Saiba como O GLOBO participou do evento no qual o prefeito misturou política com religião

POR BRUNO ABBUD

Crivella recebeu 250 pastores e líderes de igrejas no Palácio da Cidade - Bruno Abbud

RIO - Duas imagens de tela de celular chegaram, via WhatsApp, à colunista Berenice Seara, do jornal “Extra”, um dos três títulos da redação integrada que reúne também O GLOBO e a revista “Época”, no final da tarde de terça-feira. Anunciavam que um evento intitulado “Café da Comunhão” aconteceria no dia seguinte, às 17h, no Palácio da Cidade, um prédio em estilo georgiano no número 360 da Rua São Clemente, em Botafogo. É o mais nobre espaço para os eventos oficiais da Prefeitura do Rio de Janeiro e um dos locais de trabalho do prefeito Marcelo Crivella.

Segundo a mensagem, que por meio do aplicativo havia sido divulgada para pastores e líderes de várias igrejas evangélicas do estado e do município, o encontro era um “convite de nosso amado e querido prefeito Marcelo Crivella e dos pré-candidatos Rubens Teixeira e Raphael Leandro” para que os participantes levassem suas “reivindicações por escrito em duas vias, relação de suas igrejas e número de membros”. O texto não deixava espaço a sutilezas: era uma oportunidade para que as lideranças apresentassem seus pleitos para que a máquina da prefeitura entrasse em ação, de acordo com aquela pauta de pedidos. “Na ocasião ouviremos tudo o que a prefeitura tem a nos oferecer, inclusive instalação de creches”, dizia um trecho. “Depois levaremos os pré-candidatos a nossas igrejas”.

Tudo isso a três meses do primeiro turno das eleições e a apenas 20 dias do início das convenções partidárias.

Por e-mail e por telefone, a colunista Berenice Seara pediu insistentemente esclarecimentos à Prefeitura do Rio e tentou confirmar o compromisso de Crivella, nunca divulgado em agenda oficial. Foi ignorada. “Era tão absurdo, que parecia até não ser verdade”, comentou Berenice.

Mesmo sem a confirmação oficial, a equipe de política do GLOBO decidiu que seria necessário verificar no próprio Palácio da Cidade qual a natureza daquele encontro em espaço público da Prefeitura do Rio e o que, afinal, seria prometido pelo prefeito, ainda que apenas conversando com os convidados na saída do evento. Mas havia um problema: muito conhecida pelos atores da política regional do Rio — até mesmo porque sua foto estampa a coluna “Extra, Extra” no site e no jornal impresso —, Berenice não poderia de forma alguma ser a jornalista com essa missão. Repórteres já conhecidos pelo prefeito e por sua equipe também não teriam facilidade para ter acesso ao “Café da Comunhão”.

É aqui que eu entro. Natural de São Paulo, morando há apenas quatro meses no Rio de Janeiro e jamais tendo ficado frente a frente com Crivella, mas já com experiência acumulada na cobertura política, fui escalado para a pauta.

Nos links abaixo, é possível acessar e ler todas as reportagens publicadas sobre o caso:

Cerca de uma hora antes do início do evento, me deparei com o belíssimo Palácio da Cidade pela primeira vez na vida. Quando avistei dois guardas municipais, pranchetas à mão, avaliei que não bastava apenas ter o rosto pouco conhecido por ali. Pouco antes de descer do Uber, fechei a camisa até o último botão, ajeitei o colarinho, abotoei também as mangas, lambi os dedos para espichar a franja e passei a andar com os braços colados ao tronco. A minha voz era a de um turista desorientado. Adotei o visual formal do público que imaginei que iria encontrar dentro do palácio. Funcionou:

— Você vai ao evento da igreja? — questionou o guarda assim que bateu os olhos em mim.

Assenti com a cabeça e segui caminhando até a entrada principal do palácio. Havia vários carros estacionados do lado de fora e os pastores, alguns acompanhados de suas mulheres, aglomeravam-se na frente do prédio e no saguão. Quando uma assessora autorizou, todos subiram as escadarias em direção a um salão no segundo andar. As doze mesas sustentavam pratos montados. Quatro garçons serviam água, sucos e refrigerantes. Sentei-me ao lado de outros convidados, alguns deles vestidos com paletós impecáveis, o que dava ao encontro ares de um casamento.

Imediatamente, os convidados, aparentemente impressionados com a arquitetura do lugar, passaram a sacar do bolso seus telefones celulares e a tirar selfies. A chefe do cerimonial de Crivella foi ao microfone e pediu para que ninguém fotografasse ali — “principalmente quando o prefeito estivesse presente”, nas palavras dela. Para mim, foi como uma senha. Nesse momento, coloquei o celular sobre a mesa com o gravador ligado. Só o desligaria duas horas mais tarde.

Depois de 40 minutos, Crivella apareceu, causando certo frisson no caminho até o “púlpito” improvisado.

O pré-candidato a deputado federal Rubens Teixeira, do PRB, sentou-se à mesma mesa que a mulher de Crivella, a mais perto do prefeito. Um pastor orou aos gritos, os religiosos ergueram as mãos e cerraram os olhos. Em seu habitual tom confessional, o prefeito disse que é o “Brasil evangélico que vai dar jeito nessa pátria” e que é preciso “votar em homens e mulheres de Deus”. Crivella também fez questão de elogiar Rubens Teixeira, com passagens pela Comlurb e pela Secretaria Municipal de Transportes. “Ele passou pelo fogo e nem um fio de cabelo queimou”, disse Crivella, sobre a ausência de Teixeira, que também foi diretor na Transpetro, em denúncias da Lava Jato. Crivella ofereceu, ainda, ajuda a pastores que tenham problemas com IPTU ou fiéis que precisem de cirurgias de catarata, vasectomia e varizes.

Ao fim da fala do prefeito, quatro assessores — identificados na ocasião apenas como Márcia, Marquinhos, Manassés e Milton — passaram a anotar em blocos as demandas dos pastores enquanto Crivella era ovacionado.

Após a publicação da reportagem, um assessor de Crivella telefonou contestando o número de presentes ao encontro — 180 em vez de 250, segundo ele. Disse que o croissant oferecido no lanche não era recheado com geleia, mas com goiabada. O sanduíche de queijo com damasco, para ele, era de banana com queijo. A agenda, embora não divulgada oficialmente, não poderia ser chamada de secreta. E as bebidas — descritas apenas como ‘bebidas’ na reportagem — pareciam ser alcoólicas na descrição do repórter, de acordo com o assessor. Ele não explicou, contudo, por que o prefeito usou um espaço da Prefeitura do Rio para oferecer acesso mais rápido a membros de igrejas evangélicas a serviços públicos.

O número de participantes foi contabilizado a partir da contagem das mesas, doze, cada uma com dez lugares, mais a soma dos que tiveram de permanecer em pé, do lado de fora. Disse ao assessor que goiabada equivale a geleia de goiaba e esclareci que, como tenho família de origem síria, conhecia muito bem desde criança a diferença entre damasco e banana. Ressaltei também que a palavra ‘bebidas’, semanticamente, abarca sucos e refrigerantes. E que algo que não é divulgado publicamente por uma autoridade, que tem a responsabilidade da transparência em sua agenda, é secreto. Fonte: https://oglobo.globo.com