Dom Milton Kenan, Bispo da Diocese de Barretos, São Paulo. 

 

         Santa Teresa do Menino Jesus foi desde sua infância uma jovem fascinada pelos padres. Ela os amara com um amor extraordinário. Trata-se de uma compreensão do sacerdócio que evolui, com o passar do tempo.

          Na sua infância Teresa convive com um círculo restrito de padres, quando os encontros são ocasionais e com uma certa distância. Na sua adolescência, a partir da peregrinação que faz na companhia de seu pai Luís Martin e Celina à Roma, Teresa tem a oportunidade de conviver com um grupo de setenta e cinco padres; que lhe permite mudar o seu conceito e ver uma transformação no relacionamento com eles. Finalmente, nos últimos anos de sua vida, através das correspondências com o seminarista Bellière e o neo-sacerdote Roulland, Teresa tem a possibilidade de estabelecer com eles uma verdadeira fraternidade e maternidade espirituais.

             Um dos textos mais sugestivos de Teresa no que diz respeito a sua relação com os padres nós o encontramos na descrição que faz da peregrinação á Roma, por ocasião do Jubileu de Ouro Sacerdotal do Papa Leão XIII (7/11-2/12/1887): “A segunda experiência que eu fiz diz respeito aos padres. Não havendo jamais vivido na intimidade deles, eu não podia compreender a finalidade principal da reforma do Carmelo. Rezar pelos pecadores me encantava, mas rezar pelas almas dos padres, que eu acreditava mais puras que o cristal, me parecia espantoso!...Ah! eu compreendi minha vocação na Itália, não foi preciso procurar muito longe um conhecimento tão útil...Durante um mês eu vivi com muitos santos padres e eu vi que, se a sublime dignidade deles os eleva acima dos anjos, eles não deixam de ser por isso homens fracos e frágeis...Se os santos padres que Jesus chama no seu Evangelho: “o sal da terra” mostram em sua conduta que têm uma extrema necessidade de orações, que dizer então dos que são tíbios? Jesus não disse ainda: “Se o sal perder o seu valor, como recuperará o seu sabor? Oh minha Mãe! Como é bela a vocação que tem por finalidade de conservar o sal destinado às almas! Esta é a vocação do Carmelo, porque o único fim de nossas orações e de nossos sacrifícios é de ser apóstola dos apóstolos, rezando por eles enquanto evangelizam as almas pelas suas palavras e sobretudo pelos seus exemplos...Preciso me deter se eu continuo falando sobre isso não terminaria jamais!....” (A, 56r-56v).

        Teresa reafirma a sublime dignidade dos sacerdotes, honrados por Deus mais do que todos os homens, mais do que os próprios anjos, enquanto descobre que são ao mesmo tempo homens fracos, frágeis que têm tanta necessidade da sua oração. Esta descoberta não a escandaliza, não diminui a fé no sacerdócio, nem o seu amor pelos sacerdotes. Ao contrário, é uma graça, um crescimento no amor, num amor mais maduro, mais realista, amor de mãe pelos filhos fracos e frágeis. Assim, a partir deste momento, Teresa se empenhará até o fim pela santificação dos sacerdotes, na grande perspectiva da Missão da Igreja pela salvação de todos os homens. A sua mensagem aos sacerdotes será uma palavra de amor e de santidade: sempre o ensinamento do Amor de Jesus. Teresa é consciente de ser como a Madalena apostolorum apostola. (Léthel, L´amore de Cristo centro dela Vita Sacerdotale, in La prospectiva de alcuni Santi, p. 5).

         Seu amor pelos padres e a oração por eles são temas constantes em sua correspondência com Celina, até sua entrada no Carmelo (cf. Cartas 94, 96, 101, 108, 122).

        Acompanhando o relato do Manuscrito C, chegamos ao ponto de poder acompanhar Teresa no relacionamento com seus “irmãos espirituais” Maurice Bellière e Adolphe Roulland.

        Teresa diz que um dos seus grandes desejos era ter a graça de ter um irmão sacerdote que pudesse subir o altar que pudesse pensar todos os dias nela no santo altar (C 31v). O que parecia impossível, uma vez que seus irmãozinhos morreram precocemente, Deus os realiza concedendo unir os laços de sua alma a dois de seus apóstolos que se tornaram seus irmãos (ibid.).

          As palavras com que Teresa descreve a realização do seu sonho são de uma intensidade extraordinária: “Foi nossa Sta. Mãe Teresa que me enviou para ramalhete de festa em 1895 meu primeiro irmãozinho. Eu estava na lavandeira bem ocupada com o meu trabalho quando madre Inês de Jesus me tomando à parte leu-me uma carta que acabara de receber. Era um jovem seminarista, inspirado, dizia ele, por Sta. Teresa, que vinha pedir uma irmã que se dedicasse especialmente à salvação de sua alma e o ajudasse com suas orações e sacrifícios quando ele fosse missionário a fim de que pudesse salvar muitas almas. Prometia ter sempre uma lembrança por aquela que se tornasse sua irmã, quando pudesse oferecer o Santo Sacrifício. Madre Inês de Jesus me disse que queria que fosse eu a me tornar a irmã desse futuro missionário. Madre, dizer-vos minha felicidade seria impossível, meu desejo cumulado de maneira inesperada fez nasce r no meu coração uma alegria que chamarei infantil, pois preciso remontar aos dias de minha infância para a encontrar a lembrança dessas alegrias tão vivas que a alma é pequena demais para conte-las, nunca desde anos eu tinha provado esse gênero de felicidade. Sentia que desse lado minha alma era nova, era como se pela primeira vez se tivesse tocado cordas musicais que até então estavam no esquecimento” (C31v-32r).       

            Teresa emprega por Bellière, e posteriormente, por Roulland todas as suas energias espirituais, “doravante, Teresa, irmão espiritual do futuro sacerdote, rezará, amará, sofrerá por dois, não aumentando o volume de sua oração e de sua atividade, mas crescendo no fervor do amor que é o único capaz de dar um valor maior aos sofrimentos e ás obras”.

            O ápice da “prova da fé” que se consumará com sua morte, Teresa diz que não tendo o gozo da fé, esforça-se por realizar ao menos as suas obras. Entre as obras realizadas por Teresa, na maior escuridão interior, está a de socorrer seu “irmãozinho”, oferecendo por ele o sofrimento psíquico, a obscuridade da fé, que se tornam para ela fonte de apostolado escondido.

         A “grande” prova que Teresa enfrenta será o silencio de Bellière: “É preciso reconhecer que primeiro não tive consolações para estimular meu zelo; depois de ter escrito uma carta encantadora cheia de coração e de nobres sentimentos para agradecer a madre Inês de Jesus, meu irmãozinho não deu mais sinal de vida senão no mês de julho seguinte, exceto que enviou sua carta no mês de novembro para dizer que entrava na caserna” (C 32r).

            De novembro de 1896 a agosto de 1897, Teresa manterá uma correspondência frequente com Bellière (algo excepcional na vida de uma carmelita no final do século passado). Jamais perde de vista o fim daquela união: “Eu lhe peço que sejais, não somente um bom missionário, mas um santo todo abrasado do amor de Deus e das almas” (Carta 198); “Ah! O que nós lhe pedimos (a Jesus), é de trabalhar por sua glória, é de amá-lo e faze-lo amado” (Carta 220); “Querido irmãozinho, no momento de comparecer diante do bom Deus, eu compreendo mais do que nunca que não há senão uma coisa necessária, é de trabalhar unicamente por Ele e de nada fazer por si e pelas criaturas” (Carta 244).

          Como se não bastasse um irmãozinho para satisfazer seus desejos e cumula-la de tão grande alegria, a Providência divina destina-lhe um segundo irmão: o jovem missionário Pe. Adolphe Roulland. Sob o sigilo da obediência, Teresa atende agora ao pedido de Madre Maria de Gonzaga, e acolhe o jovem missionário Roulland como seu novo irmão espiritual:

         “No ano passado, no fim do mês de maio, lembro-me que um dia mandastes chamar-me diante do refeitório. O meu coração batia bem forte quando cheguei até vós, Madre querida, perguntava-me o que podíeis ter a me dizer, pois era a primeira vez que me mandáveis chamar assim. Depois de ter-me dito para sentar-me, eis a proposta que me fizestes: - Quereis encarregar-vos dos interesses espirituais de um missionário que deverá ser ordenado padre e partir proximamente e depois, Madre, lestes a carta desse jovem Padre a fim de que eu soubesseexatamente o que ele pedia. Meu primeiro sentimento foi um sentimento de alegria, que deu logo lugar ao temor. Eu vos expliquei, Madre bem-amada, que tendo já oferecido meus pobres méritos para um futuro apóstolo, acreditava não poder fazê-lo ainda nas intenções de outro e que, aliás, havia muitas irmãs melhores do que eu que poderiam responder ao seu desejo. Todas as minhas objeções foram inúteis, vós me respondestes que se podia ter vários irmãos. Então vos perguntei se a obediência não poderia dobrar seus méritos. Vós me respondestes que sim, dizendo-me várias coisas que me faziam ver que eu precisava aceitar sem escrúpulo um novo irmão” (C 33r-33v).

          Ao escolher Teresa como “irmã espiritual” do jovem missionário Roulland, a Madre Maria de Gonzaga revela uma particular estima da Priora em relação à jovem Carmelita. Dirá de viva voz ao Pe. Roulland: “É a melhor entre minhas boas”; e lhe escreverá: “Vós tendes uma auxiliar muito fervorosa, a pequena querida é toda de Deus”.

          Madre Maria de Gonzaga não só aprecia o valor religioso de Teresa, mas sua verdadeira vocação missionária, confirmando o que Teresa já havia escrito: “É preciso, vós me havíeis dito, para viver nos Carmelos estrangeiros uma vocação toda especial; muitas almas acreditam-se chamadas para isso sem sê-lo de fato.  Vós me disseste também que eu tinha esta vocação e que unicamente minha saúde foi um obstáculo (C 10rº). Maria de Gonzaga quis dar à Teresa a alegria de realizar, ao menos em parte, sua vocação trabalhando com um Missionário.

         Escrevendo a Roulland, Teresa revela a consciência de que os laços que os unem é o da oração e da mortificação (Carta 189), de que jesus se dignou uni-los “pelos laços do apostolado” (Carta 193), de que a sua “única arma é o amor e o sofrimento”; enquanto que Roulland possui “a espada da palavra e dos trabalhos apostólicos” (Carta 193) e partilhar com ele o seu desejo: “nosso único desejo é de nos assemelhar ao nosso adorável mestre que o mundo não quis reconhecer porque Ele se aniquilou, tomando a forma e a natureza de escravo” (Carta 201).

        Ao contrário do seminarista Bellière que silenciou por vários meses, após o primeiro contato com o Carmelo de Lisieux, Adolphe Roulland proporciona à Teresa grandes alegrias: no dia 28 de junho é ordenado sacerdote; e no dia 3 de julho celebra na capela do Carmelo a sua primeira missa, tendo oportunidade de encontrar-se com Teresa no locutório do convento, onde pode compartilhar com ela, suas expectativas em relação à sua partida próxima para a China (2 de agosto de 1896) e os detalhes do território de missão (Su-Tchen).

      Não só Teresa via satisfeitos os seus desejos de estar unida a “irmãos espirituais” que pudessem realizar por ela o que ela acreditava que o fariam seus irmãos de sangue, caso estivessem vivos; mas Teresa vê realizada nesta escolha a sua vocação:

        ‘No fundo, Madre, eu pensava como vós e até, visto que O zelo de uma carmelita deve abrasar o mundo, espero com a graça de deus ser útil a mais de dois missionários e não poderei esquecer de rezar por todos, sem deixar de lado os simples padres cuja missão às vezes é tão difícil de cumprir como a dos apóstolos que pregam aos infiéis. Enfim quero ser filha da Igreja como era nossa Mãe santa Teresa e rezar nas intenções de nosso Sto. Padre o Papa, sabendo que suas intenções abraçam o universo. Eis a meta geral de minha vida, mas isso não me teria impedido de rezar e de unir-me especialmente às obras de meus anjinhos queridos se tivessem sido padres. Pois bem! Eis como me uni espiritualmente aos apóstolos que Jesus me deu como irmãos: tudo o que me pertence, pertence a cada um deles, sinto bem que Deus é bom demais para fazer divisões, Ele é tão rico que dá sem medida tudo o que lhe peço....Mas não credes, Madre, que me perco em longas enumerações” (C 33v).

        Apóstola com os Apóstolos é em poucas palavras a vocação de Santa Teresa do Menino Jesus. Uma dimensão da sua vocação que não pode passar despercebida à nossa meditação sobre o seu ultimo manuscrito. Junto dela precisamos aprender a fazer nossa as intenções do Papa que alcançam o mundo inteiro e, amar os “simples” padre cuja missão nem sempre é mais fácil do que aqueles que anunciam o Evangelho aos infiéis.

        Nossa meditação sobre os laços que unem Teresa do Menino Jesus aos padres completa-se com a referencia ao Padre Jacinto Loyson (1827-1912). Trata-se de um sacerdote carmelita, ordenado em 1851, que tornara-se célebre por suas pregações durante diversos Adventos em Notre Dame de Paris. Foi Provincial dos Carmelitas Descalços, amigos do Cardeal Newman e de outras pessoas célebres. Em 1869, ele rompeu com a Igreja Católica, justamente alguns anos antes do Concilio Vaticano I. Desposou uma viúva protestante, norte americana, a Sra. Mériman, com quem tivera um filho. Fundou a Igreja do Livre Espírito, cujos princípios eram: o matrimonio dos sacerdotes, uma forte oposição à infabilidade papal, a reinvindicação da missa na língua vernácula e a abolição das classes nos funerais. Ele percorre toda a França fazendo conferencias, provocando escândalos e agitação.

       Desde que tomou conhecimento da situação, em 1891 (quando Loyson fazia suas conferencias na Normandia), através dos recortes do jornal que comentavam as conferencias de Loyson na cidade vizinha de Caen, Teresa se engaja numa oração fervorosa e constante pela sua conversão e convidará Celina para que faça o mesmo.

        É interessante observar que, enquanto a opinião pública católica indignada e as próprias irmãs de Teresa junto da Ordem do Carmelo qualificam Loyson com adjetivos duros; os jornais o chamam de “monge renegado”; Paulina o chama de “infeliz”. Teresa tem expressões bem diferentes: trata-se para ela de um “infeliz pródigo”, “esta pobre ovelha desgarrada”, “nosso irmão, um filho da Santa Virgem” (Carta 129). Ela rezará por ele até a sua morte: “dia virá em que ele abrirá os olhos e então quem sabe se a França não será percorrida por ele com uma finalidade diferente a que se propusera. Não deixemos de rezar, a confiança faz milagres” (Carta 129).

         No dia 19 de agosto de 1897, festa de S. Jacinto, esgotada pela doença, com os nervos à flor da pele, incapaz de suportar a longa cerimonia litúrgica prevista naquela época, Teresa faz a sua última comunhão sobre esta terra, com o pensamento e as orações voltadas para o ex-carmelita Jacinto Loyson.

*Reflexão do Retiro- Na companhia e sob a guia de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.