*Frei Dom Vital Wilderink, O. Carm. In Memoriam.

Alto do Rio das Pedras 13.08.2003. (Publicado no Informativo das Irmãs Carmelitas DP)

Toda manhã, nos intervalos do noticiário, uma difusora da Rede Católica de Rádio transmite um lembrete musicado: "Avancem para águas mais profundas: mergulho na vida, encarnar a história, ouvir o chamado do Senhor". Um convite que faz refletir, ou melhor, faz meditar, porque na perspectiva cristã a vocação não é um determinado setor da nossa vida a ser considerado no seu relacionamento com outros setores, mas atinge os próprios fundamentos da totalidade do nosso ser. Por isto mesmo, o que se pode dizer sobre ela, permanecerá sempre uma frase incompleta. O que um autor medieval afirmava em relação à exegese da Palavra de Deus vale também para a vocação: Sic semper invenitur, ut semper supersit quod inveniatur. Traduzindo em vista das presentes páginas sobre vocação: elas foram escritas para descobrir o que nelas não está escrito. De fato, sempre haverá novos horizontes a serem abertos, não só na reflexão teológica, mas também na própria vivência sem a qual a teologia vocacional corre o risco de permanecer abstrata.

Se perguntássemos a um grupo de pessoas que se consideram "vocacionadas", o que significa a vocação para cada uma delas, as respostas, provavelmente introduzidas por um silêncio, não seriam as mesmas. O que mostraria que a palavra vocação não traduz um conceito que define uma realidade, e que, pelo menos intencionalmente, pretende ser unívoco. A palavra vocação escapa da precisão de um conceito. Não que a nossa racionalidade não faça parte da esfera vocacional. A razão nos ajuda a fazer coisas razoáveis. Mas o razoável não esgota aquilo que chamamos "nossa vocação". Paulo apóstolo teve que cair do cavalo para descobrir a vocação dele. Não que o despertar vocacional precisa sempre de acontecimentos extraordinários. O que há de extraordinário é a própria vocação. Não deixa de ser paradoxal, pois é na contingência da vida que se ouve o chamado do Senhor, ou seja, é tocando nos próprios limites que se percebe um chamado que transcende esses mesmos limites. João o evangelista se recordava até da hora em que Jesus se voltou para ele: "Era a hora décima, aproximadamente". Aliás, o Evangelho de João conta também com certos detalhes circunstanciais, como se iniciou a história vocacional de outros apóstolos. Não faltará entre nós quem se lembra quando e como percebeu o chamado do Senhor, e, quem sabe, as hesitações que teve em segui-lo, ou as reações pouco favoráveis de parentes e pessoas amigas.

O discernimento vocacional é mais uma questão do coração que de argumentos. Magis in corde quam in codice, como diziam os antigos monges. Não pensemos, porém, que o discernimento pertence só aos começos da vocação. É um exercício que é necessário ao longo de toda a caminhada , embora seus pontos de referência e dimensões vão mudando. Essas mudanças do eixo no discernimento podem ser comparadas com a leitura que fazemos dos textos bíblicos: no decorrer do tempo vão revelando sentidos novos. João Cassiano nas suas conferências aos monges, já falava disso: "Na medida em que, através dessa leitura, o nosso espírito progride, também a face das Escrituras começa a mudar. Atingimos uma compreensão mais profunda cuja beleza aumenta na medida dos nossos progressos. Com efeito, os aspectos das Escrituras se adaptam à capacidade da inteligência humana"

Na linguagem bíblica o coração é o centro do nosso ser, o lugarzinho profundo onde se escondem e donde brotam as nossas aspirações e opções mais profundas. Estas não passam por cima da contingência da nossa vida que pode ter seus momentos cruciais, mas que também é feita das pequenas coisas de cada dia. A consciência vocacional surge quando na vida e na história, com suas alegrias e tristezas, se começa a vislumbrar uma terceira dimensão da realidade que os sentidos e a razão não captam. É um avançar para águas mais profundas. É um processo cujo ritmo não é o mesmo para todos. Frequentemente é interrompido por falta de discernimento, de silêncio interior, ou mesmo por falta de paciência com o próprio Deus.

A palavra vocação, ao ser pronunciada, desdobra-se em vários sentidos que ela vai revelando e, ao mesmo tempo, cobre com um véu. Fala de algo que é profundamente nosso mas, simultaneamente, superior a nós. É uma palavra que soa como um símbolo. O símbolo é símbolo quando estabelece uma relação com quem o percebe. É uma relação entre um sujeito e um objeto. Símbolo vem do verbo grego sumbállo, jogar, lançar envolver conjuntamente Um símbolo que não fala diretamente, deixa de ser símbolo.O símbolo não revela seu sentido e permanecerá letra morta, se não se superar uma dicotomia entre o que é objetivo e o que é subjetivo. É o que acontece com a palavra vocação. Ela não é interpretada num conteúdo objetivo de conhecimento racional, porque diz respeito a uma dimensão fundamental da nossa existência. Aqui vale a expressão de P. Evdokimov, teólogo ortodoxo: "Não é o conhecimento que ilumina o mistério, é o mistério que ilumina o conhecimento". Alguém poderá ajudar-me a ler um símbolo da palavra vocação mas o seu sentido não depende de uma interpretação que vem de fora: ele é captado no próprio processo da vivência vocacional. Por esta razão a introspecção, a presença a si mesmo, é um elemento metodológico indispensável para quem quer refletir sobre vocação.

Vocação não é uma construção mental, ela é sempre histórica. Envolve dados antropológicos bem concretos. Mas também não é uma disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou profissão. Não que os nossos pendores ou tendências sejam excluídas da vocação cristã. Já dissemos que a vocação não passa por cima da nossa realidade humana, embora como opção, isto é, enquanto resposta a um chamado, não deixe de exigir renúncias. A vocação na perspectiva cristã supõe uma abertura para o Mistério que orienta a nossa vida do interior e do exterior.

A vocação será sempre uma busca e, portanto, uma interrogação. A vocação nasce quando identificamos nos nossos desejos, perguntas e temores a voz do Senhor: "Que procurais?" Frequentemente nós mesmos  não sabemos definir o que buscamos. A nossa resposta é outra pergunta: "Mestre onde moras?" Jesus não tem endereço fixo: "Vinde e vede". Meio desajeitados, seguimos os passos dele. Edith Stein tinha razão quando dizia: "Tenho certeza de que o Senhor me conduz, mas, aonde, não sei ".

*Dom Frei Vital Wilderink, O Carm- Eremita Carmelita e 1º Bispo de Itaguaí/RJ - foi vítima de um acidente de automóvel quando retornava para o Eremitério, “Fonte de Elias”, no alto do Rio das Pedras, nas montanhas de Lídice, distrito do município de Rio Claro, no estado do Rio de Janeiro. O acidente ocorreu no dia 11 de junho de 2014. O sepultamento foi na cidade de Itaguaí/RJ, no dia 12, na Catedral de São Francisco Xavier, Diocese esta onde ele foi o primeiro Bispo.