Os caminhoneiros buscam substituir-se ao Tribunal Superior Eleitoral, decidindo sobre a lisura do segundo turno.

 

Flávio Tavares, O Estado de S.Paulo

O velho e tradicional refrão de que “após a tempestade vem a bonança” não se aplica ao resultado do segundo turno da eleição presidencial. Algumas tempestades são tão destrutivas em si mesmas que exigem muito mais do que esforço e entendimento para a verdadeira reconstrução.

Os reiterados ataques do presidente da República às urnas eletrônicas – mesmo sem apresentar provas nem indícios – criaram no País um turbilhão confuso, cujas feridas começam a despontar.

Na noite do segundo turno, enquanto Lula da Silva proclamava publicamente que governaria para todos os milhões de brasileiros, em Brasília as luzes do Palácio da Alvorada se apagavam, mostrando que Jair Bolsonaro fora dormir, sem um gesto sequer de dar garantias de uma pacífica transição colaborativa com o futuro governo. Não recebeu sequer o vice-presidente Hamilton Mourão, que esperou em vão na porta da residência presidencial.

Foi o primeiro sinal de que, se depender do atual presidente, irá persistir o clima de atritos e ataques que caracterizaram os debates entre os dois candidatos presidenciais.

Talvez a posição de Lula da Silva tenha sido marcada pela euforia do triunfo, enquanto Bolsonaro exteriorizava apenas o ressentimento típico do derrotado. Essa situação, porém, mostra a pequenez das posições do presidente que, no atual desgoverno, optou invariavelmente pelo confronto e pelo negacionismo. É desnecessário relembrar as posições de Bolsonaro na pandemia, que começou tratando a covid-19 como “gripezinha” e foi adiante até chegar ao disparate de propagar que a vacina “provoca aids”.

Isso, porém, revela o estilo confuso e alienado de Bolsonaro, que no momento dramático da pandemia (que deveria unir o País inteiro) preferiu zombar dos milhares de mortos ao dizer “eu não sou coveiro”. Ou fazer pose de charlatão e receitar cloroquina, contrariando a ciência médica.

Em 2018, Lula (mesmo preso) foi o grande “cabo eleitoral” de Bolsonaro, que se elegeu prometendo reverter o que tinham sido os governos do PT. Agora, a situação se inverteu e Bolsonaro transformou-se no fator que levou votos a Lula para evitar que o atual presidente continue no posto e prossiga duvidando da legalidade democrática.

Em síntese: os votos de Lula foram, mais do que tudo, votos contra Bolsonaro, que, assim, teve dupla derrota. Não foi ao acaso que os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso apoiaram Lula, tal qual Simone Tebet e o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles ou o grupo de economistas que elaborou o Plano Real, que pôs fim à inflação galopante.

Bolsonaro passou a ser uma espécie de “inimigo comum”, por suas constantes atitudes de governante que desafiava a democracia ou dela duvidava. A mais notória ou exacerbada fez seus adeptos ameaçarem invadir o Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, tempos atrás, numa caricata tentativa de imitar a invasão do Congresso, em Washington, pelos partidários de Donald Trump.

O palavrório tosco e agressivo de Jair Bolsonaro, infestado de palavrões, abriu caminho para criar um núcleo de fanáticos seguidores, como os caminhoneiros. Trata-se de pessoas expostas a um trabalho duro pelas estradas Brasil afora e que, agora, geraram nova tempestade. Obstruíram e fecharam rodovias fundamentais, como a Via Dutra e dezenas de outras ao longo de 24 Estados, além do Distrito Federal, por não reconhecerem o resultado do segundo turno.

Os caminhoneiros buscam substituir-se ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), decidindo sobre a lisura do segundo turno. Não apontam erros nem equívocos, agem apenas como arruaceiros ou rebeldes sem causa, procurando criar o caos num país de dimensões continentais em que as rodovias são o principal meio de transporte de carga industrial e alimentos.

Mesmo apertada, a vitória de Lula não foi jamais questionada ou posta em dúvida. O único detalhe duvidoso ocorreu no Nordeste do País, reduto lulista, onde a Polícia Rodoviária Federal (PRF) bloqueou estradas no dia da eleição, sob pretexto de “revisar documentos”, contrariando o que o TSE havia proibido. Ou seja, o “detalhe duvidoso” só poderia favorecer o candidato Bolsonaro.

A máquina do poder governamental fez-se evidente nesse detalhe. Fora disso, porém, nada ocorreu que possa ofuscar a lisura do segundo turno.

Alguns detalhes, porém, mostram que a tempestade não acabou e está a caminho do terrorismo. Ao referir-se ao criminoso bloqueio de estradas, o próprio presidente afirmou que “os movimentos populares refletem um sentimento de injustiça e indignação de como se deu o processo eleitoral”. Em várias capitais, fanáticos bolsonaristas gritam defronte aos quartéis pedindo “intervenção militar” para manter o atual presidente, mesmo que tenha perdido a eleição.

O fanatismo é um câncer social capaz de se multiplicar ao infinito e tornar-se devastador. A tempestade que pode gerar tem de ser impedida agora, já e já.

* JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNB. Fonte: https://opiniao.estadao.com.br