Dom Milton Kenan, Bispo da Diocese de Barretos, São Paulo. 

Um dos temas que ganha destaque neste último manuscrito de Teresa é o tema da caridade. A este tema, e aos temas correlatos a ele, Teresa dedica nada menos do que dez páginas. Ela escreve quase um “tratado” sobre a Caridade.
“Neste ano, Madre querida, Deus me deu a graça de compreender o que é a caridade...” (C, 11v) – é a forma como Teresa dá início às páginas que dedica à caridade fraterna.

Se acompanharmos a vida de Teresa desde a sua infância, a vida em família, os primeiros anos no Carmelo, vamos nos dar conta de que não lhe faltaram oportunidade para viver a caridade. Na noite de Natal de 1886, noite que ela chama de sua “conversão”, ela descreve nestes termos a graça recebida: “Senti a caridade entrar no meu coração e a necessidade de esquecer-me de mim mesma para dar prazer aos outros” (A, 45v).

Mas, aqui, nestas páginas do seu ultimo manuscrito Teresa confessa que só agora, “neste ano”, “Deus me deu a graça de compreender o que é a caridade”; o que de fato é a caridade. Ela prossegue dizendo: “eu o compreendia antes, é verdade, mas de uma maneira imperfeita”; ou seja, se até agora não faltaram ocasiões para viver a caridade, neste ultimo ano da sua vida, ela descobriu o verdadeiro significado da caridade e as implicações dela na sua vida.

Ela descobriu o significado da caridade a partir do Evangelho: “Não tinha aprofundado esta parábola de Jesus: “O segundo mandamento é SEMELHANTE ao primeiro: Amarás teu próximo como a ti mesmo.” (C, 11v). E aí encontramos a primeira lição: é preciso amar como Jesus amou os seus discípulos. Ouçamo-la: “Eu me aplicava sobretudo a amar a Deus e é amando-o que compreendi que não era preciso que meu amor se traduzisse somente por palavras, pois: “Não são aqueles que dizem Senhor, Senhor! Que entrarão no reino dos Céus, mas aqueles que fazem a vontade de Deus”. Essa vontade, Jesus deu a conhecer várias vezes, eu deveria dizer quase em cada página do seu Evangelho, mas na última ceia, quando sabe que o coração de seus discípulos queimam com um mais ardente amor por Ele que acaba de dar-se a eles no inefável mistério de sua Eucaristia, esse manso Salvador quer dar-lhes ‘um mandamento novo. Diz a eles com inexprimível ternura: Eu vos faço um mandamento novo, é de vos amardes entre vós, e que COMO EU VOS AMEI, AMAI-VOS UNS AOS OUTROS. A marca pela qual todo o mundo conhecerá que sois meus discípulos, é se vos amardes entre vós”. [Jo 13,34-35]

Até aqui Teresa nada mais faz do que repetir o Evangelho. Ela copia trechos dos Evangelhos que dizem respeito à caridade fraterna. Mas, no parágrafo seguinte, Teresa dá um salto que nos surpreende. Não se trata de conhecer o princípio, o mandamento; mas as razões e o modo que este amor assume na vida de Jesus: “Como Jesus amou seus discípulos e por que os amou? Ah! Não eram suas qualidades naturais que podiam atraí-lo, havia entre eles e Ele uma distância infinita. Ele era a ciência, a Sabedoria Eterna, eles eram pobres pecadores ignorantes e cheios de pensamentos terrestres. Entretanto Jesus os chama ‘seus amigos, seus irmãos’. Quer vê-los reinar com Ele no reino de seu Pai e para abrir-lhes esse reino quer morrer numa cruz pois Ele disse: ‘Não há maior amor que dar sua vida por aqueles que se ama’.” (C, 12r)

E a conclusão é extraordinária: “Madre bem-amada, ao meditar essas palavras de Jesus, compreendi quanto meu amor por minhas irmãs era imperfeito, vi que não as amava como Deus as ama. Ah! Compreendo agora que a caridade perfeita consiste em suportar os defeitos dos outros, em não se espantar com sua fraqueza, em edificar-se com os menores atos de virtudes que se vê sendo praticados, mas sobretudo compreendo que a caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração: Ninguém, disse Jesus, acende uma lamparina para pô-la debaixo do alqueire, mas se põe no candelabro, a fim de que ilumine TODOS os que estão na casa. Parece-me que a lamparina representa a caridade que deve iluminar, alegrar, não somente os que me são os mais caros, mas TODOS os que estão na casa, sem excetuar ninguém”. (C, 12r) [Universalidade da caridade. Conferir com Santa Tersa, Caminho de perfeição 4 e a luta contra os particularismos e os exclusivismos na fraternidade de saõ José d’Ávila.]

É importante notar que, no seu primeiro manuscrito, Teresa usa somente uma vez a palavra “caridade” (A 45v). Na Carta que escreveu a Ir. Maria do Sagrado Coração, usa duas vezes, no sentido de amor a Deus. Desta vez, neste ultimo manuscrito, a palavra “caridade” ocorre vinte e seis vezes, sempre no sentido de amor ao próximo, e a palavra “caridoso” aparece quatro vezes.

Em junho de 1897, Teresa dissera a Madre Inês sobre a importância da caridade com uma formula lapidar: “A caridade fraterna é tudo sobre a terra. Ama-se a Deus na medida que se a pratica.”

É de se observar também que para Teresa não é suficiente amar o próximo como a nós mesmos, conforme o mandamento do Levítico, mas como o próprio Jesus os ama, tanto quanto Ele os ama.

Teresa já havia compreendido que Deus ama os seus filhos apesar das suas misérias. É sobre esta certeza que ela apoia a sua confiança audaz. Como já observamos anteriormente, Teresa tem a convicção de que é próprio do amor abaixar-se (cf. A 2v, B, 3v).Mas agora a impressiona o fato de que a Sabedoria Eterna se interesse por pobres criaturas como eram os seus discípulos.

Um ulterior passo na compreensão da caridade é extraordinariamente belo: Teresa compreende que se é preciso amar ao próximo como Jesus o ama, trat-ase então de deixar que Ele ame através dela: (nEle e com Ele, o mandamento do amor, se torna interior) “Ah! Senhor, sei que não mandais nada impossível, conheceis melhor do que eu minha fraqueza, minha imperfeição, sabeis bem que eu nunca poderia amar minhas irmãs como vós as amais, se vós mesmo, ó meu Jesus, não as amásseis ainda em mim. É porque queríeis conceder-me esta graça que fizestes um mandamento novo. – Oh! Como o amo visto que me dá a certeza de que a vossa vontade é de amar em mim todos aqueles que vós me mandais amar!...Sim eu sinto quando sou caridosa, é Jesus só que age em mim; quanto mais estou unida a Ele, mais também amo todas as minhas irmãs. Quando quero aumentar em mim esse amor, quando sobretudo o demônio tenta colocar-me diante dos olho s da alma os defeitos de tal ou tal irmã que me é menos simpática, apresso-me em procurar suas virtudes, seus bons desejos, eu me digo que se a vi cair uma vez ela talvez tenha conseguido um grande número de vitórias que ela esconde por humildade, que mesmo aquilo que me parece uma falta pode muito bem ser por causa da intenção um amo de virtude.” (C, 12v-13r)

Teresa não fala da graça que a fez compreender melhor o preceito da caridade fraterna. Parece, porém, que ajudando na rouparia a Irmã Maria de São José, uma religiosa neurastênica que não tinha nada de particularmente atraente, Teresa fora conduzida a descobrir as exigências evangélicas da caridade.

Quando fala da caridade que “não devia consistir nos sentimentos, mas nas obras” (C, 14r), Teresa menciona (sem identificar) o caso da Ir. Teresa de Santo Agostinho “que tem o talento de me desagradar em todas as coisas, suas maneiras, suas palavras, seu caráter me pareciam muito desagradáveis...” Teresa diz que “apliquei-me a fazer por essa irmã o que teria feito para a pessoa que mais amo.” [...] “Não me contentava em rezar muito pela irmã que me dava tantos combates, procurava prestar-lhe todos os serviços possíveis e quando tinha a tentação de lhe responder de uma maneira desagradável, contentava-me em lhe dar meu mais amável sorriso e procurava desviar a conversa, pois na Imitação se diz: Mais vale deixar cada um no seu sentimento que deter-se a contestar.”

Os muitos gestos de gentileza para com a Ir. Teresa de S. Agostinho aos poucos vão produzindo seu efeito: “Um dia na recreação, ela me disse mais ou menos estas palavras com um ar muito contente: ‘Poderíeis dizer-me, Ir. Teresa do Menino Jesus, o que vos atrai tanto para mim, a cada vez que me olhais, vos vejo sorrir?” A resposta de Teresa é surpreendente: “Ah! O que me atraía, era Jesus escondido no fundo de sua alma...Jesus que torna doce o que há de mais amargo...” (C, 14r).

A esta altura do “discurso” de Teresa sobre a caridade fraterna, encontramo-nos diante de uma das páginas mais bonitas da sua “exegese evangélica”: “No Evangelho, o Senhor explica em que consiste: seu mandamento novo. Ele diz em S. Mateus: “Ouvistes o que ele disse: Amareis vosso amigo e odiareis vosso inimigo. Por mim, eu vos digo: amai vossos inimigos, rezai pelos que vos perseguem”. Sem dúvida, no Carmelo não se encontram inimigos, mas enfim há simpatias, a gente se sente atraída por tal irmã ao passo que tal outra vos faria fazer um longo desvio para evitar encontra-la, assim sem mesmo o saber ela se torna um objeto de perseguição. Pois bem! Jesus me diz que é preciso amar essa irmã, que é preciso rezar por ela, mesmo quando seu comportamento me levasse a crer que ela não me ama: “Se amais aqueles que vos amam, que merecime nto teríeis? Porque os pecadores amam também os que os amam”. S. Lucas VI. [Lc 6,32] E não é bastante amar, é preciso prova-lo. A gente é naturalmente feliz por fazer um presente a um amigo, ama sobretudo fazer surpresas, mas isso não é caridade pois os pecadores o fazem também. Eis o que Jesus me ensina ainda: “Dai a quem quer que vos pede; e se tomar o que vos pertence, não o pedi de volta”. [Lc 6,30] (C, 15v).

Os anos vividos no interior de uma comunidade “difícil”, onde havia tantos temperamentos quanto as “faces”, onde o nível da cultura e da formação era tão diferente, onde não faltavam animosidades e antipatias, levaram Teresa a escrever partindo daquilo que observava e ao mesmo tempo sentia na própria pele: “Dar a todas aquelas que pedem, é menos agradável que oferecer a si mesmo pelo movimento de seu coração; ainda quando se pede gentilmente, não custa dar, mas se por infelicidade não se usam palavras bastante delicadas, imediatamente a alma se revolta se não está firmada na caridade. Ela encontra mil razões pare recusar o que se lhe pede e é só depois de ter convencido a pedinte de sua indelicadeza que lhe dá enfim por graça o que ela reclama, ou que ela lhe presta um leve serviço que teria exigido vinte vezes menos tempo para realizar do que foi preciso para fazer valer seus direitos imaginários.” (C 15v-16r)

Na sua interpretação dos fatos, agora à luz da nova compreensão que tem da caridade, Teresa declara: “Eu dizia: Jesus não quer que eu reclame o que me pertence; isso deveria parecer-me fácil e natural visto que nada é meu. Renunciei aos bens da terra pelo voto de pobreza, portanto não devo ter o direito de queixar-me se tiram uma coisa que não me pertence, devo ao contrário alegrar-me quando me acontece sentir a pobreza.” (C, 16r)
A titulo de exemplo: “ Outrora me parecia que eu não me atinha a nada, mas desde que compreendi as palavras de Jesus, vejo que nas ocasiões sou bem imperfeita. Por exemplo no emprego de pintura nada é meu, sei bem disso, mas ao pôr-me à obra encontro pincéis e tintas tudo em desordem, se uma régua ou um canivete desapareceram, a paciência está bem perto de me abandonar e devo tomar minha coragem com as duas mãos para não reclamar com amargura os objetos que me faltam. É preciso muitas vezes pedir as coisas indispensáveis, mas ao fazê-lo com humildade não se falta ao mandamento de Jesus, ao contrário, se age como os pobres que estendem a mão a fim de receber o que lhes é necessário: se são repelidos eles não se espantam, ninguém lhes deve nada...Não há alegria comparável àquela que o verdadeiro pobre de espírito prova.” (C, 16v)
Para completar seu raciocínio, Teresa ainda fala do significado do “Abandonai até vosso manto àquele que quer processar-vos para ter vossa túnica.....” [Mt 5,40] “Abandonar o seu manto é, parece-me renunciar aos seus últimos direitos, é considerar-se como a serva, a escrava das outras. Quando se larga o manto, é mais fácil andar, correr, por isso jesus acrescenta: E seja quem for que vos forçar a dar mil passos, dai dos mil a mais com ele. Assim não é bastante dar a quem quer que me pedir, é preciso ir na frente dos desejos, ter o ar de muito obrigado e muito honrada de prestar serviço e se for tomada uma coisa para meu uso, não devo ter o ar de lamentá-la, mas ao contrário parecer feliz por estar desembaraçada dela.” (C 16r-17v) Duas são, portanto, as condições para que a caridade possa estabelecer sua morada no coração das pessoas e no interior da comunidade: desprendimento e serviço. Nas palavras de Teresa ambas uma vez compreendidas e vividas geram liberdade e paz naqueles e naquelas que as praticam.

Para finalizar seu “discurso”, Teresa confessa á Madre Maria de Gonzaga: “Não vos falei ainda senão do exterior, agora queria confiar-vos como compreendo a caridade puramente espiritual...” (C, 18r) Vejamos então do que se trata da “caridade puramente espiritual”:
“Nem sempre é possível, no Carmelo, praticar ao pé da legra as palavras do Evangelho, às vezes se é obrigado por causa dos empregos a recusar um serviço, mas quando a caridade deitou profundas raízes na alma, ela se mostra no exterior. Há uma maneira tão graciosa de recusar o que não se pode dar, que a recusa causa tanto prazer como o dom. É verdade que a gente se incomoda menos de reclamar um serviço a uma irmã sempre disposta a servir, no entanto Jesus disse: “Não eviteis aquele que quer tomar emprestado de vós”. Assim sob pretexto de que a gente seria forçada a recusar, não se deve afastar-se das irmãs que têm o costume de sempre pedir serviços. Não se deve tampouco ser serviçal a fim de o parecer ou não esperança que numa outra vez a irmã a quem se serve vos prestará serviço por sua vez, pois Nosso Senhor disse ainda: “Se emprestardes àqueles a quem esperais receber alguma coisa, que merecimento tereis?: pois os próprios pecadores emprestam aos pecadores a fim de receber o mesmo tanto. Mas para vós, fazei o bem, emprestai sem nada esperar, e vossa recompensa será grande” [Lc 6,34-35]. Oh! Sim a recompensa é grande, mesmo na terra...nessa via só primeiro passo custa. Emprestar sem nada esperar, isso parece duro à natureza: seria preferível dar, pois uma coisa dada não pertence mais.” (C, 18r)

E isso não se trata apenas dos objetos e favores, mas também das luzes, dos pensamentos profundos e impulsos do coração: “Os bens do Céu tampouco me pertencem, eles me são emprestados por Deus que pode os retirar sem que eu tenha o direito de me queixar. No entanto os bens que vêm diretamente de Deus, os impulsos da inteligência e do coração, os pensamentos profundos, tudo isso forma uma riqueza à qual a gente se apega como a um bem próprio no qual ninguém tem o direito de tocar...Aprendi muito cumprindo a missão que me confiastes, sobretudo me achei obrigada a praticar o que ensinava às outras; assim agora posso dizê-lo, Jesus me fez a graça de não estar mais apegada aos bens do espírito e do coração que aos da terra. Se me acontece pensar e dizer uma coisa que agrada às minhas irmãs, acho totalmente natural que elas se apossem disso como de um bem que é delas. Esse pensamento pertence ao Espírito Santo e não a mim, visto que S. Paulo diz que não podemos sem esse Espírito de amor dar o nome de Pai ao nosso Pai que está nos Céus” (C, 18r-19v).

Lendo os fólios paginas C 19v-20r compreende-se o quanto os “bens espirituais prejudicam quanto os “materiais”, pois levam os que os “possuem” a contar demasiadamente consigo e confiar nos próprios méritos, ao invés de contar com Deus e confiar na sua graça.

Ao finalizar nossa meditação, duas palavras de Teresa servem de conclusão ao “discurso” que ela nos fez da descoberta que fizera do significado da caridade fraterna e suas implicações:
“Se uma tela pintada por um artista pudesse pensar e falar, certamente ela não se queixaria de ser sem cessar tocada e retocada por um pincel e tampouco invejaria a sorte desse instrumento, pois ela saberia que não é ao pincel mas ao artista que o dirige que ela deve a beleza da qual está revestida. O pincel por sua vez não poderia glorificar-se da obra-prima feita por ele, ele sabe que os artistas não se embaraçam, que eles se divertem com as dificuldades, agradam-se em escolher às vezes os instrumentos fracos e defeituosos...” (C, 20r).

A titulo de conclusão, um ultimo pensamento de Teresa:

“Só a caridade pode dilatar o meu coração; ó Jesus, desde que essa doce chama o consome, corro com alegria no caminho de vosso mandamento novo...quero correr até o dia bem-aventurado em que me unindo ao cortejo virginal, poderei seguir-vos nos espaços infinitos, cantando vosso cantinho novo que deve ser o do vosso Amor” (C, 16r).

*Reflexão do Retiro- Na companhia e sob a guia de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.