos dos salmos são antiqüíssimos. Nem sempre são claros. Eles nos dão uma idéia de como os salmos eram rezados naquele tempo. Tomemos como exemplo, entre muitos outros, o título do Salmo 57 que diz: “Do mestre do canto. Não destruas. De Davi. A meia voz. Quando fugia de Saul na caverna” (Sl 57,1). Vejamos ponto por ponto:

Do mestre do canto. Sinal de que eles tinham um responsável que puxava o canto durante as celebrações. Provavelmente, havia um grupo de cantores que formava um coro para animar o culto (cf. 1Cr 15,16; 9,33; 2Cr 23,13).

Não destruas. Era o título de uma música popular bem conhecida de todos. O Salmo 57 devia ser cantado com a melodia da música “Não destruas”. Até hoje, o povo faz letra para ser cantada conforme a melodia de cantos populares bem conhecidos.

De Davi. Atribuir o salmo a Davi ajudava o povo a “rezar como Davi rezou, a cantar como Davi cantou”. Tornava mais concreta a recitação do salmo, pois facilitava a identificação do povo com Davi.

A meia voz. Indicava que se tratava de um salmo mais meditativo, pois havia outros salmos em que o povo era convidado a cantar e gritar bem alto (Sl 47,2). Nem sempre as celebrações eram silenciosas. Pelo contrário! (Sl 42,5).

Quando fugia de Saul na caverna. Evoca um fato bem conhecido da vida de Davi (cf. 1Sm 24,1-8) como contexto de origem do salmo. Isto ajudava a dramatizar o salmo, a ligá-lo com a vida, e favorecia a identificação do orante com Davi.

2-Instrumentos musicais

Ao que parece, as celebrações eram bem animadas, acompanhadas com muitos instrumentos musicais. O Salmo 150 enumera vários: trombeta, cítara, harpa, tambor, instrumento de corda, flauta, címbalo (Sl 150,3-4; cf. 81,3-4). Em outros salmos aparecem outros instrumentos como a lira de dez cordas (Sl 33,2), o oboé (Sl 46,1). Havia salmos que deviam ser acompanhados com um determinado instrumento musical. Por exemplo, o Salmo 54, foi feito para ser acompanhado com instrumento de corda (Sl 54,1); O Salmo 46, com oboé (Sl 46,1). O Salmo 33 convida o povo a tocar os instrumentos e fazer grande louvação (Sl 33,2-3). Eles gostavam de música e festa!

3-Participação do povo

Hoje em dia, quando se reza um salmo, todo mundo tem o texto na mão. Isto facilita a participação. Naquele tempo, não havia texto na mão do povo. Cantava-se de memória e o povo participava de muitas maneiras. Às vezes, alguém puxava o canto e o povo respondia em forma de ladainha, dizendo sem parar: “Eterno é seu amor, eterno é seu amor, eterno é seu amor, eterno...” (Sl 136). Outras vezes, o cantor que puxava o canto mandava o povo confirmar a prece com a aclamação “Amém! Amém!” (Sl 106,48). Ou provocava os vários grupos presentes na celebração: “A Casa de Israel, repita: eterno é seu amor! Agora a Casa de Aarão, repita: eterno é seu amor! Agora todo mundo que teme o Senhor, repita: eterno é seu amor! Agora todo mundo que teme o Senhor, repita: eterno é seu amor!” (Sl 118,2-4).

Em outros salmos, o povo participava por meio do canto de um refrão que voltava no começo, no meio e no fim (Sl 80,4.8.20). Outras vezes, participava dançando (Sl 150,4), acompanhando a procissão (Sl 42,5; 24,6-10), fazendo romaria (Sl 122,1-2), tocando seus instrumentos (Sl 33,2-3). As festas eram alegres e barulhentas (Sl 81,3-4; Sl 42,5).

4-Expressão corporal

Corpo e alma formam uma unidade. O corpo acompanha o movimento da mente e dele procura ser uma expressão e uma ajuda. Por isso, a expressão corporal faz parte da prece e lhe dá mais vida. A Bíblia tem muitas informações sobre as várias formas de expressão corporal que acompanhavam a recitação dos salmos e a prece em geral: prostração, genuflexão, inclinação (Sl 95,6; 22,30); levantar as mãos para o alto (Sl 63,5), bater palmas (Sl 47,1), soltar gritos (Sl 47,1), colocar a cabeça entre os joelhos (1Rs 18,42).

Depois do exílio, quando uma grande parte dos judeus vivia fora da Palestina, espalhada pelas costas do Mar Mediterrâneo, criaram o costume de orientar o corpo. Isto é, durante a oração, eles se voltavam na direção do templo de Jerusalém que ficava no Oriente (Sl 138,2). Faziam isto três vezes ao dia, no momento exato em que, lá no templo, se oferecia o sacrifício, de manhã, ao meio dia e no fim da tarde. Assim, unidos entre si no mundo inteiro, faziam subir as preces até Deus junto com a fumaça dos sacrifícios do templo de Jerusalém.

5-Espelho para todo sofredor

Como vimos anteriormente, é difícil saber exatamente em que época, em que lugar e a partir de que fato a maioria dos salmos foi escrita. Ou seja, não é fácil atingir o contexto histórico exato da origem dos salmos. De certo modo, isto era proposital! Era para permitir que os salmos pudessem ser rezados em todo tempo e em todo lugar, sobretudo os salmos de lamento. Nos salmos de lamento, o salmista expressava a sua dor de tal maneira, que a sua prece pudesse ser assumida e rezada também por outros. Por isso, ele não particularizava demais nos detalhes pessoais, pois isto dificultaria ao outro identificar-se com o salmo. Nem generalizava demais, pois isto separaria o salmo da vida e ele já não seria espelho para ninguém. Numa palavra, os salmos são, ao mesmo tempo, universais e concretos. Nisto está a sua arte! Por isso são espelho para todo sofredor. Até hoje, o povo se encontra lá dentro, apesar de todas as dificuldades de linguagem, de interpretações e de distância no tempo.

Para a oração dos salmos é importante lembrar o seguinte. O sentido dos salmos se concretiza não só a partir do contexto da pessoa que fez o salmo, mas também e sobretudo a partir do contexto daquele que reza o salmo. Por exemplo, o Salmo 72 diz: “O Senhor liberta o indigente que clama, e o pobre que não tem protetor” (SI 72,12). Ao rezar este salmo, não se deve pensar no indigente e no pobre do século IV antes de Cristo, mas, sim, nos indigentes e nos pobres que nós mesmos conhecemos no lugar onde moramos, hoje, aqui e agora, no Brasil! O estudo do contexto histórico do salmo pode ajudar muito para que, na oração, o salmo possa ser espelho para todo sofredor.

6-Retrato da vida de cada um

As imagens ou comparações usadas nos salmos para expressar a atitude orante do povo diante de Deus eram as mesmas que se usavam para expressar as coisas mais comuns da vida e da convivência diária: criança dormindo no colo da mãe (SI 131,2), a família em casa ao redor da mesa (SI 128,3), uma roda alegre de gente amiga que grita e canta com violão e pandeiro (SI 33,1-3; 81,3-4), o luar do sertão (SI 8,4), saudades da terra (SI 42,5), o pedreiro que constrói uma casa e o vigia que guarda uma cidade (SI 127,1), etc.

Todas as situações da vida estão presentes nos salmos: alegria, tristeza, solidão, abandono, perseguição, exploração, repressão, opressão, desespero, esperança, doença, morte, amor, ódio, casamento, educação, juventude e velhice, calor, frio, luta, festa ... tudo! Os salmos não distanciavam as pessoas da vida. Pelo contrário. Traziam a vida para dentro da prece, e levavam a prece para dentro da vida. Tudo que dava para rir e para chorar era usado no diálogo com Deus. Os salmos têm a variedade da própria vida.

7-Ambiente organizado da comunidade

O povo que hoje participa da comunidade conhece de cor muitos cânticos: “O Povo de Deus no deserto andava”, “Da cepa brotou a rama”, “Queremos Deus”, "Eu confio em Nosso Senhor", "A Ti, meu Deus", "Me chamaste", etc. Outro dia perguntaram: “Dona Maria, quando foi que a senhora aprendeu Queremos Deus?” Ela respondeu: “Não sei! A gente sabe!” Nas comunidades existe um ambiente de vida que transmite as coisas sem que a gente se dá conta. Assim, no tempo de Jesus, havia um ambiente de vida, sustentado e mantido pela organização comunitária do povo em torno da sinagoga, e pelos costumes familiares. Neste ambiente, o povo aprendia os salmos de cor, quase como a respiração da vida da comunidade.

Os evangelhos ainda deixam transparecer alguns traços deste ambiente de oração da vida comunitária do tempo de Jesus, em que os salmos aparecem como parte integrante do conjunto. No Domingo de Ramos, o povo gritou espontaneamente a frase de um salmo para aclamar Jesus (Mc 21,9 e SI 118,25-26). O cântico de Maria cita mais de quatro salmos diferentes (Lc 1,46-55). Depois da Ceia Pascal, Jesus e os apóstolos saíram da sala e foram para o Horto rezando salmos (Mt 26,30). Três ou quatro das oito bem-aventuranças que Jesus proclamou para o povo são frases  tiradas dos salmos (Mt 5,3-10).

Estes e outros fatos mostram que os salmos permeavam a vida do povo como o cimento permeia os tijolos e dá consistência à parede. Eles davam consistência e expressão à piedade e à fé do povo. Os salmos eram ensinados e divulgados entre o povo através das reuniões na sinagoga, através da oração em família, através das procissões e das romarias. Os salmos chamados alfabéticos facilitavam a memorização dos mesmos (SI 25, 34, 37, 111, 112, 119 e 145).

Estes sete pontos revelam o jeito usado pelo povo daquele tempo para rezar e assimilar os salmos na vida. Quem for ler e estudar os salmos com atenção, poderá descobrir muitas outras informações a respeito de cada um destes sete assuntos. Demos apenas algumas dicas.

* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.