*Dom Frei Vital Wilderink, O , Carm. In Memoriam
Uma vocação não passa por cima de uma biografia da qual pode, inclusive, receber determinadas acentuações. O que ela não dispensa é sem uma abertura interrogante para um horizonte ao qual não se sabe dar um nome. É o “espaço” que perpassa a própria história concreta do ser humano, mas não coincide com ela. Certos textos da literatura, especialmente certas poesias, de autores modernos, deixam entrever esse espaço fazendo com que o próprio leitor se sinta atraído por esses textos, não por meras razões estéticas, mas porque reconhece neles algo de si mesmo. São frequentemente determinados acontecimentos ou fatos, para outros talvez insignificantes, cujo impacto desfecha o espaço da auto transcendência que é inerente ao ser humano. Em termos religiosos corresponde ao “Tu nos fizeste para ti, Senhor” de santo Agostinho, embora esta dimensão nem sempre esteja presente de maneira consciente. No entanto, mesmo assim, não deixa de ser uma descoberta elementar do Mistério desta simples presença-a-si-mesmo e do existir-no-mundo.
Mas o homem que na sua história abre o espaço da sua auto transcendência ao Mistério sem nome, deixando aflorar a sua aspiração ontológica a uma plenitude, não tem como exigir a revelação desse Mistério. É como a águia que tem a capacidade de voar muito alto, mas é incapaz de voar acima de si mesma. O chamado de Deus é sempre uma iniciativa gratuita de Deus. Tradicionalmente a teologia sempre faz a distinção entre natural e sobrenatural, e com razão. Mas é uma distinção que afeta o ser humano; certamente não pretende definir o Mistério atuante de Deus. A iniciativa gratuita de Deus em se comunicar, ou seja a graça incriada não é, em si, natural nem sobrenatural: ela é presença do próprio mistério divino. Embora a sua aspiração ontológica a uma plenitude faça o homem estender os braços para uma presença desse Mistério – ainda sem nome -, a revelação dessa presença – um chamado - é sempre nova, inesperada. É sempre um início que dá sentido ao tempo, fazendo nele acontecer a história de uma vocação.
A busca do homem e a oferta gratuita de Deus encarnaram-se em Jesus Cristo. É por Ele, com Ele e n’Ele que a nossa vocação transcorre no tempo e no espaço para testemunhar essa Boa Nova da presença da graça de Deus revelada na glória humana de Jesus na história. Vocação é para fazer ver Jesus Cristo, ela é uma cristofania. É claro que ao falar de uma cristofania, não podemos deixar de considerar o mundo em que estamos inseridos. Não existe uma língua universal para a vocação O que há de único e universal nela é a caridade.
Como discernir o chamado de Deus onde o humano e o divino parecem mesclar-se? Normalmente deve ser feito um discernimento para ver se trata realmente de um chamado de Deus, levando em atenta consideração os impulsos e motivações que induzem alguém a determinadas opções. Ou, em sentido inverso, se não há uma inércia que impede de deixar-nos levar pelo Espírito. É conhecido o itinerário de discernimento que Inácio de Loyola traçou nos seus Exercícios espirituais. Um dos critérios mais destacados para discernir que uma opção é feita para maior glória de Deus, e quando a pessoa experimenta uma profunda consolação cuja causa não sabe explicar. Outro critério: vocação sem abertura aos outros é um contra-senso. Mas é bom lembrar que o caminho de encontro e relação com o mundo, não é um só. No discernimento vocacional deve-se levar em séria consideração o seu caráter eclesial. A Igreja, ela mesma, é Mistério como professamos no símbolo da nossa fé: creio na Igreja. O que não impede que ela possa ser uma provação. Quanto mais misturado com o concreto da história, tanto mais difícil torna-se uma opção vocacional. Os mistérios da Divindade encontram-se, de certa maneira, mais distantes e, por isso, perturbam menos, embora não seja tão raro alguém dizer que Deus às vezes desconcerta. O mistérios do Verbo encarnado já são mais difíceis a crer. Haja visto as inúmeras publicações que nos últimos anos tentam reduzir o paradoxo fundamental da fé cristã que é o mistério da encarnação. O que dizer então da fé referente a uma Igreja em que o divino e o humano não somente existem unidos, mas onde o divino nos é oferecido através de situações humanas negativas? Certo é que a Igreja jamais poderá aplicar a ela mesma as palavras de Jesus que ela anuncia: “Quem de vós pode acusar-me de pecado” (Jo 8,46). Insistindo no caráter eclesial da vocação, não pretendemos voltar à dicotomia entre sagrado e profano, dicotomia de uma visão da Igreja voltada unilateralmente ad intra. A Igreja é sacramento da auto comunicação de Deus. Quando se fala do sacramento da Igreja, geralmente se pensa nos sete sacramentos. O mysterion do Novo Testamento é mais vasto e profundo que o sacramento latino. Os Padres gregos, quando falam da Igreja, eles se referem ao divino mistério do cosmos. A visão deles é que Deus criou o mundo para a Igreja, para deificar, divinizar sua criação, fazendo-a tornar seu próprio corpo cuja cabeça é Jesus Cristo e nós, os seres humanos, o resto do corpo. Esta visão já reaparece um pouco nos documentos do Concílio Vaticano II, e permite colocar a vocação eclesial em outra perspectiva.
*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita- foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.