*Frei Carlos Mesters, Carmelita.
A poesia dos salmos uma outra entrada para dentro da vida.
A oração dos salmos se situa mais do lado da poesia e da arte do que do lado da lógica e da razão. Ainda que seja um assunto meio difícil e complicado, convém ver de perto este aspecto poético dos salmos, pois ele ajuda muito a perceber o rumo e o objetivo dos salmos. A poesia dos salmos é a linguagem humana colocada a serviço da descoberta de Deus.
Poesia: o lado de dentro das coisas.
Poesia não é só uma questão de rima e de ritmo. É muito mais do que isto. A poesia tem outra porta de entrada, outro caminho de acesso aos segredos da vida. Consegue ver e experimentar o outro lado dos fatos e da natureza, o lado de dentro, onde a razão não penetra, a eficiência nada alcança, o planejamento se frustra. Onde a vida encontra razões para viver que a razão desconhece. É o lado onde, no segredo, a fonte gera a sua água, a flor solta o seu perfume, o passarinho recomeça o seu canto. Onde o dia nasce, o mar se esconde, o sol descansa. Onde a criança é adulto, e o adulto continua criança. Onde a dor é acolhida como irmã, e a alegria se desprende da alma em pranto. Onde existe a escuridão luminosa, o silêncio sonoro, a solidão partilhada. Onde se encontra a fonte sem fundo que reflete o rosto de quem nela olha e lhe faz descobrir o seu eu escondido.
A poesia é uma faísca da plenitude de Deus, uma amostra da sua presença no meio de nós. Ela é uma interpretação da fala de Deus. Nada melhor do que a poesia para ser a expressão do nosso diálogo com Deus.
Alma e corpo da poesia
Na hora em que a prece sobe no coração e a inspiração nasce na cabeça, o salmista vai à procura de uma forma para expressar o que está sentindo. O casamento perfeito entre a inspiração e a forma literária é a expressão mais alta da arte. É onde alma e corpo da poesia se unem e geram vida nova. Nem todos os salmos alcançam a perfeição poética. Mas todos eles, perfeitos ou não, expressam um sentir, um sentido, um sentimento, uma experiência de Deus na vida.
O sentido que o poeta quer expressar e transmitir através da sua poesia ou salmo não está só nas palavras e frases que ele escolhe e arruma com tanto cuidado, mas também e sobretudo no espaço invisível que ele cria entre as palavras e entre as frases, nas entrelinhas. Arrumando as palavras e as frases dentro de uma determinada ordem, o poeta cria entre elas uma relação, uma tensão, um espaço, uma zona de silêncio, que provoca o leitor. As palavras assim arrumadas tornam-se como que grávidas de um novo sentido (que não está no dicionário).
Entre as frases e as palavras da poesia, do salmo, corre o fio invisível do sentido a ser captado pelo leitor. O resultado da poesia não depende só do poeta. O poeta inicia a obra, o leitor deve completá-la. As palavras e as frases do salmo são como um binóculo que o poeta entrega ao leitor dizendo: “Aqui! Olhe você também para a vida, para Deus! Você vai gostar!” E pode até acontecer que o leitor, olhando pelo salmo, consiga enxergar mais que o próprio poeta.
O jeito como a poesia dos salmos arruma as palavras e as frases
Cada povo arruma as palavras da sua poesia de acordo com as possibilidades e as exigências da sua cultura e da sua língua. A característica básica da poesia do povo hebreu é esta: aproximar, uma da outra, duas ou mais frases, dois ou mais pensamentos, completos em si, cada um carregado de um sentido. São como dois polos, entre os quais se estabelece uma tensão, uma relação; como dois fios, entre os quais salta a faísca invisível do sentido. O critério usado pelos poetas hebreus para aproximar entre si a palavra e as frases não é tanto (como na nossa poesia) a associação sonora, o ritmo ou a rima, mas, sim, o conteúdo, o significado da frase; e isto de duas maneiras: em forma de comparação e em forma de paralelismo.
A comparação: iluminar um pelo outro
A comparação é uma maneira elementar e popular para expressar e transmitir um sentido. Até hoje, o povo recorre à comparação quando quer explicar alguma coisa. A comparação pertence mais à linguagem falada; ela é menos frequente na linguagem escrita dos salmos. Há duas maneiras de se fazer a comparação:
- Comparar para igualar ou equiparar: “Como..., assim...”. A frase menos conhecida se esclarece a partir da mais conhecida.
Alguns exemplos:
“Como vinagre nos dentes e fumaça nos olhos, assim é o preguiçoso para quem o envia”. (Pr 10,26)
“Como o animal sedento à procura dos córregos, assim eu estou à tua procura, Senhor!” (SI 42,2)
“Abriram sua boca contra mim, como o leão que dilacera e ruge”. (SI 22,14)
“Mil anos aos teus olhos são como o dia de ontem que já passou”. (SI 90,4)
- Comparar para diferenciar e avaliar. “Melhor é..., do que...”. O poeta estabelece uma escala de valores entre as duas frases, o que permite julgar e apreciar as coisas. Alguns exemplos:
“Mais vale o pouco do justo, do que as grandes riquezas do ímpio”. (SI 37,16)
“Melhor um dia na tua casa, do que mil passados em minha casa”. (SI 84,11)
“Puseste mais alegria no meu coração, do que a alegria deles em época de colheita abundante de trigo e vinho”. (SI 4,8)
O paralelismo: iluminar-se mutuamente
O paralelismo aproxima ou justapõe duas frases em pé de igualdade e faz com que uma interfira na descoberta do sentido da outra. O paralelismo é a forma poética mais frequente nos salmos. Ele se faz de três maneiras:
- Uma frase completa o sentido da outra: paralelismo sintético:
“O Senhor reconstrói Jerusalém, reúne os exilados de Israel”(SI 147,2)
“Levanta-te, ó Juiz da terra, devolve o merecido aos soberbos”. (SI 94,2)
“Habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar a doçura do Senhor e meditar no seu templo”. (SI 27,4)
- Uma frase diz o mesmo que a outra: paralelismo sinônimo:
“Povo meu, escuta minha lei, dá ouvido às palavras da minha boca”. (SI 7811)
“Eles tramam um plano contra o teu povo, conspiram contra os teus protegidos”. (SI 83,4) “O Senhor não rejeita seu povo, jamais abandona sua herança”. (SI 94,14)
- Uma frase diz o contrário da outra: paralelismo antitético:
“O ingênuo acredita em tudo que se diz, o esperto discerne as coisas”. (Pr 14,15)
“O Senhor conhece o caminho do justo, o caminho dos ímpios se perde”. (SI 1,6)
“Os ricos passam necessidade e fome, nenhum bem falta aos que procuram o Senhor”. (SI 34,11)
Às vezes, o salmista combina comparação com paralelismo (SI 92, 13), outras vezes, combina entre si as várias formas do paralelismo:
“O Senhor tem os olhos sobre os justos e os ouvidos atentos ao seu clamor. A face do Senhor está contra os malfeitores, para da terra apagar a sua memória”. (SI 34,16-17)
O versículo 16 é paralelismo sintético. O mesmo vale para o versículo 17. Mas os dois versículos comparados entre si formam um paralelismo antitético.
Dois complementos sobre a poesia dos salmos
- Paralelismo: estrutura do Livro dos Salmos
A Bíblia usa o paralelismo não só para organizar as palavras e as frases dentro de cada salmo, mas também para organizar os salmos dentro do conjunto do Livro dos Salmos. Assim, vários salmos formam duplas. Parecem gêmeos. Alguns exemplos:
1) Paralelismo sintético entre os Salmos 50 e 51: Salmo 50 é uma acusação contra o povo, uma denúncia da sua culpa; Salmo 51 é uma confissão do pecado, um reconhecimento da culpa. Um completa o outro.
2) Paralelismo antitético entre os Salmos 22 e 23: Salmo 22 diz: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (SI 22,2); Salmo 23 diz: “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará. Tu estás junto de mim” (SI 23,1.4). Um diz o contrário do outro.
3) Paralelismo sinônimo entre os Salmos 3 e 4: Salmo 3 diz: “Eu me deito e logo adormeço” (SI 3,6); Salmo 4 diz: “Em paz me deito e logo adormeço” (SI 4,9). Um diz o mesmo que o outro. Os dois são orações da noite.
Aqui se abre todo um campo de pesquisa: investigar e descobrir o fio invisível do sentido que corre não só entre as palavras e as frases de cada salmo, mas também entre os próprios salmos, desde o Salmo 1 até o Salmo 150; descobrir as duplas de salmos e as várias formas de paralelismo que existem entre eles, e investigar como o sentido de um salmo ajuda a descobrir e a completar o sentido do outro.
2-Paralelismo: como estrutura da própria Bíblia
O paralelismo existe não só dentro de cada salmo, nem só dentro do conjunto do Livro dos Salmos, mas também dentro do conjunto da Bíblia. A própria estrutura da Bíblia está baseada na lei do paralelismo. Ou seja, a Bíblia justapõe e aproxima entre si doutrinas, fatos, interpretações da vida e da história, sem preocupação em harmonizá-las entre si. Num lugar, ela diz uma coisa; em outro, diz o contrário.
Por exemplo, a descrição da criação em Gênesis 1 é uma, a de Gênesis 2 é outra; e a interpretação da história dada pelos Livros de Samuel e dos Reis é diferente da interpretação dada pelos Livros das Crônicas; o Davi dos Livros de Samuel é um, o Davi dos Livros das Crônicas é outro; o Livro do Eclesiastes tem uma visão das coisas, o Livro do Eclesiástico tem outra; a solução proposta pelo Livro de Rute é bem diferente da solução dos Livros de Esdras e Neemias; as Cartas de Paulo e a de Tiago oferecem duas maneiras diferentes de encarar o problema da lei e das obras; a maneira de apresentar a pessoa de Jesus é diferente em Mateus, em Lucas, em Marcos, em João, nas Cartas de Paulo e no Apocalipse; e assim por diante.
Às vezes, as várias afirmações se completam (sintético); às vezes, dizem a mesma coisa (sinônimo); outras vezes, dizem o contrário (antitético). Deste modo, colocando os contrários, um ao lado do outro, a Bíblia cria uma tensão, um campo de força, entre as várias partes ou livros que a compõem.
A tentação do intérprete é querer resolver o problema escolhendo uma afirmação e negando a outra; ou reduzindo o sentido de uma frase ao tamanho do sentido da outra. A Bíblia, porém, não racionaliza. Através da lei do paralelismo, ela simplesmente explicita as contradições existentes na vida, nos fatos, na história. Ela é a imagem do que acontece e existe na história humana. Ela provoca e convida o leitor a assumir a contradição e o conflito como parte integrante da caminhada, e a permanecer na busca, sem esmorecer, até chegar no ponto onde as duas afirmações contrárias se encontram como dois galhos nascendo da mesma raiz, ou onde uma, apoiada pelo Evangelho, exclui a outra como contrária a Deus, ao Evangelho e à vida humana.
O desafio da poesia
Esta reflexão sobre o paralelismo encerra uma lição. De um lado, faz a gente ficar mais humilde; ajuda a relativizar os nossos conflitos internos, as nossas brigas e contradições. Faz perceber que “na casa do Pai há muitas moradas” (João 14,2). Por outro lado, ajuda a perceber e a assumir com mais garra a grande luta que atravessa a história. Ajuda, como diz o povo, a “dar um boi para não entrar na briga, e uma boiada para não sair dela”. O mais importante na poesia dos salmos não são as normas literárias. O mais importante da janela não é a sua forma, mas, sim, o panorama que pode ser visto através dela.
A poesia é como uma seta na estrada, um estímulo. Ela coloca o leitor num caminho de descoberta. Quer provocar nele a mesma experiência que o poeta ou o salmista teve. No momento em que conseguirmos reencontrar dentro de nós um reflexo desta experiência, teremos atingido a fonte de onde o poeta bebeu, teremos agarrado a matriz que gera o sentido, e encontrado a luz que ilumina os salmos pelo lado de dentro. Nesse momento, começamos a “rezar como Davi rezou”.
* Conhecido por seus estudos sobre a Bíblia - estudou em Roma e em Jerusalém - Frei Carlos Mesters, Carmelita da Ordem do Carmo, nasceu na Holanda em 1931. Missionário no Brasil desde 1949. Sacerdote desde 1957, doutor em Teologia Bíblica. É um dos principais exegetas bíblicos do método histórico-crítico no Brasil e foi fundador CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (1978). Atualmente reside no Convento do Carmo de Unaí-MG.