*Frei Carlos Mesters, Carmelita.

Salmo 1 e Salmo 150: luta e festa

O Livro dos Salmos é como uma grande rede, onde o povo deita e descansa da caminhada, se refaz dos estragos e da dor, e acumula novas forças para retomar a luta. Esta rede está pendurada em dois ganchos bem fortes, o Salmo 1 e o Salmo 150, que ficam nas duas pontas, o primeiro e o último. Estes dois salmos descrevem o ponto de partida e o ponto de chegada da oração e revelam a tensão que existe entre as duas motivações mais profundas que nos levam a rezar. O Salmo 1 fala da meditação e da observância da Lei do Senhor, enquanto o Salmo 150 fala do louvor e da festa total. Luta e Festa! Eficiência e Gratuidade! Os dois pólos da oração.

Salmo 1: eficiência e luta

O Salmo 1 indica o ponto de partida da oração. É o salmo dos “Dois Caminhos”. Quem quiser levar uma vida de oração deve fazer uma opção inicial bem clara entre o caminho dos justos e o caminho dos pecadores (SI 1,6); deve decidir-se firmemente a viver conforme as exigências da Lei do Senhor (SI 1,2). Aqui, no início do Livro dos Salmos, a oração aparece como “meditar dia e noite na Lei do Senhor” e encontrar nela o seu prazer (SI 1,2). A oração está intimamente ligada à luta entre o bem e o mal, entre a justiça e a injustiça, pois ela é vista como um meio que ajuda o povo a romper com o caminho da injustiça e a se manter no rumo da Lei do Senhor (SI 1,1-2). O objetivo da oração é produzir bons frutos no  tempo certo, igual a uma árvore frondosa sempre verde, plantada à beira das águas correntes (SI 1,3). Resumindo: na abertura do Livro dos Salmos, no começo da caminhada com Deus, está a preocupação com a observância da lei e com a eficiência da ação. Esta preocupação é um dos dois ganchos que sustentam a rede dos salmos. A influência deste gancho percorre todo o livro até o outro lado, até o Salmo 150. Mas a oração não é só isto; não é só meio para alcançar um fim. Ela é também o próprio fim que se quer alcançar, amostra grátis da festa final. É disto que fala o Salmo 150.

Salmo 150: a gratuidade, a festa

O Salmo 150 descreve, como num painel luminoso, o ponto de chegada do caminho da oração. Aqui, no encerramento do Livro dos Salmos, a oração aparece como louvor e festa. Aleluia! Louvai o Senhor! (SI 150,1.6). Com traços curtos e claros, o salmo indica qual é o lugar e o motivo do louvor:

  1. É o templo (SI 150,1), isto é, o lugar onde Deus reside no Santo dos Santos e onde a comunidade se reúne diante de Deus;
  2. É o firmamento (SI 150,1), isto é, a natureza onde se revela a presença de Deus como Criador;
  3. São as façanhas (SI 150,2), isto é, a história onde Deus se revela, como Libertador e Salvador, nas maravilhas que operou para o povo.

Comunidade, Natureza, História! As três são expressão de "sua imensa glória" (SI 150,2) que deve ser louvada. O salmo convida a todos, sem distinção, a participar do louvor: “Tudo que vive e respira louve o Senhor!” (SI 150,6). Ele pede para usar todos os instrumentos (SI 150,3-5). Todos têm que entrar na dança (SI 150,4). Neste painel luminoso, que descreve o ponto final da história e da prece, a humanidade aparece como um bloco alegre e animado, cantando e dançando num louvor eterno.

Resumindo: a história termina no louvor; a gratidão explode em canto: “Tudo que vive e respira louve o Senhor!” (SI 150,6). Este é o outro gancho em que está pendurada a rede dos salmos. E também aqui, a influência deste gancho percorre todo o livro até o outro lado, até o Salmo 1. É o gancho da festa, da gratuidade, do puro bem querer, sem nenhum outro objetivo, a não ser este: estar aí, diante de Deus, numa presença amiga e gratuita, para cantar, louvar e agradecer. Aqui, a oração já não é meio, mas é o próprio ponto final: a festa. Deitado nesta rede, o povo tem os pés na direção do Salmo 1;  a cabeça e o coração na direção do Salmo 150. Toda oração é, ao mesmo tempo, meio e fim, observância e gratuidade, pedido e louvor, conversão e gratidão, compromisso e amizade, caminhada e chegada, Lei e Graça, luta e festa!

Os dois perigos que ameaçam a prece

Estes dois pólos também encerram em si os dois perigos que, constantemente, ameaçam a prece, entortam a rede e fazem o povo cair no chão.

Um dos dois perigos é achar que basta o louvor (salmo 150) e que a luta pela justiça (salmo 1) contribui para sustentar a caminhada do povo. É achar que só Deus é quem faz as coisas e que a nossa observância e luta não são necessárias para a salvação; é achar que nós não podemos nem devemos fazer coisa alguma, pois a salvação é um dom gratuito de Deus. Esta atitude provoca a passividade que deixa a história à deriva, entregue à ideologia dominante que devasta a comunidade, a natureza e a história, sem deixar lugar nem para Deus nem para o povo.

O outro perigo é achar que o louvor e a celebração não contribuem para animar a luta entre o bem e o mal; é achar que só a eficiência e o planejamento podem levar a algum resultado de mudança e de transformação. Isto provoca o farisaísmo que exclui a ação da graça, elimina a festa, se fecha nas próprias idéias e pode levar ao fanatismo e à loucura.

O difícil mesmo é achar a fonte, onde estes dois córregos, o da luta e o da festa, existem unidos, nascendo a cada instante como irmãs, filhas do mesmo pai e da mesma mãe, brigando entre si, mas irmãs, que se querem bem e que precisam uma da outra.

* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.