“Talvez Francisco queira unir e assumir, em suas próprias carnes, toda a vileza da crise de abusos, e deixar que toda a ira se dirija a ele. Converter-se assim em um bode expiatório, enviado ao deserto da infâmia e a traição para pagar o preço dos pecados de outros”, analisa Cameron Doody, em artigo publicado por Religión Digital, 31-08-2018. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Entre todos os comentários sobre o silêncio do Papa Francisco diante das acusações do arcebispo Viganò, talvez nenhum chegue à verdade do motivo pelo qual Bergoglio não se defende, nesse momento, que o de seu biógrafo, Austen Ivereigh. Ele acerta o alvo pela simples razão de permitir que o próprio Francisco fale, recordando um texto seu escrito em 1990: Silêncio e palavra.
Neste texto, como explica Ivereigh, Bergoglio medita sobre o silêncio de Cristo em sua Paixão. Não o silêncio da cumplicidade, nem da inação, mas o silêncio do Homem das Dores em seu autoesvaziamento, em sua humildade frente à hostilidade de seus acusadores.
“Este tipo de silêncio supõe uma escolha deliberada de não responder com uma autodefesa intelectual ou arrazoada, que no contexto de confusão, de denúncias, réplicas e meias verdades, não faz mais que alimentar o ciclo de acusações e contra-acusações histéricas”, explica Ivereigh, que qualifica este silêncio de Cristo como “estratégia espiritual” não só para “deixar espaço para que Deus atue”, mas também para “forçar os espíritos por trás do ataque a se revelar”.
Mas, melhor deixar que Bergoglio se expresse em suas próprias palavras: “Na raiz de qualquer ataque feroz está a necessidade das pessoas em descarregar sua própria culpabilidade e limitações”, observa em Silêncio e palavra. Uma verdade como um templo que perfeitamente poderia se aplicar à situação em que se encontra atualmente. E continua: “Em momentos de obscuridade e grande tribulação, quando os nós e enredos não podem se desemaranhar e se endereçar, nem também esclarecer as coisas, então temos que nos calar. A mansidão do silêncio nos demonstrará ainda mais frágeis, com o que será o diabo que, fortalecido, venha à luz e nos mostre suas verdadeiras intenções, já não disfarçado de anjo, mas desmascarado.
Sobretudo, o diabo quer dividir: nós e eles, amigos e inimigos, os “bons” e os “maus”. Mas, o que é mais importante para Francisco, assim como explica Ivereigh, é que Deus quer unir, e que Cristo nos deixou o mandato de que unamos também.
Vejam, então, a possível lógica da estratégia do Papa. Talvez Francisco queira unir e assumir, em suas próprias carnes, toda a vileza da crise de abusos, e deixar que toda a ira se dirija a ele. Converter-se assim em um bode expiatório, enviado ao deserto da infâmia e a traição para pagar o preço dos pecados de outros. Para que o horror das agressões contra menores acabe de uma vez por todas. Não disse isso Ivereigh, nem Bergoglio: aventuro aqui minha própria tese. E não posso evitar de pensar no versículo do profeta Isaías: “Sobre ele descarregou o castigo que nos cura, e com suas cicatrizes nos curamos”. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br