Frei Bruno Secondin, O. Carm.
"Uma coisa é perceber uma renovação da espiritualidade, outra coisa é poder definir os seus contornos. É certamente mais fácil tecer a história da Espiritualidade do que esboçar a sua perspectiva. Uma das razões disto está na dificuldade de discernir as tendências do momento, que não passam de sopro de um instante, e as tendências de fundo, que a longo prazo estruturam a vida espiritual das novas gerações. Na espiritualidade há formas, fenômenos superficiais, que se concretizam em "slogans", em frases-chaves, em livros de sucesso, para com os quais a frieza pode também ser radical depois de alguns anos de enfatuação e interesses agudos. Estas metamorfoses não são certamente sem significado para a espiritualidade de uma época, mas, se interessam à história futura, complicam a pastoral imediata" (A.M.Besnard).
Abrimos com esta frase de um perito prematuramente desaparecido. Indica-nos logo como seja difícil colher os elementos de importância e essenciais no interior de uma história que passa ligeiro, onde desmanchamos as coordenadas culturais e confundimos as mudanças simples de situações e de mentalidade, julgando-as sinais de fortes novidades. Vivemos num mundo que muitos já cha-mam de vítima da pós-modernidade, porque submetido a um excesso de vitalismo e de "experiências" consumadas à pressa, sem raízes nem profundidade. Isso poderia ser também propício a uma recuperação de valores "outros", fora do domínio pan-econômico e das leis de eficiência e racionalidade. Valores alternativos como a gratuidade, a festa, a interioridade, a sobriedade, a contempla-ção, a própria mística, parecem mais desejáveis hoje do que no passado e numa escala mais ampla, até mesmo fora das próprias tradições religiosas.
Se existe uma função urgente e própria para a espiritualidade hoje, direi que é a de um "saber orientador", de uma sabe-doria de vida e de esperanças, no contexto de situações complexas e ambíguas. a espiritualidade conhece entre os seus elementos primordiais e inspiradores, a peregrinatio, a itinerância, o êxodo contínuo, não somente interior, mas também exterior. Através de tal experiência entrava-se numa relação nova com a natureza e as pessoas, aprendia-se o valor e a beleza da criação, as diversidades das estações e das moradas humanas, os ritmos da vi-da e da luz, mas sobretudo a pessoa tornava-se ela mesma, movendo-se, realizava-se no mover-se, no trocar de horizontes e encontros, numa provisoriedade, que assinalava os valores permanentes e dava saliência à meta, para onde se tendia.
Deveríamos revalorizar esta tradição itinerante, não só como valor pessoal, ascético e de desprendimento, mas como proposta cultural, como nova fraternidade com as pessoas e com a terra, como diálogo maravilhado e contemplativo com a natureza. Não obstante a "grande mobilidade atual, de fato temos perdido este va-lor vital, carregado de mediações cósmicas e naturais, pois esta-mos expatriados, não porém a caminho; sobretudo não aparece a amplidão do quærere Deum veritatis, que caracterizou séculos de espiritualidade.
O novo espiritualismo
Queremos, enfim, dizer uma palavra sobre o novo espiritualismo emergente nestes últimos tempos. Neste caso também não podemos estender-nos além da simples esquematização e alguns rápidos acenos.
Assistimos, como todos com facilidade podemos verificar, a um crescente interesse pela espiritualidade. Espera-se muito desta sabedoria de vida, e no mercado editorial há abundância de colunas e dicionários, introduções e ajornamentos. Pessoalmente eu não seria assim tão entusiasta, porque parece-me que se esteja verificando o estado típico de uma moda, que leva ao puro consumo e transforma uma exigência vital autêntica em mera compensação para os dissabores escondidos e remotos da alma.
Contrariamente ao que aconteceu há algum decênio, a mística também está conhecendo alguma revalorização. E até podemos falar de neo-mística, porquanto temos experiências de "imediatismos" novos do divino, através, por exemplo, da luta pela libertação, da participação nas tragédias obscuras dos povos
- pensemos no holocausto -, da experiência de não-violência, do diálogo inter-religioso, da preocupação ecológica e cósmica. São novos traços, de indivíduos e talvez coletivos também, que merecem aprofundamento. Eu apresentaria a força profética e libertadora da experiência religiosa, que se vive nas CEBs da América Latina. É convicção minha que desta maneira se estão alcançando as alturas da "mística", embora que por novas estradas se compararmos com as categorias clássicas, que eram mais individualistas e nos séculos recentes demasiado restritas somente ao itinerário pelo campo da oração mental.
De muita moda há alguns anos atrás, mas interessante ainda é o fascínio do Oriente, com a sua sabedoria e capacidade de harmonia entre o corpo, a alma, o ambiente e o sentido da transcendência. Uma valorização objetiva deve prestar atenção aos sintomas de interesse de sinal exotérico e à busca de uma nova "gnósis". Nem se deve deixar passar que efetivamente temos necessidade cultural de explorar os caminhos para a globalidade e para a harmonia.É certo que é precisamente do Oriente que nos chegam os comprovados e interessantes itinerários para tal globalidade.
E no momento apresenta-se o fenômeno da Nova Era (New Age); é um fenômeno complexo de neognose popular e pós-moderna, uma forma de religiosidade desvanecente e sincretista, que funde juntamente tradições, religiões, culturas diferentes, e enumera entre os seus pais cientistas como Frijof Capra e Gregory Bateson. Poderíamos chamá-la de religião epistemológica, capaz de exprimir a sua própria concepção do mundo, utilizando tanto o registro da mística católica ou ortodoxa, mas também o da alternativa e exotérica, quanto o da racionalização do mundo. Não se trata de uma religião organizada, antes, as formas organizadas e as fórmulas dogmáticas são rejeitadas em favor de uma nova espiritualidade, que transcenda os limites religiosos e culturais, para fazer nascer uma nova consciência universal. Vai aqui um texto: "As crises da nossa época forçam as religiões do mundo a liberar uma nova forma espiritual, que há de transcender qualquer limite religioso, cultural e nacional, para fomentar uma nova consciência de unidade da comunidade humana e o nascimento de uma dinâmica espiritual, que permita encontrar uma solução para os problemas mundiais. Afirmamos a necessidade de uma nova espiritualidade despojada de todo ilhamento e orientada para o nascimento de uma consciência planetária".
Na base desta nova espiritualidade colocam o contacto direto com o divino; justamente esta experiência direta, este acesso à dimensão mística e a expectativa de uma consciência cósmica, pacífica e unificadora são as suas formas mais claras. A transformação da consciência pessoal (com a chegada da era do Aquário) despertará capacidades místicas não conhecidas ou sufocadas pelas religiões tradicionais.
Em todo caso está muito difundida a necessidade do divino "experimentável" de modo imediato e tranqüilizador. Sob formas variadas podemos sempre encontrá-la: populares, irracionais, gnósticas, demoníacas, visionárias. É toda uma floração de tendências e de mestres, de santuários e de correntes; donde se mostra evidente a urgência de um discernimento inculturado, que não pode ser feito sem uma formação teológica específica do crente na seriedade e na circunspeção crítica. A gula pelo "divino" imediatamente disponível denuncia o mal estar do homem tecnopolitano, violentamente expropriado de muitos elementos afetivos e emotivos. Devemos não confundir o esbanjamento de sensações com a verdadeira experiência de Deus, que é também acompanhada por escuridão e pela pobreza de emoções. Ao invés, as experiências coletivas e traumáticas vividas neste século na Europa ou em outras partes, como o holocausto, os genocídios, o totalitarismo, vieram demonstrando novos sentidos de percurso à experiência de Deus em condições de total escuridão espiritual e de uma nova barbárie.
Recordemos, enfim, os novos movimentos eclesiais. Devem certamente ser interpretados como laboratórios de novas formas de espiritualidade, mas infelizmente tornam-se às vezes promotores de certos tipos de "mística", como aquela sob o efeito de algum álcool, isto é, desempenhada num exílio da história, colocando assim a necessidade de experiência espiritual em curto-circuito, devido a respostas imediatas e absolutas, mesmo fundamentalistas e privadas de espessura histórica e numa fuga da fadiga de procurar a Deus nos claro-escuros da história e nas falências mais do que nas vertigens visionárias.
Outros elementos agora deverão ser ao menos elencados, como provas do avanço do espiritualismo: por isso aceno à volta da oração silenciosa, contemplativa, ecológica, simbólica, corporal, às vezes sincretistas, talvez; aceno também ao avanço da lectio divina, que passa da escola de oração à prática popular (como está acontecendo na América Latina), ou ao percurso de evangelização inculturada, no qual é preciso saber distinguir a tentação para uns poucos a um comportamento de puro arqueologismo e a promoção de um autêntico "homem novo". plasmado pela Palavra Viva e pelo Deus Vivo.
E sempre neste âmbito da oração mostrar-me-ia um pouco preocupado com a atual aridez quanto à criatividade litúrgica; tem-se a impressão de que a gente se encontre de novo muito mais comodamente se for em torno de um formalismo ritual, repetitivo, empobrecido e apagado. A criatividade selvagem dos inícios do pós-concílio talvez não foi sempre digna de louvor nem ortodoxa, mas a atual tendência ao ritualismo estandardizado e burocrático, sem dúvida, não promete nada de bom. Daí a espiritualidade não tirará a não ser desgostos e ressequimento.
Não se torna fácil explicar como viver "espiritualmente" o desvio entre tempo vivido, que é lento e polimorfo, e tempo refigurado, que se mostra sempre mais acelerado e fugaz. Muito menos sabemos como conciliar a tensão entre espaço e tempo tão aproximados pelos novos meios de comunicação e transporte e que ultrapassam a nossa capacidade de os assimilar e viver com integridade, como também a necessidade de "jazidas" culturais, isto é, de memórias, de narrações, de gradualidade e carga moral. As convicções humanas de conhecimento não bastam: exigem-se recursos morais muito mais consistentes, mas esses no momento não são muito evidentes, porque o progresso técnico-científico parece não saber poupar-nos resultados desumanizantes.
Julgo sugestiva uma idéia do célebre A.Chouraqui, conhecido judeu, tradutor original da Bíblia em linguagem corrente. Escreve ele que é necessário "redimir Babel, se é que desejamos oferecer uma possibilidade de sobrevivência ao planeta Terra". Segundo ele a nossa situação de linguagens que se anulam umas às outras é devida à falta de silêncio, ao envenenamento por meio de palavras e jogo de palavras vazios, que impedem que se entre em diálogo profundo. "O homem novo, nos limiares do terceiro milênio, deverá libertar-se da escravidão às palavras e ao fascínio de Babel, para reconstruir a cidade dos homens sobre uma terra finalmente reconciliada".
Alguém falou sobre a "caverna" de Platão, no fundo da qual o homem vê como projetadas as realidades "hiperurânicas" (supracelestes), que são as fundamentais, mas sem poder conhecê-las diretamente na sua realidade e muito menos vivê-las. Estamos, na verdade, numa época de representações indiretas, de vida mediata e refletida por palavras e imagens, que substituem a existência real. Até mesmo a experiência do crer, do ser "igreja", isto é, "convocação", corre o perigo de tornar-se um processo de mediação. Somos cidadãos e crentes via cabos submarinos: no lugar da comunicação pessoal e personalizadora, estamos em contacto simulado através de um tubo catódico ou de uma rede de fibras óticas ou por um rio de documentos e discursos.
E além do mais estamos todos juntos envolvidos no consumo "ritual" da mídia de toda qualidade, sem que reste dentro de nós senão um vago fragmento, alguma tira de artigo, algum flash de alguma imagem, alguma bomba enlouquecida de emoções e medos. Estamos não só atacados pelos flancos, mas ainda plagiados e manipulados, substituídos nos significados e opções por plausibilidades convencionais, pelo jogo de espelhos simuladores: um verdadeiro excesso de ficção.