* Frei Vital J.G. Wilderink, O.Carm. In Memoriam. Roma, 07 de setembro de 1995

Pareceu-me uma presunção da minha parte falar-lhes sobre a missão do Carmelo hoje. Sem dúvida, não faltam pontos de referência para dizer algo sobre o tema. Penso em determinadas perspectivas teológicas que poderiam oferecer a moldura dentro da qual se desenvolveria a nossa reflexão. Mas qual seria o estatuto epistemológico desta teologia? Para defini-lo deveríamos partir, creio eu, de uma visão histórica. Existe um pluralismo de interpretações teológicas na base da diversidade de formas históricas da vida religiosa. Sem esta diversidade seria impossível reconhecer a fonte evangélica  donde brotam as diversas concepções da vida consagrada.[1]

A história da Ordem é portadora da nossa memória viva sem a qual é impossível esboçar o futuro do nosso passado. Sem memória não podemos nos situar no presente rumo ao futuro.  A missão do Carmelo pressupõe uma identidade. Há, porém, uma dificuldade. Estamos aqui, carmelitas provindos de vários continentes e países, mergulhados em diferentes contextos culturais e sociais sem os quais é impossível  descobrir a nossa missão. Certamente não pretendo conhecer todos estes contextos históricos. Mesmo se os conhecesse, não poderia levá-los na devida consideração para descrever a nossa missão no mundo de hoje.

Existe outra limitação minha ao abordar o tema que me foi confiado. A minha vida e missão de bispo me tirou da vida do dia-a-dia da família carmelitana à qual pertenço. O contato certamente não se rompeu. Há encontros com confrades, embora esporádicos, e leio atentamente, e às vezes avidamente, os documentos e comunicações que a Ordem e a minha Província têm a bondade de me enviar. São vozes familiares, mas, de certa maneira, também distantes porque me oferecem dados que já não constituem o tecido da minha vida e preocupações cotidianas. Não exigem de mim e, muitas vezes, nem aconselham uma tomada de posição da minha parte como seria o caso para alguém  que responsavelmente participa ativamente da vida de sua família religiosa.

De outro lado, esta minha situação me torna, talvez, um observador privilegiado. Olhando para a realidade do mundo em que vivemos, posso procurar interpretá-la a partir da memória do Carmelo e também a partir do lugar que atualmente  é meu. Não haveria o perigo de uma certa ingenuidade para quem não está imediatamente envolvido na problemática que para muitos confrades meus é um "espinho na carne"? As interrogações, dúvidas e perplexidades que eles têm, surgem muitas vezes de rumos e interpretações contrárias e até opostas. Certamente não posso arrogar-me o título de profeta. Mas, pelo menos, posso pedir a Deus que, em virtude do nosso batismo, nos faça participar do munus profético do próprio Cristo. E o profeta é sempre um "ingênuo" aos olhos de quem não participa da sua visão. O verdadeiro profetismo nunca segue os ditames de uma simples moda.

 1-O que é missão?

A pergunta não me parece supérflua. O tema do último Sínodo foi definido pelo Santo Padre nos seguintes termos: "De vita consecrata deque eius munere in Ecclesia et in mundo". Nas várias traduções do Instrumentum laboris  a palavra munus aparece como Sendung, misión, missão ou como ruolo, role, rôle. O próprio Instrumentum laboris no texto latino enumera entre as expressões do munus a missio. Sinal de que as palavras não são consideradas simples sinônimas. Durante o Sínodo, porém, prevaleceu a expressão "missão da vida consagrada". De fato, o conceito de missão tem uma conotação mais dinâmica do que munus.  A palavra "missão" implica na consciência de ser enviado. O que faz pensar na origem, no conteúdo, nas mediações e nos destinatários da missão.

Nas últimas décadas  houve uma evolução do conceito de missão. Todos nós nos lembramos do tempo em que a palavra missão e seu derivado missionário referiam-se quase exclusivamente à missão ad gentes. O livro France pays de mission já indica uma mudança de perspectivas tanto em relação aos destinatários como em relação aos portadores da missão. A Evangelii Nuntiandi de Paulo VI abre ainda mais os horizontes da missão do Povo de Deus. Aos poucos começa a prevalecer o uso da palavra "evangelização", principalmente com a  insistência do Papa João Paulo II na necessidade de uma nova evangelização. Já Paulo VI na Evangelii Nuntiandi havia afirmado que a Igreja nasce da ação evangelizadora de Jesus e dos Doze. Este seu próprio nascimento faz com que a missão não é apenas uma das tarefas da Igreja mas define a Igreja toda naquilo que ela tem de mais íntimo. "Evangelizar constitui, de fato,  a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade".[2]  A missão coloca a Igreja numa permanente extroversão em direção ao mundo, aos homens e povos que não conhecem o evangelho. Trata-se de tornar nova a humanidade. Parcela dessa humanidade pertence à Igreja. Por isso a Igreja , ela mesma deve sem cessar ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões de sua esperança e o mandamento novo do amor.[3]

A evangelização, razão de ser da Igreja, é complexa. É uma responsabilidade que recai sobre cada batizado-confirmado.  O que evidencia a colaboração e intercâmbio dos dons específicos que constituem a vocação de cada pessoa e dos grupos ou movimentos eclesiais. Neste campo missão e carisma, identidade e espiritualidade tornam-se, na teoria e na prática, conceitos afins e complementares. O Sínodo de 1994 se debruçou precisamente sobre a missão específica da vida consagrada, de modo especial da vida religiosa. Ficou muito claro que na vida religiosa a consagração, expressa através dos votos, não pode ser separada da missão como se esta fosse apenas um acréscimo ou uma mera opção facultativa. Esta dicotomia entre consagração e missão já causou muitas vezes certo mal-estar nas famílias religiosas e nos seus membros individuais. Mal-estar e má consciência reforçadas pelo esquema teológico e jurídico que divide a vida religiosa em contemplativa, ativa e mista. É que na prática a missão era identificada, em primeiro lugar com atividade, obra ou apostolado.. A compreensão da missão tem uma referência indispensável a Cristo, consagrado e enviado ao mundo, que fez de toda a sua existência uma missão salvífica. A consciência missionária de Santa Teresa de Lisieux que fez com que Pio XI a proclamasse Padroeira da missões (ad gentes), não conseguiu resolver o impasse, nem para os contemplativos nem para os ativos. Além disto, quem é, na consciência dos religiosos, o sujeito da sua consagração: Deus, a Igreja, o próprio religioso?  A acentuação e a articulação destas perspectivas tem consequências na vivência da missão e do carisma.

Na Igreja a missão não é um acréscimo mas faz parte da sua natureza mais íntima. A razão última está no fato de a Igreja acolher o dom da comunhão trinitária que ela incarna e comunica como oferta e dom de salvação que ela mesma recebeu. Ser sacramento universal de salvação já é missão independentemente da maneira em que esta sacramentalidade se realiza. Daí a consciência de que "a missão, na sua essência, não é propriedade da Igreja. Procede de Deus e para ele se orienta. Encontra a sua razão última, a sua natureza e multíplice riqueza, no mistério da Trindade. É, pois, essencial na missão tornar transparente o mistério de amor, que é a vida da Trindade".[4] Aplicando esta visão ao Carmelo podemos afirmar que ele não é anterior à missão. A Regra de Santo Alberto codifica uma missão eclesial.

A palavra "missão" inclui a consciência de "ser enviado". Na visão e terminologia teológica está intimamente ligada ao ser-enviado do próprio Jesus pelo Pai. A missão sempre implica um sair, um deslocar-se para além das próprias fronteiras.[5]  A vida religiosa, qualquer que seja a sua forma, nunca apareceu na Igreja para confirmar um status quo. Na sua missão sempre aparece o aspecto corretivo, renovador e inovador. Esta sua função se projeta sobre a própria sociedade à qual a Igreja  deve anunciar o evangelho. Basta analisar atentamente as contribuições dos padres e madres do deserto, das ordens mendicantes, dos diversos institutos apostólicos. Cada um acentua algum aspecto constitutivo da missão única que Jesus confiou à sua Igreja.

A missão da vida religiosa foi sempre profundamente marcada pelas circunstâncias históricas e pelo modelo eclesiológico vigente. Daí a sua mordência na realidade do momento histórico. Ao mesmo tempo, porém, explica as suas crises quando essa realidade e os modelos passam por mudanças não previstas e programadas na sua missão. A emigração dos carmelitas do Monte Carmelo para a Europa provocou uma primeira crise por uma aparente falta de um quadro de referência na experiência fontal que já se tornava memória. Mas qual é a memória do Carmelo?

2-A memória do Carmelo

O que é memória? Qualquer dicionário vai nos dizer que é a faculdade de reter idéias, impressões, conhecimentos adquiridos anteriormente. A memória pode ser intelectual e afetiva. Sempre tem a ver com a nossa identidade, com interesses profundos ou menos profundos que nos situam no presente. O nosso futuro vai depender da nossa memória. A memória de cada um de nós é pessoal. Mas não é algo isolado. Ela se formou à medida dos relacionamentos com outros e com situações. Também existe a memória coletiva, de uma família, de um grupo. Se a memória de um grupo se dilui, o próprio grupo vai se desfazendo. Uma mera ideologia nunca é suficiente para manter um grupo unido. Memória está intimamente ligada a cultura. Quando uma cultura entra em crise, a memória se desfaz. E vice-versa, a diluição da memória provoca uma crise da cultura. Quando se perde a memória, não nos sentimos mais em casa. Os conflitos entre gerações também é uma questão de memória.

A memória tem a ver com o sentido da vida. Ela oferece um código para a descoberta de um sentido para a vida. Sem código não há caminho para descobrir o sentido da vida. Diversos fatores podem provocar uma ruptura entre a memória e o sentido da vida. É uma espécie de esclerose. A memória só se mantém viva, quando ela mantém um dinamismo aberto para o desafio, para a provocação (não existe vocação sem pro-vocação). Quando a história do meu passado não abre horizontes, eu me fixo nele. De certa maneira é o fim da minha história, da nossa história.

Uma pergunta: qual é o interesse que nós temos, e principalmente a jovem geração dos carmelitas, pela história do Carmelo?  Qual é a pedagogia em transmitir a nossa memória para que os jovens possam entrar na grande Tradição do Carmelo? Os jovens se perguntam: qual é o rumo da nossa vida? Certamente não se dá uma resposta contando ou copiando literalmente detalhes do passado. O relacionamento com o passado do Carmelo, indispensável a meu ver, é de outro tipo. Não basta simplesmente haurir normas do passado para podermos situar-nos no presente. Diretrizes e normas supõem a consciência de um objetivo global, de uma mística.

Não queremos afirmar que a leitura do passado deve limitar-se àquilo que corresponde às minhas experiências presentes. É evidente que a leitura do passado é um exercício de interpretação que é sempre seletiva. Mas não podemos manipular a nossa memória. Os psicólogos poderiam nos falar das consequências de uma manipulação da nossa memória. Eu não sou dono da memória do Carmelo. Ela me oferece uma tarefa, uma missão, ela me desafia, me provoca. A memória  impede que eu me coloque diante de fatos consumados.

Há duas maneiras de cultivar a memória embora a distinção na prática não seja nítida. Posso voltar ao passado através do estudo científico que tem suas regras e normas. Posso voltar ao passado através de um diálogo com ele. Não podemos prescindir do estudo histórico do Carmelo. Para isto existem metodologias científicas, hipóteses e teorias de verificação, análises e interpretações dos fatos. O diálogo acontece quando deixamos que o nosso presente seja interrogado pelo passado, ou quando a partir do presente interrogamos o passado, não simplesmente como um conjunto de acontecimentos, mas como portador de uma Tradição, como transmissor da memória.

A transmissão da memória, indispensável para a identificação do Carmelo, é feita a uma geração que vive em contextos novos. Estes contextos têm muitos valores que envolvem e motivam as pessoas que buscam no Carmelo um sentido para a sua vida. Esta identificação com o Carmelo só acontece quando se transmite aos formandos, não um simples esquema de vida, mas uma presença, ou seja, quando se torna presente a experiência fontal da Ordem: seguir Jesus Cristo sob a inspiração de Elias e de Maria. Trata-se de beber do próprio poço, beber hoje da torrente do Carit. O Carmelo bebe de uma fonte que mana até hoje. Mas abeirar-se desta fonte acontece na globalidade da vida em contextos históricos diferentes. Nesta experiência espiritual do Carmelo está presente um quadro de interpretação pelo qual se revela o sentido das coisas e da vida e se lhes atribui um valor. Em cada contexto cultural novo este quadro está sujeito a alterações por causa do novo que se apresenta. Se não refizermos o quadro de interpretação através do discernimento e não assimilarmos o novo, perdemos a sintonia com a história. Se o Carmelo nasceu marcado pela história, a história deverá marcar seu renascimento e continuidade.

III. Algumas janelas sobre o mundo de hoje

Não faltam descrições do panorama do mundo neste fim de século. Também o Sínodo sobre a vida consagrada, principalmente no seu Instrumentum laboris, procurou dar uma visão realista do mundo, com seus aspectos positivos e negativos. Certamente não se trata de uma realidade homogênea e presente em todas as partes do mundo. No entanto, também nos países do hemisfério sul surgem bem claros, sinais de uma modernidade tardiva, acolhidos com certo entusiasmo igualmente tardivo. As consequências das mudanças profundas e rápidas que caraterizam a sociedade de hoje, não são as mesmas em toda parte. Há acentuações e dosagens que variam de continente para continente, e mesmo de país para país.

Queremos salientar os traços e tendências da nossa sociedade que mais diretamente questionam a missão da Igreja e, portanto, sob determinados enfoques a missão do Carmelo.  Uma apresentação do atual contexto histórico, por mais lúcida que possa ser, não eliminará as incertezas em relação ao futuro. A convivência com os paradoxos será, provavelmente,  uma constante da nossa própria missão. A situação atual não deixa de provocar uma certa perplexidade. Em alguns, ela gera atitudes passivas e resignadas, um certo ceticismo que inclusive as instituições eclesiais e, entre nós, a própria casa do Carmelo. Outros perdem a sintonia com a história da Ordem lançando-se em aventuras imediatistas que vão desmantelando os valores da vida consagrada e carmelitana. A outros a insegurança leva a atitudes rígidas e fundamentalistas numa tentativa de levantar uma barreira de sacralidade contra a invasão da modernidade.

A posição correta seria aquela de não recusar uma compreensão racional da situação acompanhada de uma firme esperança fundada na consciência de uma vida consagrada como dom de Deus à Igreja para o serviço do mundo. Não um mundo abstrato, mas o mundo em que vivemos. É preciso renovar o carisma da nossa origem, não para garantir a nossa sobrevivência, mas por ele ser um dom de Deus.[6]

1-Mudanças sócio-econômicas

Tem-se a impressão de que quanto mais se sabe, tanto mais confuso se fica; quanto mais se aumenta a capacidade tecnológica, mais impotente o homem se torna. Os tantos armamentos complexos que existem não impedem a inércia com que se observam, em diferentes partes do mundo, povos e grupos se exterminando. Plantam-se mais alimentos do que precisamos, enquanto milhões de pessoas sofrem e morrem de subnutrição. Desvendamos os mistérios das galáxias, mas não os da nossa própria família. Um especialista em psicologia profissional escreveu um livro que tem como subtítulo: "Quando vencer no trabalho significa perder na vida".[7] São talvez afirmações um tanto estereotipadas. No entanto, são feitas por profissionais que não levam em consideração determinadas perspectivas religiosas. Convidam a uma reflexão sobre os paradoxos da realidade do nosso mundo. Eliminá-los todos, não creio que seja possível. Seriam substituídos por outros.

A nenhum de nós escapa o desequilíbrio existente no campo sócio-econômico. Os resultados da reunião dos Sete Grandes em Halifax/Canadá, em junho passado, refletem mais uma dramática crise internacional que albores de nova aurora. Não creio que a reunião tenha transcorrido nas perspectivas do Carmelo. Os pontos de referência devem ter sido outros, e outros os interesses.

O último levantamento da ONU revela que na repartição da atividade econômica de 1991, em plano mundial, os 20% mais ricos açambarcavam 84,7%  do produto gerado pela humanidade. Os 20% mais pobres ficavam com apenas 1,4%. Os 20% mais ricos se apropriam de 70% da energia do mundo, 75% do metal, 85% da madeira.[8]

A globalização, palavra de ordem na economia, é fruto da dinâmica econômica capitalista. Encontrou no neo-liberalismo um forte aliado e incentivador. A lógica do mercado tornou-se algo absoluto e não esconde um conceito reducionista do ser humano. Questões como autodeterminação, dignidade humana, valores éticos e espirituais não têm espaço nesta corrente ideológica que tenta fazer das categorias econômicas o critério absoluto das relações entre grupos e povos. Com isto vai diminuindo a autonomia dos países, o enfraquecimento dos Estados, o esvaziamento do papel dos congressos nacionais e dos partidos políticos, a primazia da política sobre a economia, a participação democrática. Os organismos econômicos existentes são meros guardiães do modelo atual: uma economia sem sociedade. As consequências menos visíveis estão relacionadas com a influência da economia internacional no nível do emprego, salário e inflação, da qualidade de vida das massas e outras questões da economia nacional. E isto não apenas nos países do Terceiro Mundo.

A globalização da economia vai de mãos dadas com a globalização da exclusão. São significativos os dados estatísticos que mostram que a distância entre a renda dos mais ricos e dos mais pobres dobrou de 1/30 em 1960, para 1/61, em 1991. Sociólogos apontam para um mundo em pedaços. Prevêem um caos financeiro internacional generalizado e põem em dúvida o sucesso da própria globalização devido a uma fragmentação progressiva das zonas de influência.[9]

Há uma multiplicação de conflitos tendo como consequência as violências políticas e sociais.[10] O empobrecimento das massas, o aumento do crime organizado e do tráfico de drogas, juntamente com o enfraquecimento do poder público e a diluição dos laços comunitários fizeram crescer em vários países, de maneira assustadora, a violência e a criminalidade. Na América Latina temos exemplos deste fenômeno em Bogotá, São Paulo, Rio de Janeiro e outras grandes aglomerações urbanas. As minorias mantêm o seu bem-estar no mundo. Precisam, sem dúvida de outras saídas para aliviar o taedium vitae deste estilo de vida convencional. O povo é arrastado pelos modelos de vida da elite e por seus equívocos proclamados pelos meios de comunicação (imagem, triunfo, bem-estar, liberdade, poder) e se asfixia. O que faz proliferar a delinquência, pois uma vez que não há outros valores e atrativos no mundo que o prazer e o dinheiro, é preciso procurá-los sem considerar outros valores ou então recorrer a subsídios mágicos, mesmo religiosos.[11]

2-Mudanças culturais

O processo de mudança cultural que deu origem à tal chamada modernidade, não é dos últimos tempos. Já tem uma duração de quatro ou mais séculos nas sociedades da Europa ocidental. Durante as últimas décadas desembocou no fenômeno da secularização. É fruto de uma diferenciação da sociedade que, em épocas pré-modernas, possuía certa unidade orgânica pela qual cultura, religião, economia, política e vida cotidiana estavam interligadas. Surgiu assim uma separação entre a cultura como "mundo vital"  e o "sistema" da sociedade que se torna autônomo sem referências à religião e à ética. Na afirmação da autonomia do sistema é praticamente inevitável que a tecnologia, que na modernidade ocupa um lugar central, determine os rumos da sociedade. Ela já não está a serviço de um projeto humano, mas coloca o ser humano a seu serviço.[12]

 Não parece haver dúvida de que a modernidade está em crise. Quanto à interpretação desta crise, porém, não há consenso. O nome pós-modernidade já indica uma falta de melhor identificação; uma designação provisória que abriga diagnósticos contraditórios, negativos e positivos, pessimistas e esperançosos. No entanto, há possibilidade de identificar certos traços característicos da modernidade e suas tendências atuais mesmo se é difícil definir os horizontes culturais que esta situação abre para o futuro.

Com a separação cultura/sistema, a cultura tornou-se uma realidade flutuante sem âncora. O que explicaria a sua diversificação que desembocou num pluralismo cultural. A homogeneidade que manteve países unidos se fraturou com a revivência de particularismos étnicos, regionais, linguísticos, acompanhados de uma fragmentação do universo cultural. Mesmo em relação à América Latina há vozes anunciando uma balcanização do continente em cujo favor já existiria o caráter forçado da convergência de etnias, raças e religiões diversas. Pessoalmente não subscreveria este prognóstico que peca por certa superficialidade na comparação com outras partes do mundo embora se acentue certa conflitividade cultural ligada também a gritantes desigualdades sócio-econômicas.

O próprio dinamismo econômico e político da sociedade moderna enfraqueceu os laços comunitários e incentivou o individualismo. É uma tendência justificada como valor desde a época do iluminismo. Reconheçamos também o aspecto positivo nesta mudança cultural como a acentuação da subjetividade que tem como consequências a defesa da livre escolha pessoal e da consciência dos direitos fundamentais do homem. Mas ultrapassando estas fronteiras ela desemboca no subjetivismo que em várias maneiras prejudica as relações pessoais e sociais. O passo para uma cultura da morte não é grande. Tudo se torna descartável, inclusive os compromissos mais sérios e a própria vida humana.

3-A crise ética

As considerações anteriores já deixaram entrever a grave crise ética e da ética que se torna mais visível no campo da ética pública. Também a ética tornou-se pluralista. Nega-se à razão humana a capacidade de reconduzir a ética a princípios universais e aceitáveis por todos, como era uma convicção do iluminismo.[13]

Poderíamos perguntar-nos se a transgressão de princípios universais, como acontece em relação à Declaração dos Direitos Humanos, já não é uma negação prática da validade da razão  universal e de uma ética válida para todos. Diante desta interrogação as democracias não vêem outro meio para resolver questões éticas na legislação que submetê-las a um plebiscito. É considerado éticamente válido o que a maioria dos votantes aprova. O que não deixa de criar impasses para a própria democracia.

4-Pluralismo religioso

Se o pluralismo religioso é uma consequência da fragmentação da sociedade, de outro lado parece apontar para as raízes antropológicas da atividade eucológica. Rejeitamos a tese dos racionalistas e materialistas que consideram a religião ligada unicamente à satisfação das necessidades biológicas imediatas. Segundo esta interpretação a realidade é feita unicamente de "coisas" e de processos neurológicos, a atividade humana se reduz à "praxis produtiva". Para o neo-liberalismo trata-se mais de uma práxis lucrativa; o que mostra que suas bases filosóficas têm uma afinidade com o materialismo dialético. Por que o ser humano faria, através da religião, um pulo "fora da realidade" para comunicar-se com realidades desconhecidas e inexistentes em seu ambiente de vida? Por que submeter-se ao que de nenhuma maneira existia? Toda a realidade é sistêmica para o homem. Assim como a linguagem para ser inteligível precisa organizar fonemas, lexemas e enunciados, também as coisas materiais são organizados em sistemas de objetos, diferentes de acordo com o tempo, lugar, sexo, etnia, profissão, crenças e classes sociais. Nada significa nada se não for integrado num sistema, por primitivo que seja. Daí os diversos sistemas míticos. O homem percebe-se a si mesmo como um ser fronteiriço entre duas ordens ou planos opostos e divergentes, rodeado de perigos de um malogro se não chegar a manter a necessária e devida proporção entre as exigências de ambos.[14]

A dimensão religiosa está na base da cultura humana. Mesmo a teologia da morte de Deus de algumas décadas atrás, não deixava de acentuá-lo. Com a flutuação da cultura, também o elemento religioso perdeu suas âncoras e se diversifica mesmo nos países cristãos. A crise da modernidade abre brechas para uma nova religiosidade. Busca de Deus, sem dúvida, incerta e confusa e, frequentemente, sem perspectivas. O ser humano, relacional a partir de suas próprias raízes, quer chegar a uma comunicação absoluta. Neste desejo está implícita  a intencionalidade de transcender todos os níveis do mundo e as próprias inclinações para encontrar-se com Deus, numa disposição de receber.

 1-A missão do Carmelo hoje

1-Uma definição difícil

Não creio que as expectativas em relação à nossa reflexão se referem apenas ou antes de tudo a uma proposta de eventuais atividades apostólicas que o Carmelo poderia ou deveria assumir para corresponder à sua missão na Igreja e no mundo de hoje. O Carmelo não é anterior à sua missão. A missão do Carmelo é em primeiro lugar uma questão de identidade. Por isto preferimos falar da presença ao invés das atividades da família carmelitana. Com isto não indicamos a priori um determinado estilo de vida. Trata-se, sim, de definir ou redefinir "o espaço místico do Carmelo" como diz o sugestivo título da recente publicação de Kees Waayman sobre a Regra de Santo Alberto.[15]  Devemos, porém, reconhecer que esta identidade tornou-se problemática neste nosso mundo fragmentado e confuso, baseado sobre a competitividade e a valorização das diferenças, onde não existem referências comuns nem linguagem comum. Já comparamos anteriormente a situação dos carmelitas hoje com aquela com que a primeira geração da Ordem se via confrontada na época em que, empurrada pela invasão dos saracenos, tiveram que deixar o Monte Carmelo. Era o espaço que os eremitas haviam escolhido para estar na presença do Deus vivo o que implicava também determinada visão e relacionamento com a Igreja e o mundo. Abandonar este lugar e emigrar para outros contextos foi um verdadeiro desafio. Não teria sido um desafio se não tivessem tido a consciência da necessidade de salvaguardar o seu espaço místico, a sua identidade. Jean de Saint-Samson dirá mais tarde, ao referir-se a eles: "Devemos assumir que os lugares onde vivemos são outros tantos Montes Carmelo. E devemos santificá-los na medida das nossas possibilidades, com um desejo de santidade muito vivo, muito ardoroso e muito eficaz, de acordo o autêntico espírito de nossos primeiros pais e fundadores"[16]

Salvaguardar o espaço místico não significa que os nossos projetos evangelizadores devam ser unidimensionais. Insistimos na consciência de uma identidade e, portanto, no cultivo da nossa memória. Sem elas haverá uma fragmentação e diluição da própria identidade. O desafio da missão só pode existir para quem tem uma identidade. Mas é precisamente em relação a esta identidade que existem problemas, um mal-estar cujas causas e contornos não são muito nítidos. Não que isto acontece só com a identidade carmelitana. Refere-se ao "fato cristão", na sua visibilidade e positividade histórica, do qual o Carmelo é uma expressão.[17] Refere-se também à vida religiosa em geral. A este respeito o Padre Camillo Maccise fez uma constatação muito incisiva:

"Si intuiscono molte cose; ma le tenebre impediscono ancora di vedere il loro profilo. C'è qualcosa di obiettivo e strutturale, quasi diabolico, che continua a rendere paradossalw la nostra situazione: dà l'impressione che cerchiamo e non riusciamo e per questo cadiamo depressi e disorientati in una forte crisi. Stiamo in un momento decisivo per interrogaci ancora una volta sulla nostra identità. Le risposte teologiche del passato non ci soddisfano più. Si rende necessaria una nuova visione teologica che si accordi con il nostro momento culturale. D'altra parte si deve pure ritornare ai fondamenti, per liberarci dalla zavorra storica che si è accumulata sulla teologia. È necessario accogliere o creare un nuovo modello, non ancora disponibile, benché già si intuisca. Lo Spirito dovrà essere, ancora una volta, il grande protagonista di questo momento di rivitalizzazione".[18]

A problemática em torno da identidade do Carmelo vai além das características que ela possa apresentar em cada país e continente ou província. Vai também além dos eventuais conflitos e intrigas humanas que podem existir e que geralmente absorvem a nossa atenção. São insuficientes para dar razão da situação atual. É difícil equacionar este problema em termos teóricos. Alguém dirá que tratando-se da identidade é preciso enuclear o essencial do Carmelo. Mas como definir este essencial fora da existência concreta? Penso que as respostas não deixariam de suscitar uma polêmica. Não é isto que pretendemos fazer. Mas a questão é apaixonante e nos obriga a refletir sobre as causas profundas ao invés de fixar-nos nos sintomas imediatos do "mal-estar". Poderíamos partir de uma definição prévia para aplicá-la à situação atual. Neste caso, porém, corremos o risco de esquecer o dinamismo da nossa Tradição que precisamente se manifesta diante do que há de inédito na situação presente. A identidade e a missão do Carmelo não sobrevivem sem confrontar-se com os desafios do contexto histórico que marca a sua presença. Além disto, este método acabaria em colocar o Carmelo numa espécie de redoma, numa atitude de defesa contra os desafios da realidade. Um dos desafios é precisamente a capacidade nossa de empreender um diálogo promissor com um mundo complexo e plural. Haveria outro caminho para tocar a questão decisiva do ser carmelita?  É precisamente isto que nos interessa: qual é a missão do Carmelo hoje?  A pergunta é feita com humildade, expressão da esperança. Do contrário ela será projeção de medo, de insatisfação, de amargura. E a humildade não espera soluções matemáticas ou respostas exaustivas. A humildade se alimenta de paradoxos que fazem explodir os limites dos conceitos à nossa disposição e que se oferecem à discrição em vista de um diagnóstico. Estamos num momento em que a própria Regra do Carmelo nos leva além de si mesma. "Utatur autem discretione quae virtutum est moderatrix". Valeria a pena meditar sobre a profundidade e  atualidade destas últimas palavras de Santo Alberto. Não creio que a discrição se limita agora à procura da via media. Será mais uma atitude que nos acompanha passo a passo num caminho novo que, no fundo, nos fará descobrir a novidade do próprio Deus.

O "viver em obséquio de Jesus Cristo" será sempre uma experiência difícil porque nos confronta, sobretudo em termos existenciais, com o paradoxo do mistério da encarnação: a expressão definitiva de Deus no homem Jesus. É evidente que, principalmente no tempo de hoje, a razão teológica é indispensável para proteger a originalidade desta experiência.[19]

O paradoxo essencial a cuja descoberta a Regra do Carmelo nos convida, não se manifesta apenas em termos lógicos. Ele  não poderia estar ausente das expressões históricas da vida carmelitana tecidas ao longo dos séculos. As várias reformas que marcam o itinerário da Ordem falam alto da necessidade de novas sínteses cuja relatividade não elimina mas engaja a  responsabilidade.  É uma primeira chave de leitura do mal-estar atual. Uma chave existe para abrir ou para trancar uma porta. Se quisermos usar desta chave de interpretação para abrir a porta rumo ao futuro do nosso passado será necessário renunciar à aparente estabilidade do equilíbrio anterior. Mas há uma segunda exigência. A percepção viva de um desequilíbrio suscita espontaneamente uma reação no sentido de eliminar o elemento que nos parece ser a causa do mal-estar. A identidade Carmelo brota da presença e da descoberta do mistério de um grande Paradoxo. Sua missão consiste precisamente em anunciá-lo em contextos históricos sempre novos. Paradoxo do divino-humano de Jesus Cristo que faz caminhar a Igreja evangelizans e evangelizanda, a serviço de uma transformação da humanidade em todas as suas parcelas e dimensões, em qualquer meio e latitude.[20] Mas  neste serviço se confrontará continuamente com a experiência concreta e contraditória do homem  traduzida na fórmula tradicional do "simul iustus et peccator".

"Dominicis quoque diebus, vel aliis, ubi opus fuerit, de custodia ordinis et animarum salute tractetis".[21] É esta a finalidade também deste capítulo geral.[22] Tratar da custodia ordinis. No fundo, trata-se de abrir, a partir da nossa memória, em contextos históricos novos, o acesso à perspectiva mística que caracteriza o Carmelo. Em função disto o capítulo faz um discernimento, enuncia seu objetivo, define prioridades, toma medidas, traça diretrizes, estabelece normas.  É algo que pede uma interiorização nas províncias, nas comunidades, nas pessoas para que todas elas tenham, na sua diversidade, a identidade do Carmelo. A salus animarum acontece quando a alma - que abrange o todo da pessoa humana na sua unicidade e originalidade - encontra o caminho para o espaço místico do Carmelo, para a sua missão hoje. É isto que Alberto deseja aos carmelitas: "dilectis in Christo filiis B. et ceteris heremitis, qui sub eius obediencia iuxta fontem in monte Carmeli morantur, in Domino salutem et Sancti Spiritus benedictionem".[23]

2-Inculturação do Carmelo

"Pela inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos com as suas culturas na sua própria comunidade, transmitindo-lhes os seus próprios valores, assumindo o que de bom nelas existe, e renovando-as a partir de dentro. Por sua vez, a Igreja, com a inculturação, torna-se um sinal mais transparente daquilo que realmente ela é, e um instrumento mais apto para a missão".[24]

Não será difícil transpor estas afirmações de João Paulo II para a missão do Carmelo que é expressão da própria Igreja. Presente em todos os continentes, a inculturação do Carmelo não pode fugir a esta exigência missionária. A consciência que dela temos  é relativamente recente. O Instrumentum laboris do Sínodo de 1994 apresenta a inculturação como um dos grandes desafios que se põem ao futuro da vida consagrada. É que não se trata  de uma mera adaptação exterior, mas de uma transformação profunda da mentalidade e dos modos de vida. É um processo longo e globalizante. Não se limita às culturas das jovens igrejas e aos valores autóctonos dos povos, mas deve estender-se também às mudanças em curso na civilização ocidental.[25]

Há um consenso teórico bastante grande quanto ao caráter pluricultural do cristianismo e nele, do Carmelo. A sua identidade e missão têm uma intrínseca e radical referência à história. Não haverá Carmelo se sua identidade não for buscada e construída na história e, portanto, na cultura que é o chão mesmo da vida humana.. O Carmelo é "acontecimento", antes de ser "conceito".[26] De outro lado, devemos levar em consideração certas exigências essenciais, chamadas pelo citado Instrumentum laboris  os "talentos" do Evangelho, que se devem acolher sempre e em toda a parte: a profissão íntegra da fé cristã, a intimidade com Cristo na oração e na contemplação, a busca da perfeição da caridade, a prática dos três conselhos evangélicos. O que, porém, não impede que outras culturas possam fazer emergir das exigências fundamentais da vida no Carmelo novos aspectos até "estranhos" para um carmelita experimentado.

Esta consideração nos leva a uma outra consequência da historicidade da essência do Carmelo. A sua potencialidade pluricultural não nega o fato de ela ter tomado corpo numa cultura particular, a ocidental. Não devemos imaginar que a inculturação do Carmelo  se faz a partir de um ponto zero.  Ela seria feita sem memória. Simplesmente não haveria inculturação de nada. O que é cultural e o que é essência na maneira em que, ao longo da história, os carmelitas articularam a sua identidade e missão?  É uma questão não apenas histórica, mas também teológica, uma vez que as raízes do Carmelo nunca estiveram fora da história. Mais uma vez apresenta-se aqui o paradoxo que às vezes nos deixa constrangidos. Constrangimento semelhante ao que sentiram contemporâneos de Jesus: ele não é filho do carpinteiro? No processo da inculturação o confronto com o corpo histórico ocidental é não só inevitável, mas também indispensável. Seu objetivo não consiste simplesmente em escolher os elementos aproveitáveis e rejeitar outros como  descartáveis. O encontro com a tradição do Carmelo se intensifica a partir do novo e inédito para que o paradoxo fundamental que nela "acontece" seja acolhido e transmitido.

Em relação à modernidade e pós-modernidade o processo da inculturação do Carmelo apresenta questões bem específicas cuja avaliação depende das interpretações que se fazem  da distância criada entre o espaço eclesial e o espaço do mundo.[27]

Há quem analise esta situação como  possibilidade  de uma evangelização já que permite uma presença crítica da Igreja no meio do mundo.  Outros procuram explicar esse distanciamento como resultado do conflito entre "conservadores" e "progressistas", entre "direita" e "esquerda". Neste enfoque o pós-Concílio aparece frequentemente como vítima de expiação. Atualmente a "direita conservadora" estaria refugiada em movimentos e tendências que acentuam a interioridade da consciência e a busca individual da salvação. Creio que esta interpretação não chega a ser um diagnóstico mas permanece no nível da constatação de sintomas. Além disto, como a queda das ideologias a distinção entre conservadores e progressistas tornou-se superada ou, pelo menos, deslocou-se no seu sentido.

Para outros grupos - vamos chamá-los de tendência "lefebvriana" - a situação atual indica simplesmente uma ruptura com o verdadeiro cristianismo. A sala de operação  em que se efetivou esta mutação genética da fé cristã, teria sido o Concílio Vaticano II.

Na América Latina a situação reveste-se de características peculiares. As periódicas pesquisas de opinião, feitas no Brasil,  revelam que a Igreja continua a merecer a  confiança da maior porcentagem  da população, acima do exército e bem acima dos políticos que ocupam o último lugar. Evidentemente não há uma preocupação religiosa nestas sondagens. Creio, no entanto, que a opção preferencial da Igreja pelos pobres, sempre presente na própria formulação do objetivo geral da sua ação pastoral, esteja na base dessa credibilidade. A opção pelos pobres traduz a experiência da fé numa linguagem de razão sócio-política. É, sem dúvida, um espaço secularizado. Falar da evangélica opção preferencial pelos pobres não destina este espaço para uma nova cristandade. O que se pretende é dar razão do paradoxo cristão que, no contexto histórico do continente latino-americano, é esvaziado pela idolatria do poder e do capital que nos pobres encontra as vítimas para seus sacrifícios rituais. Esta práxis gera uma nova linguagem no campo pastoral, teológico, espiritual e litúrgico. Linguagem muitas vezes emprestada que traz consigo as conotações dos seus lugares de origem as quais, por sua vez podem, pelo menos, sugerir uma redução do paradoxo cristão. Daí as legítimas preocupações do magistério eclesial. É sempre difícil, dolorosamente difícil, o processo da descoberta de uma nova linguagem que possa traduzir o que há de novo e original em determinadas maneiras de viver a fé que implica num encontro "com Jesus na contramão".[28]

Como o Carmelo vai realizar sua missão neste mundo de hoje? Em outras palavras como poderá ser lugar referencial de sentido?  O mundo de hoje é pluralista. Falta-lhe um código homogêneo que permita uma visão do mundo e um corpo social nos quais o Carmelo poderia inserir-se eficazmente com sua fisionomia peculiar. Hoje, porém, o pluralismo entrou no interior das próprias pessoas. Não que não haja pessoas que não têm convicções religiosas. Aceitam, porém, como fenômeno normal, a existência de outras diferentes. Uma das características da modernidade, principalmente nos países do Primeiro Mundo, é o que o Cardeal Martini chama de contesto di convivenze dirompenti. Esta expressão se refere à contiguidade no mundo ocidental, na experiência cotidiana, de ambientes de vida marcados por irreligiosidade, indiferença, ateísmo.[29]

Parece-nos evidente que a missão do Carmelo não se limita a pessoas e grupos que têm  afinidade com ele. A missão sempre comporta a opção pelo outro, pelo diferente. Mesmo em relação a eventuais candidatos, o Carmelo não pode tornar-se um refúgio para os que se sentem deslocados na sociedade moderna. O motivo velado destes "vocacionados" poderia ser a busca crispada de um reconhecimento sociológico que o contexto histórico já não oferece mais. Não que se deva a priori fechar as portas a tais pessoas. É necessário, porém, que uma pedagogia, já presente na Regra da Ordem, lhes indique os caminhos de acesso ao espaço místico do Carmelo na história de hoje.

3-A eclesialidade do Carmelo

Em várias ocasiões foram citadas as palavras do Papa João Paulo II proferidas já em novembro de1978,  no seu discurso aos Superiores Gerais: "A vossa vocação à Igreja universal realiza-se dentro das estruturas da Igreja local... A unidade com a Igreja universal através da Igreja local: eis o vosso caminho".[30] Esta afirmação ressalta dois aspectos. Em primeiro lugar a importância da dimensão universal da vida religiosa na eclesiologia de comunhão e do seu fundamento na sua relação com o ministério petrino. Em segundo lugar a sua inserção no chão da Igreja local ou particular onde a Igreja universal se torna presente. Estes dois aspectos recebem a partir de normas canônicas e das orientações da Mutuae relationes (a serem aggiornadas?)  certas definições em vista de uma comunhão orgânica. Comunhão que faz crescer evangelicamente tanto a Igreja particular através da nota da universalidade e do carisma da vida consagrada, quanto a vida consagrada à qual a Igreja particular oferece um chão concreto para que possa corresponder historicamente à sua vocação e  carisma.

Há diversos fatores que contribuem para o resultado positivo ou negativo desta viva "interferência" recíproca. Assim como há bispos e religiosos que juntos louvam ao Senhor pelas mútuas relações, existem outros casos em que a "dignidade eclesial" da vida religiosa é questionada  pelos dois lados. Neste sentido não faltaram depoimentos no Sínodo do ano passado. Onde são definidos espaços, dificilmente faltam contestações que, por sua vez, são contestadas.. Também aqui é importante verificar os paradigmas que estão presentes na vida de uma Igreja particular e nos religiosos que nela atuam. Frequentemente chega-se a falar de modelos de Igreja, aceitos ou rejeitados. Não se discute a utilidade de modelos como ponto de referência teórica. Na realidade, porém, não existem modelos abstratos. No concreto há geralmente uma mistura de modelos, inclusive dentro de uma mesma família religiosa, com acentuações determinadas. Mistura que é um dos fatores do mal-estar dentro da Igreja porque dificulta uma visibilização mais clara da identidade cristã que se apresenta como que fragmentada.

Também o Carmelo é atingido por essa crise, feita de dores de parto. Não seriam dores se não envolvessem a nossa responsabilidade. Respons-abilidade que não vem  só e simplesmente da nossa imanente capacidade humana. Há uma tentação, já tão comum nos profetas do Antigo Testamento, de desejar um momento histórico diferente para a nossa vocação e missão a partir de uma vida "in obsequio Jesu Christi". Seria menos ameaçada a fragilidade de uma vida de homem com que Deus se identificou  pessoalmente  no mistério da Encarnação?  Quem sabe, diante do hoje da kénosis vamos descobrir um pouco a densidade  das palavras bíblicas que Alberto de Avrogado citou na Regra que ele nos deu: "In silentio et spe erit fortitudo vestra".

Uma conclusão que abre

Poderíamos prosseguir nas nossas reflexões sobre a missão do Carmelo hoje. Há outros horizontes que se desdobram: o desafio da espiritualidade no mercado das espiritualidades, a dimensão profética tão intimamente ligada à vida contemplativa, o evangelho da vida numa cultura de morte, o projeto antropológico, Maria, a "Domina loci", esta Mulher do nosso espaço místico.

Não falamos das atividades evangelizadoras e pastorais do Carmelo. Não foi por esquecimento. Além de ser difícil compor um seu elenco, haveria perigo de desviar a atenção da nossa missão que certamente não consiste em carregar pedras de um lugar para outro. Não  qualquer resposta é adequada às necessidades da Igreja e do mundo.

Quem sabe, em outros tempos teríamos entendido muito mais facilmente a nossa missão. A   guia do usuário já estava à nossa disposição. Parece que estamos  desprovidos de uma gramática. O nosso itinerário é mais de recolher o que Deus semeou fora do nosso programa, do que de plantar, nós mesmos, a semente. É assim a caminhada do profeta. No fundo é a tensão escatológica que confere o dinamismo exigente à sua vida. Há sempre um mais na vida do Carmelo. Inclusive nos mosteiros das nossas irmãs, a clausura não é para proteger mas para desproteger. É a palavra final da Regra que abre esta perspectiva: "Quando alguém estiver disposto a dar mais, o Senhor mesmo, quando voltar, o recompensará".

 

 

[1] Foi neste sentido a intervenção de Matias Augé,C.M.F. no Sínodo sobre a vida consagrada.

[2] Evangelii Nuntiandi, n.15.

[3] Ibidem.

[4] Instrumentum laboris do Sínodo, n. 61.

[5] "Embora sendo de condição divina, não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens" (Fl 2, 6-7).

[6] Cf  IL n. 14.

[7] Charles Handy, A era do paradoxo, São Paulo: Makron Books, 1995, p.XII.

[8]  José Ernanne Pinheiro, Elementos para refletir a conjuntura nacional, texto mimeografado, apresentado na reunião do Conselho Permanente da CNBB, agosto de 1995.

[9]  Ibidem.

[10]  Há, hoje, 47 milhões de refugiados e pessoas desenraizadas (eram 35 milhões em 1990).

[11] Ver Luis Cencillo, La comunicación absoluta, Antropologia e práctica de la oración, San Pablo, Madrid, 1994, 42.

[12] Ver Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, Documentos da CNBB, 54, Paulinas, São Paulo, 1995, n. 139-150.

[13] Basta lembrar a lei moral como "imperativo categórico" na filosofia de Kant que queria mostrar que existe uma razão pura prática, ou seja, que a razão é suficiente por si só para mover a vontade.

[14] Luis Cencillo, La comunicación absoluta, 33.

[15] Kees Waayman, O.Carm., De mystieke ruimte van de Karmel, Kampen-Kok; Gent-Carmelitana, 1995.

[16] Ibidem, 9. Traduzimos a partir da tradução holandesa.

[17] Nas consideração deste itém, fazemos uso de um artigo de Carlos Palácio,S.J., A identidade problemática, em Perspectiva Teológica, 21 (189) 151-177.

[18] C.Maccise, Come comprendere e presentare la vita consacrata oggi nella Chiesa e nel mondo, in Aa.vv., Carismi nella Chiesa per il mondo, San Paolo, Cinisello Balsoma, 1994, 204. Citado por  Bruno Secondin,  Per una fedeltà  creativa,  La vita consacrata dopo il Sinodo, Paoline, Milano, 1995, 399.

[19] O pluralismo se manifesta também na teologia cristã. Tem o mérito de lembrar-nos o inacabado e provisório de qualquer síntese teológica. De outro lado, exige uma atenta análise das tentativas de elaboração de  "cristologias autenticamente universais" supostamente necessárias para a época atual marcada pelo pluralismo religioso. Há tentativas que na realidade desfazem o paradoxo essencial da encarnação. Ver L'unicità di Gesù e il pluralismo religioso, in La civiltà cattolica, 146 (1995) 531-543.

[20] Evangelii Nuntiandi, n. 15, 18-19.

[21] Regra do Carmelo, cap. XI.

[22]  Ver Kees Waayman,  De mystieke ruimte van de Karmel, 102-106.

[23]  Regra do Carmelo, introdução.

[24]  Encíclica Redemptoris Missio, n. 52.

[25]  IL 93-95.

[26]  Aqui volta a intricada questão da distinção entre essência e existência que, em termos de filosofia escolástica, o Padre Xiberta procurava explicar-nos nas suas preleções no Colégio Santo Alberto. Talvez no nosso tempo de jovens, os estudantes já começassem a sentir dificuldades  em relação à metodologia das teses, das definições feitas a priori de maneira abstrata e dedutiva.

[27]  Cf. Carlos Palácio, A identidade problemática, in Perspectiva teológica, 21(1989) 161-165.

[28]  Alusão feita à recente publicação de Carlos Mesters: Com Jesus na contramão, São Paulo, Paulinas, 1995 (Coleção Bíblia na mão do povo). A Pontifícia Comissão Bíblica no documento A interpretação da Bíblia na Igreja (1994), já vê mais positivamente a abordagem da libertação, reconhecendo os riscos desta leitura tão engajada da Bíblia. A exegese não pode ser neutra, mas deve evitar a unilateralidade.

[29]  Le Chiese europee di fronte alla nuova evangelizzazione, in Vigilare, Bologna, Edizioni dehoniane, 1993, 415.

[30]  Citadas pelo IL do Sínodo de 1994, n. 73.

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita e 1º Bispo de Itaguaí/RJ - foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.