José Eduardo Faria*
À medida que se vai constatando que havia um gabinete paralelo no Ministério da Educação durante a gestão de um pastor presbiteriano mancomunado com alguns “pastores” neopentecostais que encaram sua missão terrena como uma apropriação de recursos públicos em nome de um Deus supostamente justo e misericordioso, o que se tem não são apenas infrações graves ao direito administrativo e ao direito penal, a serem investigadas pela Polícia Federal e por uma possível Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado.
É, também, um atentado à moral e à ética justamente por parte de quem, invocando citações bíblicas sem conhecer teologia, apresenta-se como seus defensores. Esse atentado é ainda mais grave porque os mais atingidos por essa conversão de rezas e de grotescos palavrórios religiosos em fumaça para ocultar a instrumentalização do MEC e a apropriação de recursos da coletividade são as crianças, os adolescentes e os jovens dos setores mais desvalidos da sociedade. Trata-se, por isso mesmo, de um desprezo acintoso e torpe, por parte desse pessoal tosco, de inteligência curta e de ambições infinitas, ao que a educação tem de mais nobre: permitir que essas crianças, esses adolescentes e esses jovens oriundos daqueles segmentos sociais possam ser protagonistas de suas vidas. Essa é a nobreza da educação: converter a alfabetização, a capacitação e a formação da consciência social dos setores mais pobres das novas gerações em instrumento de emancipação e inclusão, bem como de conscientização da liberdade e da importância do diálogo, da convivência, da solidariedade e da democracia.
Especialmente no âmbito do ensino fundamental e do ensino médio, a educação tem por objetivo preparar os alunos para a sociedade em que viverão. No âmbito do ensino técnico e do ensino superior, o objetivo é prepará-los para ingressar na economia formal, especialmente num período em que cada vez mais se exige conhecimento interdisciplinar. É por esse motivo que, infiltrar-se no MEC, criar um ministério paralelo, corroer a natureza laica, livre e autônoma de que o sistema de ensino precisa para exercer seu papel, promover tráfico de influência e se apropriar de recursos públicos, sempre invocando Deus como uma espécie de habeas corpus preventivo, é mais do que uma infração jurídica. É um crime moral e ético.
Num país marcado pelas fraturas sociais e seus efeitos, como a violência, a criminalidade e a insegurança, alguns números ilustram a dimensão da gravidade desse atentado à moral e à ética. Segundo estudos do IPEA elaborados com base em indicadores multidimensionais de educação e homicídios, para cada 1% de jovens pobres entre 15 e 17 anos nas escolas públicas haveria uma diminuição de 2% nas taxas desse tipo de crime. Igualmente, se as autoridades educacionais universalizassem o acesso ao ensino médio, a estimativa é que poderia ocorrer uma queda de 40% nas taxas de homicídios. As mesmas pesquisas apontam ainda que indivíduos sem educação formal mínima de sete anos, especialmente na faixa etária dos jovens, têm chance 15,9 vezes maior de sofrer um homicídio. Por fim, como desigualdade social, violência e criminalidade têm correlação, os mesmos estudos informam que o aumento de 1% na desigualdade de renda aumenta em 3% os números de homicídios.
Já o Mapa da Desigualdade de 2017 revela que os bairros da cidade de São Paulo considerado ricos, como jardim Paulista, Moema, Consolação e Perdizes, em que estão muitos colégios particulares que formam os filhos de classe média alta, a taxa de homicídios com vítimas na faixa etária de 15 a 29 anos foi zero. Já nos bairros mais pobres, como Limão, Brasilândia, Jardim Ângela e Guaianases, em que há somente escolas públicas que recebem adolescentes e jovens excluídos e sem maiores perspectivas de vida, as taxas variaram de 70 a 133. Além disso, enquanto a expectativa de vida nos jardins é de 81,5 anos, o que equivale à média da qualidade de vida dos habitantes da Alemanha, no Jardim Ângela ela cai para 58,3 anos, o que equivale à média da qualidade de vida da população de Malawi e da República Democrática do Congo. Mas não é só. Na década de 1980, a faixa etária média das vítimas de homicídio em São Paulo estava em torno de 25 anos – duas décadas depois, caiu para 21 anos. Entre 2002 e 2012, o número de vítimas jovens de cor negra, parda e mulata aumentou 2,4%.
Antes mesmo da pandemia, as fraturas da sociedade brasileira já pediam para o ensino básico políticas responsáveis, voltadas à formação e emancipação das crianças, adolescentes e jovens das regiões menos desenvolvidas, das cidades do Brasil profundo e das periferias miseráveis dos centros urbanos. Essas políticas lhes foram negadas pelo atual governo. E, durante o período mais agudo da pandemia, o pastor presbiteriano à frente do MEC e seus “missionários” de confiança não se limitaram a fragmentar a alocação recursos públicos, com base em barganhas pagas em barras de ouro. Durante essa gestão “pastoral”, o MEC também não formulou um projeto pedagógico de amplitude nacional baseado nos valores da universalidade do homem nem respeitou prioridades, privilegiando apenas iniciativas que resultassem em dízimos para esse pessoal. O que, por consequência, agravou ainda mais a má qualidade do gasto público numa área estratégica para o futuro do país, de um lado. De outro, essa prática desprezou acintosamente os direitos mais elementares das novas gerações previstos pela Constituição.
A verdade é que, mesmo que tivesse formação religiosa robusta, competência administrativa e honestidade no trato de recursos públicos, essa gente deveria estar longe da área da educação. Apesar de todos os percalços nos diferentes níveis do sistema brasileiro de ensino, quem trata de educação e educa é o educador. Ou seja, o profissional capaz de interagir com seus alunos, formando-os. Estimulando-os a agir segundo princípios. Apontando-lhes os referenciais da vida histórica e social. Levando-os a identificar, distinguir e avaliar a transformações que podem dar à sociedade um rumo compatível com a vida e a dignidade. E conscientizando-os de seus deveres e de suas obrigações. O resto é coisa de pregador que invoca Deus para justificar iniciativas imorais e antiéticas inconfessáveis.
*José Eduardo Faria, professor titular e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Fonte: https://politica.estadao.com.br