Hoje, décadas depois, tem gente nas ruas querendo engatar a ré até 1964. tão transtornados e confusos que pensam que a solução é o retorno da ditadura
LEO AVERSA
Passeata dos Cem Mil, em 1968, uma manifestação popular contra a ditadura militar brasileira Foto: Agência O Globo
O que estará acontecendo, quando você, leitor, tiver esta coluna na tela ou na mão? Escrevi esta coluna ontem, então não sei se hoje está tudo normal, se há apenas uma manifestação pacífica dos que ainda apoiam este governo ou se a vaca já foi para o brejo — ou para o quartel — e tem um cabo e um soldado a caminho do STF.
Difícil escrever sobre o futuro.
Então vou falar de algo leve: de música, de memórias, da vida. Outro dia ouvia Roberto Carlos. Dei para gostar dele, veja você. Na verdade, já faz tempo, mas quando era adolescente, Robertão era coisa de gente velha, símbolo de caretice. Terno branco? Faça-me o favor... “Detalhes”, então, era o suprassumo do cafona: que dramalhão! Eu gostava era de rock, de som alto e agressivo.
Aí um dia eu levei um pé na bunda. O primeiro. De repente os detalhes que somem na longa estrada e o tempo que transforma todo o amor em quase nada fizeram todo sentido. Não adiantou nem tentar esquecer o Roberto: com seu terno branco e seu dramalhão ele sabia das coisas.
“Like a rolling stone” era apenas uma música quilométrica do Bob Dylan, aquele cara dos anos 1960 que os meus pais ouviam muito. Perfeita, mas não me dizia nada. Tem tanta música quilométrica por aí... Um dia saí da casa dos pais e comecei a vida por minha conta. Achei que ia ser um passeio por jardim florido num dia de sol. Liberdade pra fazer o que eu quisesse, do jeito que me desse na telha. A realidade veio logo me tocar a real. Foi quando percebi que ia ser difícil, que ia levar muita porrada, encarar muito beco sem saída. Foi quando a letra do Dylan — “You used to laugh about/ Everybody that was hanging out/ Now you don’t talk so loud/ Now you don’t seem so proud” — apareceu na memória e conversou comigo. Foi quando entendi porque os meus pais ouviam tanto a quilométrica música.
“Pais e filhos”, da Legião Urbana, começou a tocar no rádio no final dos anos 1980. Na época achei meio chata: essa conversa de gota d’água, de grão de areia, parecia muito abstrata para quem tinha vinte e poucos. Não me preocupava mais com o que ser quando crescer e o “posso dormir aqui com vocês” parecia algo de um futuro muito, muito distante. Vinte anos depois dei ao meu filho o nome mais bonito que havia e toda noite fico velando o sono dele, porque agora sei que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Na verdade não há.
No início dos anos 1980 tinha sempre uma rodinha de violão cantando “Pra não dizer que não falei das flores”. Eu, adolescente, achava essa conversa de “caminhando e cantando e seguindo a canção” coisa de uns caras meio sem noção, afinal estávamos deixando a ditadura e parecia óbvio que nunca voltaríamos a ela. Só um doido ia querer aquele desastre de volta. “Há soldados armados/ amados ou não/ Quase todos perdidos/ de armas na mão”, entoavam. Eu, adolescente, achava que o pesadelo tinha ficado pra trás de vez, a cantoria já não era mais necessária.
Hoje, Sete de Setembro, décadas depois, tem gente nas ruas querendo voltar no tempo, engatar a ré até 1964. Estão tão transtornados e confusos que pensam que a solução é o retorno da ditadura. A rodinha do violão sabia o que estava cantando, pena que a gente não prestou atenção. Fonte: https://oglobo.globo.com