“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 2° Domingo do Tempo da Quaresma - Ciclo B (25/02/2018) que corresponde ao texto bíblico de Marcos 9,2-10.
Todos nós temos consciência que a superficialidade, o consumismo e o individualismo são as marcas de nossa sociedade atual. Marcas que nos des-figuram e nos desumanizam. Já o grande teólogo Paul Tillich (1886-1965) afirmava que “a grande tragédia do homem moderno é ter perdido a dimensão de profundidade”. Nas suas obras há um insistente apelo a re-encontrar aquilo que ele chamava “a dimensão perdida”.
Este é o contrassenso humano: por uma parte, salta à vista a tendência a instalar-se na superficialidade (chamemos isso de “zona de conforto” ou simplesmente “comodidade”) e, por outra, a certeza de que somos todos habitados por um anseio que nos chama constantemente para a profundidade (chamemos isso de “nossas raízes”, “nosso ser”..., em definitiva, “nossa casa”). Entre esses dois extremos – superficialidade e profundidade – transcorre nossa vida.
No fundo, a superficialidade, o consumismo e o individualismo são tão somente tímidas compensações que tentam aliviar o vazio de sentido que nos habita; ao mesmo tempo se apresentam como “cantos de sereia” que nos distraem daquilo que é verdadeiramente importante: viver o que somos.
Talvez, a chamada “dimensão perdida” não seja outra coisa que a “trans-figuração” de nossa verdadeira identidade. Este é o apelo do Evangelho de hoje: viver “trans-figurados” a partir de nossa interioridade.
Estamos vivendo fora de nós mesmos, daí que nosso mundo interno permaneça na obscuridade. Se nos voltarmos para dentro, se nossa atenção começa a dirigir seu foco para o interior, então tudo se ilumina.
O chamado “mistério” da “Transfiguração” poderia ter sido, em sua origem, um relato de aparição do Ressuscitado. Posteriormente teria sido re-elaborado para transformar-se numa declaração messiânica: Jesus, confirmado pelas Escrituras judaicas, representadas nas figuras de Moisés (“a Lei”) e Elias (“os profetas”), é apresentado como “Filho amado” de Deus. Todo Ele é transparência e luminosidade.
Jesus viveu constantemente transfigurado, mas isso não se expressava externamente com espetaculares manifestações. Sua humanidade e sua divindade se revelavam cada vez que se aproximava de uma pessoa para ajudá-la a ser ela mesma. A transfiguração deixa de ser um evento para tornar-se um modo permanente de Jesus viver, pois a única luz que nele se revela é a do amor; e só quando manifesta esse amor, ilumina. Na sua humanidade deixa transparecer a luz de Deus.
A Transfiguração não está só nos dizendo quem era Jesus, mas também quem somos realmente. Ela des-vela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade. Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano, é transparência de Deus.
A transfiguração desencadeia um movimento interno de busca continuada e revela que o ser humano é inquieto por natureza, e será sempre assim, em seu afã de abrir-se a um horizonte cada vez mais amplo. Todo o ser humano traz em seu interior uma faísca de luz que busca expandir-se; não falta ao seu coração a sede de eternidade.
Transfiguração, portanto, é transformação do espaço interior. Em meio às sombras profundas, marcadas pelos traumas, feridas, experiências negativas..., encontram-se “pontos de luz”. Temos todos os recursos necessários para ativá-los. Então, o círculo de nossa luz vai se ampliando, começando pelo nosso eu mais profundo; ela vai se fazendo cada vez mais extensa, iluminando toda a realidade cotidiana. Passaremos, a viver como “seres trans-figurados”.
Cuidemos, pois, do coração, pois dele brota a luz e a vida! Iluminemos nosso caminhar com a luz que há em nós mesmos!
Nesse sentido, a cena da Transfiguração vem nos recordar que, na essência, somos luminosidade; por detrás de comportamentos com frequência sombrios, continuamos sendo transparência. Isso é o que nós cristãos reconhecemos em Jesus: Ele é o “espelho” nítido no qual vemos nossa identidade profunda. E essa identidade é luz e transparência.
Não é casual que, mesmo perdidos nas trevas de nossa inconsciência, sentimos saudades da luz. Também não é casual que, mesmo nas ações mais complicadas e questionadas, procuramos justificar nossa transparência. Uma e outra des-velam quem somos; por isso mesmo, se tornam imprescindíveis para viver com mais intensidade. Que impede que possamos percebê-las em nós e nos demais?
Nossa essência é luminosa, transparente, simples, doce, verdadeira... Mas, para percebê-la, precisamos nos despertar. E isso implica e significa, ao mesmo tempo, viver ancorados em nossa verdadeira identidade.
Para além do “ego superficial”, a trans-figuração nos faz acessar a um “lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde reconhecemos a presença d’Aquele que é a Luz indizível.
Esse “lugar” é sempre luminosidade e transparência. E a partir dele tudo fica transfigurado. Na realidade, não é que as coisas se transfigurem, senão que, mais exatamente, vemos em tudo a Verdade, a Bondade e a Beleza daquilo que é.
Se soubéssemos olhar com os olhos transfigurados veríamos que por detrás das pobres aparências se escondem muitos sentimentos de bondade, de generosidade, de fidelidade e amor.
A transfiguração nos fala da verdade que levamos dentro de nós, mas também dos novos olhos que precisamos para ver. Se soubéssemos olhar com os olhos do coração, veríamos a luz maravilhosa escondida no interior de cada pessoa. Conhecemos as pessoas por fora. Quem as conhece por dentro? Debaixo das aparências de vulgaridade, pode se esconder um grande coração.
Para meditar na oração
Transparente é um modo de ser e de agir; é a condição para que possamos viver em chave pascal, para poder ver Deus presente e atuante em tudo e em todos. O grande desafio para viver a transparência é facilitar, no meio de nossa cultura acelerada e carregada de imagens, espaços sossegados para perceber o que o Espírito vai fazendo em nós. Se não sabemos o que nos acon-tece por dentro, dificilmente poderemos ser presença iluminadora junto aos outros.
- Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados a ser cúmplices do Espírito, abrindo-nos totalmente à sua ação e deixando-nos trans-figurar por Ele.
- Como isso pode se fazer presente no seu ritmo cotidiano de trabalho, nas relações, no compromisso...? Fonte: http://www.ihu.unisinos.br