Tolentino Mendonça vai fazer o “Elogio da Sede” no retiro que decorre em Roma até dia 23 de Fevereiro. A procura destes exercícios espirituais marcados pelo silêncio tem vindo a aumentar entre os leigos.
A capacidade de perguntar e de questionar certezas enraizadas está presente no pontificado de Francisco como na poesia e na obra de José Tolentino Mendonça. Surpreenderá assim apenas os mais distraídos a escolha do padre-poeta português para orientar o retiro espiritual do Papa, de hoje a 23 de Fevereiro, em Ariccia, nos arredores de Roma.
O mote para esta reflexão alargada à cúria romana será “Aprendizes do espanto”, a partir do qual o também vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP) refletirá sobre “O Elogio da Sede”, tema que diz ser transversal a crentes e não crentes e que se subdividirá, ao longo do seis dias, em meditações como “Percebi que estava sedento”, “Esta sede de nada”, “As lágrimas contam uma sede” e “Ouvir a sede das periferias”, entre outras.
Biblista e investigador, além de poeta e consultor do Conselho Pontifício para a Cultura, Tolentino Mendonça desafiava ainda há meses os leitores do seu último livro, Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal, Setembro de 2017), a sentarem-se num banco de jardim com tempo para encarar as grandes perguntas que nos precedem a todos, avisando logo à partida que as respostas são o que menos interessa nessa viagem sentada, cujo objectivo seria então arranjar espaço para o silêncio e para o espanto.
Afinal, como escrevia Tolentino Mendonça em meados do ano passado, numa das suas habituais crónicas no semanário Expresso, “viagem não é só movimento” e “a arte de parar é uma aprendizagem indispensável à sobrevivência”. Da poesia ao ensaio, a sua obra é atravessada, na opinião do padre jesuíta Vasco Pinto de Magalhães, “pelo tom da meditação e da procura de olhar a realidade com olhos de ver”. O jesuíta recuperou assim depressa do espanto de ver um português chamado a orientar a meditação do Papa, tanto mais que Tolentino “é respeitado internacionalmente pelas suas intervenções no campo da cultura e pertence a uma comissão pontifícia”, não sendo, portanto, “um desconhecido do Vaticano”.
Habituado a orientar diversos retiros espirituais, o padre jesuíta da Companhia de Jesus não arrisca antecipar o que poderá resultar deste retiro daquele que é o primeiro jesuíta a comandar a Igreja Católica. “Não estamos a falar de um concílio nem de um sínodo mas de uma experiência mais pessoal e espiritual, embora estejamos a falar de encontros que não são feitos para fugir da realidade mas para a agarrar com tempo e com espaço. Nesse sentido, poder-se-á esperar que esta paragem sirva para avaliar, ponderar, corrigir e tomar decisões para o futuro com novos compromissos”, contextualiza, admitindo que o Papa aproveite para “ganhar uma certa consciência da comunidade e para acertar o passo com ela”.
Numa altura em que, dentro da Igreja, têm vindo a agudizar-se as tensões entre os sectores conservadores e progressistas, com o Papa a ser acusado de heresia pelos primeiros e de não ter força para imprimir as mudanças necessárias pelos segundos, a escolha de Tolentino Mendonça foi criticada mais ou menos a coberto do anonimato pelos que consideraram que com a escolha de “um padre LGBT”, o Papa estava a abrir as portas da Igreja à “teologia queer”.
O efeito Scorsese
Numa sociedade marcada pela omnipresença de ecrãs que exigem conectividade a tempo inteiro, a procura de retiros espirituais tem vindo a aumentar, dentro e fora da Igreja. “Numa altura em que ninguém tem tempo para nada, é terapêutico arranjar um espaço de reflexão de tranquilidade”, diz Vasco Pinto de Magalhães, orientador de vários encontros com fundo religioso e com figurinos adaptados a perfis tão distintos como casais, jovens universitários ou empresários.
A Companhia de Jesus, instituto religioso da Igreja Católica, fundado por Santo Inácio de Loyola em 1540 — e da qual faz parte o Papa Francisco —, promove em Portugal vários exercícios espirituais nas três casas de retiros de que dispõe, em Braga, Sintra e Coimbra. Com uma duração que pode variar entre três e oito dias, a procura destes exercícios de silêncio feitos em grupo — espécie de “ginástica espiritual” — tem vindo a aumentar, sobretudo depois da estreia em Portugal do filme Silêncio, de Martin Scorsese. “A estreia do filme coincidiu com o início do nosso gabinete de comunicação e com uma maior preocupação em divulgar melhor as nossas atividades. Não sei qual das causas terá contribuído mais para este aumento da procura”, ressalva o padre jesuíta Pedro Rocha Mendes.
No somatório das três casas, 1890 pessoas frequentaram estes exercícios de recolhimento. Destas, apenas 463 eram religiosos e sacerdotes, repartindo-se os restantes entre estudantes, jovens casais, empresários ou simplesmente pessoas à procura de orientação por estarem em vias de tomar uma grande decisão nas suas vidas. “O objetivo é que estas pessoas contemplem o horizonte da sua vida e considerem as várias hipóteses que têm para a viver”, explica Pedro Rocha Mendes, especificando que a introspecção, a oração, o silêncio e a meditação sobre temas como liberdade e livre arbítrio estão presentes em todos os retiros, independentemente do perfil de pessoas a que se destinam.
As composições de Händel, Bach ou Vivaldi podem servir de fundo sonoro em vários momentos destes retiros, bem como as palavras de poetas como Herberto Helder ou Daniel Faria. Ser crente não é um requisito obrigatório para participar nestes retiros, cujos preços podem variar entre os 50 e os 150 euros, mas, como sublinha o padre jesuíta, “é muito difícil que alguém cruze esta experiência não tendo fé ou pelo menos não deseje fazer a experiência cristã da fé”. A dimensão cristã está, de resto, presente em todos os retiros, cuja proposta inclui a oração como veículo para “um encontro concreto com Jesus para que daí resulte inspiração para a vida e para as escolhas do dia-a-dia”. Fonte: http://publico.uol.com.br