"Grande perversidade significa escandalizar os pequenos, transformando a Imagem de Maria em instrumento de manipulação política". 

O artigo é de Ceci Maria Costa Baptista Mariani, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da faculdade de Teologia. Integrante da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - Soter, é filósofa pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora de Medianeira, graduada em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção, mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção e doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Entre suas publicações, destacamos Mística e Teologia: Desafios contemporâneos e contribuições. Atualidade Teológica (PUCRJ, 2009, v. 33) e Teologia e Arte: expressões de transcendência, caminhos de renovação (São Paulo: Paulinas, 2011).

Eis o artigo. 

“como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar...”

(Renato Teixeira, “Romaria”)

A cada maio, vale refletir sobre Maria, a Mãe de Jesus. Das doces lembranças de infância que acalento, uma das mais queridas é a das noites de maio (algumas muito frias!) em que saia à noite de casa com uma rosa na mão, para junto com minha mãe, ir rezar o terço na Igreja Matriz da cidade do interior em que morava. Piedade simples de criança, expressão da reverência a essa que de fato, é para os cristãos, a “Bem-aventurada”.

Maria, a “Nossa Senhora”, é figura que catalisa para a vivência religiosa, dimensões fundamentais associadas ao feminino que são as dimensões de vida, profundidade, mistério, ternura, interioridade e aconchego. Maria representa para o cristianismo, o cuidado maternal de Deus. Os pequenos captam esse elemento e o expressam em sua vivência de fé. Os pobres, certamente, contemplam em seu culto à Maria, o rosto materno de Deus. Bela tradução dessa experiência popular encontra-se nos conhecidos versos de Renato Teixeira em sua música “Romaria”. Essa música consegue dizer da mística do homem simples que vem a Nossa Senhora de Aparecida trazendo sua vida sofrida e, não tendo palavras prontas, no silêncio, diante dela, só faz mostrar seu olhar...

Me disseram porém

que eu viesse aqui

pra pedir de romaria e prece paz dos desaventos

como eu não sei rezar

só queria mostrar

meu olhar, meu olhar, meu olhar.

Sou caipira pira pora Nossa Senhora de Aparecida

Ilumina a mina escura e funda, o trem da minha vida.

Grande perversidade significa escandalizar os pequenos, transformando a Imagem de Maria em instrumento de manipulação política. Desalentadora é a notícia do uso ideológico da “Consagração à Nossa Senhora” pela Frente Parlamentar Católica, que apresentou uma “Moção de consagração do Brasil a Jesus Cristo por meio do Imaculado Coração de Maria” ao ministro chefe da casa civil da presidência da república Floriano Peixoto Vieira, em ato político-religioso realizado no dia 21 de maio de 2019, no Palácio do Planalto, para manifestar o apoio político ao presidente.

É público que notório que a política do presidente Jair Bolsonaro tem sido uma ameaça aos direitos humanos, como demonstra a análise publicada no site do IHU - com base na avaliação de Conectas - que relaciona “dez exemplos sobre porque precisamos continuar vigilantes e atuantes com relação ao governo”[1]. Entre esses exemplos encontra-se o afrouxamento das regras para a posse de armas no país; o desmonte de Ministério do Meio Ambiente, a imposição de obstáculos à fiscalização da tortura, o incentivo à celebração do Golpe de 1964 que resultou numa ditadura militar que durou 21 anos.

No discurso de abertura do evento, o Deputado Federal Eros Biondini interpreta o “livramento” do Presidente Bolsonaro - restabelecimento dele depois do atentado sofrido em Juiz de Fora - como milagre atribuído a Nossa Senhora de Fátima. Compara o Presidente Bolsonaro a São João Paulo II.

Ao que parece, essa iniciativa expressa a posição de um grupo que, diante dos desafios do tempo, recorre a uma postura tradicionalista apoiando-se no fundamentalismo bíblico e teológico, no moralismo e no conservadorismo político. Em nome do combate ao comunismo, militam por um regime de cristandade há muito questionado pela modernidade que defende o Estado laico como lugar do exercício da liberdade religiosa. Postura que rejeita o espírito Concílio Vaticano II que orienta aos cristãos católicos cultivarem uma abertura ao mundo, reconhecendo a autonomia das realidades terrestres.

Neste sentido, diante da manipulação que se tem feito da devoção a Nossa Senhora de Fátima, vale trazer presente as orientações do Concílio Vaticano II, cuja mariologia proposta, como bem observa a teóloga Elizabeth A. Johnson, está integrada com as principais noções da fé cristã.

Enraizada nas Escrituras e na tradição patrística, ela é cristológica, eclesial e escatológica em perspectiva, e ecumênica no tom. A Visão do Vaticano II é: Maria no seio da comunidade dos santos no céu; os santos como amigos de Deus partilhando comunidade de vida com o povo de Deus peregrino na terra; e a própria totalidade da igreja refletindo a luz de Cristo como a lua reflete a do sol. (JOHNSON, E. In: FIORENZA; GALVIN, 1997, p.218)

Isso quer dizer que para conhecer a verdadeira Maria deve-se levar em conta o testemunho bíblico global. A figura de Maria deve ser considerada a partir do relato da infância segundo Lucas, mas também é preciso que se considere as histórias incômodas do encontro de Maria com Jesus segundo os sinóticos. Retomar os estudos bíblicos sobre Maria com os recursos da exegese crítica nos permite conhecer a mãe de Jesus como discípula, isto é, como mulher de fé que vai discernindo a sua participação no projeto de Deus, cuja misericórdia se estende de geração em geração, em defesa dos pequenos, conforme Lucas 1, 46-55.

Em consonância com a mais antiga tradição da Igreja, a tradição patrística, o Concílio adverte que o discurso sobre Maria não pode ser um capítulo separado, ela está inseparavelmente ligada ao evento-Cristo. A “Theotokos” representa na reta cristologia, afirma o teólogo ortodoxo Nikos NISSIOTIS (1983), “a testemunha e a guardiã da realidade e plenitude da união hipostática divino-humana na forma de um homem concebido na humanidade em plena reciprocidade, co-pertença e união desde o início”. Fundada na Bíblia e cristocêntrica, a mariologia manifestará a ação do Espírito Santo na história de Cristo e na história dos homens.

Para a Igreja, Maria é modelo, exemplo de fé integral e ocupa a função mediadora. No entanto, como mediadora, não obscurece a mediação singular de Cristo, mas revela sua eficácia quando participa na oração dele pelo mundo. Também a maternidade da Igreja é compreendida no espelho da maternidade de Maria. Pela pregação e pelo batismo, lemos da LG 64, “a Igreja gera para a vida nova e imortal os filhos concebidos por obra do Espírito Santo e nascidos de Deus”.

Por tudo isso, Maria deve ser cultuada. O culto a Maria, todavia, orienta o Concílio, deve obedecer a alguns critérios: se basear em fé verdadeira e não em “vã credulidade”, ser animado por um autêntico “amor filial” e não apenas num “estéril e transitório afeto”, levar à “imitação” (das virtudes), não se limitando à invocação.

Em maio, portanto, contra a manipulação que se fez e que se tem feito ainda hoje, vale dedicar à Maria, mãe de Jesus e nossa mãe, um tempo de estudo e reflexão. Resgatando as fontes bíblicas e recorrendo à antiga Tradição Patrística poderemos nos aproximar melhor daquela que é Bendita e Bem-aventurada pelas maravilhas que nela o Senhor operou.

Bibliografia:

COMPÊNDIO DO VATICANO II. Petrópolis, Vozes, 1982.

JOHNSON, Elisabeth A.. Os santos e Maria. In: FIORENZA; GALVIN, Teologia sistemática: perspectivas católico-romanas. São Paulo: Paulus, 1997.

NISSIOTIS, Nikos. Maria na teologia ortodoxa. In: Maria nas Igrejas: perspectivas de uma Mariologia Ecumênica. Concilium/188 – 1983/8, p. 49[957].

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br